Na imagem, um dos instrumentos de tortura usado contra negros e negras escravizadas no Ceará e em Milagres. (FOTO/ Divulgação/ Governo do Estado do Ceará, 2019). |
Em 1965 o historiador norte-americano Billy Chandler publicou um artigo polêmico: Os escravistas renitentes de Milagres – um pós-escrito à história da escravidão no Ceará, que no ano seguinte foi republicado na Revista do Instituto do Ceará acrescido de comentários sobre o revisionismo histórico no Ceará escrito por Carlos Sturdat Filho que questionou o autor e a suposta inconveniência do artigo.
No
texto o historiador estrangeiro questiona a versão oficial da historiografia
cearense que vinha sendo escrita desde o século XIX e que insistia em afirmar
que a partir do dia 25 de março de 1884 não existiu mais escravos no Ceará.
Baseando-se na documentação dos anos de 1884 a 1887, (jornal O Libertador e os
Relatórios de Presidentes da Província do Ceará) Billy Chandler encontrou
vários registros da resistência dos senhores escravistas de Milagres em aceitar
a emancipação de seus trabalhadores escravizados naquele ano de 1884.
A
partir de então começou um debate acadêmico que questionava o antigo título de
Ceará, Terra da Luz, criado pelo jornalista José do Patrocínio nas páginas do
seu jornal tão logo a notícia do fim do trabalho escravo no Ceará chegou ao Rio
de Janeiro em abril de 1884. A permanência da mão-de-obra escravizada em
Milagres até o final do ano de 1886 de alguma forma contrariava o discurso
oficial de que no Ceará já não havia mais escravos desde o dia 25 de março de
1884.
Por
que a Câmara Municipal de Milagres e o juiz de direito da cidade, Joaquim do
Couto Cartaxo não fizeram como as outras vilas e cidades do Ceará que
garantiram a emancipação dos escravos naquele dia 25 de março? Por que o
trabalho escravo ainda sobreviveu em Milagres por mais de dois anos após a
festa da emancipação realizada pelas entidades abolicionistas em Fortaleza?
Milagres foi realmente a última cidade do Ceará a abolir a escravidão?
Mas
o que muita gente não sabe é que nunca existiu uma lei na Província do Ceará
decretando o fim da escravidão por aqui e obrigando os senhores escravocratas
cearenses a libertar os escravos como aconteceria em 13 de maio de 1888 com a
Lei Áurea. O que houve no dia 25 de março de 1884 não foi a proibição de
escravizar pessoas no Ceará, mas uma festa montada pelos clubes abolicionistas
e a elite de Fortaleza que comemorava a notícia de que na maioria dos
municípios e vilas cearenses já não havia mais escravos. Na verdade era mais
uma expectativa de emancipação geral dos clubes abolicionistas e da classe
média fortalezense que estando pressionada pela população negra, livre e
escravizada da capital fora obrigada a emancipar seus escravizados já em maio
de 1883.
A
lei que o governo do Ceará acreditava que faria os escravistas de todo o território
cearense se render e aceitar a emancipação dos seus escravos é de outubro de
1883 e não proibia ninguém de comprar, vender ou possuir escravos, apenas
aumentava o imposto da matrícula obrigatória do escravo que seria feita em
1884. Como o governo sobretaxou de forma relativamente exorbitante o valor a
ser pago pelos donos de escravos na ocasião de declarar a propriedade de
pessoas escravizadas acreditou-se que para não ter que pagar um valor que
chegava praticamente ao do próprio escravo os escravistas seriam obrigados a
emanciparem seus trabalhadores escravizados, mas com a condição destes ficarem
servindo-lhe por mais três anos.
De
fato isso foi acontecendo em várias regiões do Ceará, desde o litoral até o
sertão, e entre os meses de janeiro a março de 1884 ocorreram emancipações em
massa, mas nem todos os escravocratas estavam dispostos a abrir mão de sua
propriedade humana. Essa renitência da qual fala Billy Chandler aconteceu
principalmente em Milagres, mas também em outras localidades do Ceará e do
Cariri.
Na
década de 1880 a cidade de Milagres estava dividida entre dois grupos
políticos: os Conservadores (Caranguejos) cujo chefe político era o delegado
honorário Jesus da Conceição Cunha, notório escravista e exterminador de índios
nas décadas de 1860 e 1870, mas que ao perder a eleição de 1880 passou para a
oposição e se aliou a Sociedade Abolicionista Protetora da Liberdade fundada em
1882 na cidade de Milagres pelo professor João Clymaco de Araújo Lima e outros.
Jesus da Conceição Cunha era inimigo político do juiz Joaquim do Couto Cartaxo
líder do Partido Liberal (Carcarás) na cidade. Os Liberais estavam no poder e
assumiram posições de combate a Sociedade Abolicionista e seus membros, os
fazendeiros que estavam do lado do juiz também eram amigos do deputado Leandro
Ratisbona que era cratense, mas controlava o curral eleitoral de Milagres. No
meio dessas disputas por poder entre grupos políticos economicamente
hegemônicos estava à população pobre de Milagres e as pessoas escravizadas do município.
População livre no Cariri e em Milagres de acordo com o censo de 1872 e a contagem da população cearense de 1873. Dados produzidos pela professora Ana Sara R. P. Cortez Irffi em 2014). |
Em
1883 Milagres possuía 435 escravos e era o terceiro município do Cariri com
maior quantidade de trabalhadores escravizados. Quando ocorreram as
emancipações em massa entre janeiro a março de 1884 os abolicionistas só
conseguiram obter no município 105 alforrias, permanecendo ainda no cativeiro
cerca de 330 escravos segundo dados oficiais. Esses número de escravizados em
Milagres continuará com pouquíssimas alterações até novembro de 1886. Além de
Milagres outras localidades no Cariri que também mantiveram escravizados após o
25 de março foram Jardim com 138 escravos que só conseguiram a liberdade ao
longo do ano de 1884, Assaré e Brejo Seco, vilas reunidas e que mantiveram 239
cativos que só se veriam livres no começo de 1885.
Mas
Milagres manteria homens e mulheres negros escravizados até o final de 1886. As
disputas em torno desses trabalhadores começaram com a eleição de maio de 1884,
quando para garantir sua vitória eleitoral Leandro Ratisbona negociou com os
fazendeiros locais do Partido Liberal a manutenção de seus títulos de posse
sobre os escravos sem nenhum impedimento legal. De fato, não havia lei que
obrigasse nenhum fazendeiro de Milagres a libertar seus escravos e tanto o
deputado quanto o seu aliado na cidade o juiz Joaquim do Couto Cartaxo sabiam
disso e foi assim que garantiram a vitória eleitoral em junho de 1884,
negociaram com a vida e os destinos de seres humanos que continuavam sob o
domínio escravista na cidade.
Logo
a oposição passou a questionar o resultado da eleição e escreveu cartas e
denúncias para os jornais de Fortaleza informando das fraudes eleitorais
cometidas pelo juiz e seus aliados em Milagres. Quando a denúncia de fraude não
trouxe nenhum ganho para os Conservadores eles passaram a chamar o juiz de
“negreiro” e “escravocrata”, a imprensa de Fortaleza denunciou ainda em 1885 a
existência de escravos em Milagres, o presidente da Província do Ceará, Calmon
Du Pin solicitou de Joaquim do Couto Cartaxo um relatório e a matrícula dos
escravos de Milagres, mas este, protegido pelo deputado Leandro Ratisbona nada
informou, em julho de 1886 houve novo pedido do governo e o juiz mais uma vez
protelou. No entanto as denúncias estavam em todos os jornais oposicionistas da
capital, o juiz era atacado e o governo também era visto como incompetente para
por um subordinado seu às ordens.
Finalmente
em novembro de 1886 o governo provincial deu um ultimato e o juiz de Milagres
respondeu ao documento do governo. Escreveu um relatório declarando que desde o
dia 26 de novembro todos os donos de escravos de Milagres estavam emancipando
seus trabalhadores escravizados. Mas só no começo de 1887 é que não houve mais
registros de escravos em Milagres, pois os últimos tinham sido alforriados na
noite de natal de 1886.
Toda
essa polêmica em torno da abolição da escravidão em Milagres acabou ofuscando
os principais responsáveis pelas lutas contra a escravidão no município, e
estes não foram exatamente às facções políticas da cidade, foram os pretos, os
pardos, os negros, pessoas livres e escravizadas que resistiram e lutaram
contra a escravidão na cidade. Nomes de protagonistas negros que combateram a
escravidão em Milagres ficaram esquecidos, pessoas como o negro Agapito, a
negra Tereza Rufina, o negro Roberto e o negro Cosme, pessoas que enfrentaram
os escravocratas e conquistaram a liberdade para si e seus companheiros. Também
ficou esquecida a luta da Sociedade Abolicionista Protetora da Liberdade e de
seus membros que lutaram ao lado da população negra de Milagres contra a
escravidão.
O
município de Milagres tem uma história de lutas contra a escravidão, mas
infelizmente o que é lembrado constantemente é apenas as disputas políticas
entre os escravocratas que adiaram por dois anos e meio a emancipação do
trabalhador escravizado no município, está na hora da cidade de Milagres
reconhecer essas lutas e colocar-se não como a última cidade do Ceará que
acabou com a escravidão, mas sim como a cidade onde as lutas contra a
escravidão ultrapassou o ano de 1884 e onde o negro assumiu papel fundamental
na luta para acabar o escravismo no Brasil.
Feire de Milagres na década de 1980 em exposição produtos que remontam a herança negro-africana da cultura e da história do município. (FOTO/ Casa da Cultura de Milagres). |
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Texto de César Pereira, mestrando em História pela URCA e professor da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais (Brejo Santo, CE). Publicado originalmente no O Kariri.
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