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Roberta Veiga e Hugo Mercês, eleitos para compor a lista sêxtupla de candidatos ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do estado do Pará. (FOTO | TJPA). |
Pela primeira vez na história da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB-PA), a eleição para o Quinto Constitucional aplicou as cotas raciais. Com isso, dois advogados negros — Roberta Veiga e Hugo Mercês — foram eleitos para compor a lista sêxtupla de candidatos ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA).
Previsto
no artigo 94 da Constituição Federal, o Quinto Constitucional estabelece que um
quinto dos membros dos Tribunais de Justiça deve ser de advogados e membros do
Ministério Público, com mais de dez anos de carreira e notório saber jurídico.
As
entidades representativas, como é o caso da OAB, são responsáveis por organizar
a escolha e indicar a lista ao tribunal, que, por sua vez, encaminha uma lista
tríplice ao governador, a quem cabe a nomeação final.
A
eleição aconteceu de forma online no dia 11 de agosto e contou com a maior
participação da história da entidade: mais de 6 mil advogados votaram. Dos 29
inscritos, habilitaram-se apenas 12 candidaturas.
Roberta
obteve 1.269 votos e Hugo, 1.346 — ambos não estariam entre os eleitos se não
fosse a aplicação das cotas raciais, apuradas por uma Comissão de
Heteroidentificação. A medida inédita garantiu não apenas presença, mas
visibilidade às candidaturas negras.
‘É um marco histórico’, diz Roberta
Veiga
Natural
do interior do Pará, neta de trabalhadores rurais, Roberta Veiga descreve sua
eleição como “um divisor de águas”. Ela destaca o simbolismo da conquista:
“Nossa presença simboliza esperança para tantos jovens negros e negras que
sonham em ascender profissionalmente, mas não se enxergam representados no
Judiciário”.
Veiga
relata que sofreu obstáculos ao longo da campanha. “Desde o preconceito velado
em salas de aula e fóruns, até a dificuldade em ser reconhecida em igualdade de
condições”, diz.
“A
racialização do corpo negro impõe estigmas que muitas vezes tentam nos
invisibilizar. As cotas funcionam como uma ferramenta de abertura de portas
que, historicamente, foram mantidas fechadas”.
O 1º
Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (Perfil ADV) revelou uma
desigualdade significativa sobre a composição da profissão no Brasil. De acordo
com a pesquisa, na advocacia brasileira, os brancos representam 64%, os pardos
25%, os pretos 8%, e aproximadamente 1% de indígenas e amarelos.
A
representação é ainda mais baixa nas estruturas do Judiciário. Dados do
Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) apontam que pessoas brancas são 83,8% do quadro de
magistrados, enquanto 12,8% se autodeclararam pardos e 1,7% se autodeclararam
pretos.
Roberta
defende que as cotas raciais visam corrigir essas desigualdades históricas.
Para ela, a inclusão de advogados e advogadas negras transforma o Judiciário,
ampliando perspectivas e promovendo uma justiça mais humana e conectada com a
realidade da maioria da população brasileira.
“Quando
corpos negros ocupam espaços de poder, as pautas que antes eram invisibilizadas
passam a ganhar relevância. Questões como racismo estrutural, desigualdade
social e acesso à justiça passam a ser tratadas com a urgência e a seriedade
que merecem”, afirma.
Questionada
sobre os próximos passos, ela ressalta: “O maior desafio agora é transformar
representatividade em atuação efetiva. Estar na lista é apenas o primeiro
passo. É preciso seguir firme, dialogar e honrar a confiança de quem acredita
que nossa presença pode mudar o Judiciário paraense”.
‘Diversidade é solução para o futuro’,
afirma Hugo Mercês
Também
eleito pela cota racial, Hugo Mercês chama atenção para os desafios financeiros
enfrentados por candidatos negros em processos eleitorais como o do Quinto
Constitucional. Por esse motivo, ele defende que, além de fortalecer as cotas
raciais e de paridade de gênero, os processos eleitorais devem ter um teto de
gastos padrão entre as candidaturas.
“Ao
analisar a lista sêxtupla, a gente verifica que as candidaturas que ficaram com
maior número de votos são as candidaturas que tiveram um orçamento elevado,
fora da realidade do geral da Advocacia Paraense. Por outro lado, os candidatos
das cotas tiveram uma votação expressiva, mas com um investimento absolutamente
inferior”.
“As cotas tiveram impacto real na democratização do processo”, afirma.
Para
Mercês, a inclusão precisa acontecer em paralelo a um compromisso com políticas
de equidade. Ele acredita na implementação do Protocolo para Julgamento com
Perspectiva Racial, criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como
ferramenta essencial para a transformação do Judiciário. “Nenhum tribunal pode
se furtar a decidir em desacordo com esse protocolo”, pontua.
“Penso
que o Tribunal de Justiça do Estado do Pará se dedicar à implementação desse
protocolo seja um excelente caminho para o fortalecimento da presença de
pessoas negras dentro do tribunal e também para o fortalecimento da
jurisprudência adequada à lógica que entende que o racismo faz parte das
estruturas do Brasil”.
Hugo
também destaca a importância de ocupar espaços historicamente negados à
população negra: “O Quinto Constitucional sempre foi um espaço reservado a
oligarquias jurídicas e políticas. Ser eleito, vindo de fora dessa tradição, é
um avanço importante”.
Avanços e desafios
Além
da eleição com paridade de gênero e cotas raciais, a OAB-PA criou uma banca de
heteroidentificação, garantindo critérios técnicos e objetivos para validar a
autodeclaração racial.
Apesar dos avanços, os desafios permanecem. Na próxima fase, o TJPA escolherá apenas três nomes da lista — e nessa etapa não há obrigatoriedade legal de escolher um dos candidatos negros.
Hugo
reforça que essa lacuna precisa ser enfrentada: “A diversidade não pode ser uma
exceção eventual. Tem que ser compromisso institucional”.
Roberta
completa: “Sem as cotas, muitas candidaturas sequer teriam visibilidade. Mas o
sistema precisa garantir não apenas acesso, mas condições de permanência e
ascensão”.
Resultado da eleição para o Quinto
Constitucional da OAB:
Lista feminina:
Anete
Pena de Carvalho (3.173 votos)
Patrícia
Bahia (3.033 votos)
Roberta
Veiga (1.269 votos)*
*Eleita
pela cota de representatividade racial. Sem a cota racial, quem entraria na
terceira vaga feminina seria Kelly Garcia, que obteve 1.611 votos.
Lista masculina:
Jarbas
Vasconcelos (2.527 votos)*
João
Paulo Lédo (2.058 votos)
Hugo
Mercês (1.346)**
*Candidato
heteroidentificado, mas não entrou pelas cotas porque teve votação expressiva.
**Eleito
pela cota de representatividade racial. Se não houvesse cota, a terceira vaga
masculina seria de César Ramos, que obteve 1.959 votos.
___
Por Fernando Assunção, na Alma Preta.
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