25 de agosto de 2025

Cotas raciais garantem eleição histórica de dois advogados negros para vaga de desembargador

 

Roberta Veiga e Hugo Mercês, eleitos para compor a lista sêxtupla de candidatos ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do estado do Pará. (FOTO | TJPA).

Pela primeira vez na história da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Pará (OAB-PA), a eleição para o Quinto Constitucional aplicou as cotas raciais. Com isso, dois advogados negros — Roberta Veiga e Hugo Mercês — foram eleitos para compor a lista sêxtupla de candidatos ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA).

Previsto no artigo 94 da Constituição Federal, o Quinto Constitucional estabelece que um quinto dos membros dos Tribunais de Justiça deve ser de advogados e membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira e notório saber jurídico.

As entidades representativas, como é o caso da OAB, são responsáveis por organizar a escolha e indicar a lista ao tribunal, que, por sua vez, encaminha uma lista tríplice ao governador, a quem cabe a nomeação final.

A eleição aconteceu de forma online no dia 11 de agosto e contou com a maior participação da história da entidade: mais de 6 mil advogados votaram. Dos 29 inscritos, habilitaram-se apenas 12 candidaturas.

Roberta obteve 1.269 votos e Hugo, 1.346 — ambos não estariam entre os eleitos se não fosse a aplicação das cotas raciais, apuradas por uma Comissão de Heteroidentificação. A medida inédita garantiu não apenas presença, mas visibilidade às candidaturas negras.

‘É um marco histórico’, diz Roberta Veiga

Natural do interior do Pará, neta de trabalhadores rurais, Roberta Veiga descreve sua eleição como “um divisor de águas”. Ela destaca o simbolismo da conquista: “Nossa presença simboliza esperança para tantos jovens negros e negras que sonham em ascender profissionalmente, mas não se enxergam representados no Judiciário”.

Veiga relata que sofreu obstáculos ao longo da campanha. “Desde o preconceito velado em salas de aula e fóruns, até a dificuldade em ser reconhecida em igualdade de condições”, diz.

A racialização do corpo negro impõe estigmas que muitas vezes tentam nos invisibilizar. As cotas funcionam como uma ferramenta de abertura de portas que, historicamente, foram mantidas fechadas”.

O 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (Perfil ADV) revelou uma desigualdade significativa sobre a composição da profissão no Brasil. De acordo com a pesquisa, na advocacia brasileira, os brancos representam 64%, os pardos 25%, os pretos 8%, e aproximadamente 1% de indígenas e amarelos.

A representação é ainda mais baixa nas estruturas do Judiciário. Dados do Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que pessoas brancas são 83,8% do quadro de magistrados, enquanto 12,8% se autodeclararam pardos e 1,7% se autodeclararam pretos.

Roberta defende que as cotas raciais visam corrigir essas desigualdades históricas. Para ela, a inclusão de advogados e advogadas negras transforma o Judiciário, ampliando perspectivas e promovendo uma justiça mais humana e conectada com a realidade da maioria da população brasileira.

Quando corpos negros ocupam espaços de poder, as pautas que antes eram invisibilizadas passam a ganhar relevância. Questões como racismo estrutural, desigualdade social e acesso à justiça passam a ser tratadas com a urgência e a seriedade que merecem”, afirma.

Questionada sobre os próximos passos, ela ressalta: “O maior desafio agora é transformar representatividade em atuação efetiva. Estar na lista é apenas o primeiro passo. É preciso seguir firme, dialogar e honrar a confiança de quem acredita que nossa presença pode mudar o Judiciário paraense”.

‘Diversidade é solução para o futuro’, afirma Hugo Mercês

Também eleito pela cota racial, Hugo Mercês chama atenção para os desafios financeiros enfrentados por candidatos negros em processos eleitorais como o do Quinto Constitucional. Por esse motivo, ele defende que, além de fortalecer as cotas raciais e de paridade de gênero, os processos eleitorais devem ter um teto de gastos padrão entre as candidaturas.

Ao analisar a lista sêxtupla, a gente verifica que as candidaturas que ficaram com maior número de votos são as candidaturas que tiveram um orçamento elevado, fora da realidade do geral da Advocacia Paraense. Por outro lado, os candidatos das cotas tiveram uma votação expressiva, mas com um investimento absolutamente inferior”.

“As cotas tiveram impacto real na democratização do processo”, afirma.

Para Mercês, a inclusão precisa acontecer em paralelo a um compromisso com políticas de equidade. Ele acredita na implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como ferramenta essencial para a transformação do Judiciário. “Nenhum tribunal pode se furtar a decidir em desacordo com esse protocolo”, pontua.

Penso que o Tribunal de Justiça do Estado do Pará se dedicar à implementação desse protocolo seja um excelente caminho para o fortalecimento da presença de pessoas negras dentro do tribunal e também para o fortalecimento da jurisprudência adequada à lógica que entende que o racismo faz parte das estruturas do Brasil”.

Hugo também destaca a importância de ocupar espaços historicamente negados à população negra: “O Quinto Constitucional sempre foi um espaço reservado a oligarquias jurídicas e políticas. Ser eleito, vindo de fora dessa tradição, é um avanço importante”.

Avanços e desafios

Além da eleição com paridade de gênero e cotas raciais, a OAB-PA criou uma banca de heteroidentificação, garantindo critérios técnicos e objetivos para validar a autodeclaração racial.

Apesar dos avanços, os desafios permanecem. Na próxima fase, o TJPA escolherá apenas três nomes da lista — e nessa etapa não há obrigatoriedade legal de escolher um dos candidatos negros.

Hugo reforça que essa lacuna precisa ser enfrentada: “A diversidade não pode ser uma exceção eventual. Tem que ser compromisso institucional”.

Roberta completa: “Sem as cotas, muitas candidaturas sequer teriam visibilidade. Mas o sistema precisa garantir não apenas acesso, mas condições de permanência e ascensão”.

Resultado da eleição para o Quinto Constitucional da OAB:

Lista feminina:

Anete Pena de Carvalho (3.173 votos)

Patrícia Bahia (3.033 votos)

Roberta Veiga (1.269 votos)*

*Eleita pela cota de representatividade racial. Sem a cota racial, quem entraria na terceira vaga feminina seria Kelly Garcia, que obteve 1.611 votos.

Lista masculina:

Jarbas Vasconcelos (2.527 votos)*

João Paulo Lédo (2.058 votos)

Hugo Mercês (1.346)**

*Candidato heteroidentificado, mas não entrou pelas cotas porque teve votação expressiva.

**Eleito pela cota de representatividade racial. Se não houvesse cota, a terceira vaga masculina seria de César Ramos, que obteve 1.959 votos.

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Por Fernando Assunção, na Alma Preta.

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