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Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição; discurso histórico exaltava que 'traidor da Carta era traidor da pátria'. (FOTO/Célio Azevedo). |
"Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à
Constituição, a nação mudou", dizia sob aplausos Ulysses Guimarães,
presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em uma sessão solene e
histórica do Congresso quando se promulgou a Carta que rege o Brasil atualmente.
O
discurso de Ulysses passaria a ser considerado um dos mais marcantes da
história recente brasileira, com uma forte defesa da Constituição que acabava
de nascer e um forte rechaço da ditadura da qual o país se despedia.
"A
ideia era de que se inaugurava uma nova época do Brasil, deixando o velho para
trás. Era um momento de muita expectativa, sobretudo popular - as propostas da
população à Assembleia Constituinte haviam chegado às milhares", explica
Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de História da UFRJ e que foi
próximo de Ulysses Guimarães, a quem ajudou na redação de um dos artigos
constitucionais.
"Foi
sem dúvida um discurso histórico, embora Ulysses não tenha elaborado uma visão
crítica adequada da Constituição", agrega o historiador Daniel Aarão Reis,
autor de diversos livros sobre história recente do país.
A
BBC News Brasil analisa alguns dos pontos mais importantes do discurso, seu
contexto histórico e a relação com o conturbado momento político atual do país.
'Traidor da Constituição é traidor da
pátria'
A
partir de 15h50 daquele 5 de outubro de 1988, os brasileiros passavam a ter uma
nova Constituição, com novos direitos, depois de cerca de um ano e meio de
discussões sobre o texto na Assembleia Constituinte.
"Declaro promulgada. O documento da
liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus
nos ajude para que isso se cumpra!", disse Ulysses pouco antes de os
constituintes - que a partir de então passariam a exercer função de
congressistas - jurarem "manter,
defender, cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do
povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil".
Em
seu discurso, Ulysses advertiu que a recém-promulgada Carta não era
"perfeita".
"Quanto a ela, discordar, sim.
Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca",
declarou o presidente da assembleia. "Traidor
da Constituição é traidor da pátria. (...) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações.
Principalmente na América Latina."
'Representativo e oxigenado sopro de
gente'
Ulysses
prossegue elogiando a participação dos brasileiros na elaboração da Carta,
citando "122 emendas populares,
algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas,
publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões
até a reta final".
"Há, portanto, representativo e oxigenado
sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de
cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de
estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a
contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar."
Para
Teixeira da Silva, a esperança daquele momento estava intimamente ligada ao
envolvimento da população com a formulação do texto e com as garantias de
direitos que a "Constituição cidadã" passava a determinar.
"A
ideia de direitos inalienáveis é muito importante na Constituição", diz
ele. "A Lei Maria da Penha, a união civil homossexual, a liberdade plena
de imprensa são coisas que jamais poderiam ser pensadas na ditadura."
Aarão
Reis reitera a ideia de que "havia
uma atmosfera de otimismo que permeava o país". "Muitos chamam a
década de 1980 de perdida, mas foi um período de muitas vitórias, conquista de
liberdade e conquista de participação, com a própria Constituição, que nunca
tínhamos tido na história republicana", diz o historiador.
'A pretexto de salvá-la, a tiranizam'
No
discurso, Ulysses fazia um alerta aos políticos e legisladores brasileiros,
para que honrem suas obrigações e rejeitem a corrupção, sob o perigo de esta
empurrar o país ao autoritarismo.
"A vida pública brasileira será também
fiscalizada pelos cidadãos. Do presidente da República ao prefeito, do senador
ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República.
República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a
pretexto de salvá-la, a tiranizam", disse.
"Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia
quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição
perfeita. (...) Mas será útil, pioneira, desbravadora, será a luz ainda que de
lamparina na noite dos desgraçados."
O
historiador Aarão Reis opina, porém, que Ulysses parece ter sobrevalorizado
aspectos positivos da Constituição "e elaborado de forma pouco crítica o
legado da ditadura" mantido na Carta.
"Apesar de ser inovadora nos direitos civis,
a Constituição ao mesmo tempo incorpora legados do período ditatorial",
afirma. "Por exemplo, a
centralização do Poder Executivo, a tutela das Forças Armadas, a utilização de
Medidas Provisórias e o modelo econômico consagrado pela ditadura."
Teixeira
da Silva afirma que, já à época, havia a sensação de que a Constituição nascia
sob algumas "amarras" - o historiador é especialmente crítico aos
mecanismos que permitiram, por exemplo, que candidatos a deputado com alta
votação "puxassem" ao Congresso políticos eleitoralmente
inexpressivos do mesmo partido. E foi naquela época, também, que começaram a se
formar forças que seriam determinantes na vida político-partidária do país nas
décadas seguintes, até os dias atuais.
"É interessante notar que, logo depois (da
promulgação), Ulysses Guimarães foi derrotado nas eleições de 1989. Isso
ilumina um pouco o processo da época, quando se formou o chamado 'Centrão'
(bloco de partidos que mais tarde seriam acusados de fisiologismo), que ajudou
a eleger uma figura que nada tinha a ver com a Constituição de 1988 (em
referência a Fernando Collor)", diz o historiador.
"Acabou se gerando uma sensação muito grande
(na população) de 'vocês não me representam' e a irrupção de outsiders que
recusam a democracia."
Anseio de mudança
Todo
o discurso de Ulysses era permeado por menções ao anseio de mudança da
população.
"Termino com as palavras com que comecei esta
fala: a nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar. A Constituição
pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança",
concluiu o texto.
Para
Teixeira da Silva, o problema é a Constituição "não ter sido cumprida até o fim", ou seja, ter falhado nos
mecanismos de representação popular. "O ideal seria apanhar o discurso do
Dr. Ulysses e colocá-lo todo em prática", opina.
Para
Aarão Reis, o próprio Ulysses personifica o caráter "híbrido" daquele
momento e da Constituição: "O grande
campeão da redemocratização havia sido um homem da ditadura em seu início (ele
apoiara o golpe de de 1964 e logo depois mudara à oposição), quando ainda se
achava que seria uma retomada rápida de poder (pelos militares) para combater o
comunismo e a corrupção e que logo depois se daria lugar às eleições."
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Com informações
da BBC News Brasil.
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