(Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil). |
Entre
as 35 metas prioritárias para os 100 dias de governo de Jair Bolsonaro, está
prevista, no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
comandado pela ministra Damares Alves, a regulamentação do direito à educação
familiar pelo Supremo Tribunal Federal via medida provisória. A previsão é que
o texto fosse publicado até o dia 15 de fevereiro, segundo a assessoria de
imprensa do Ministério.
Uma
primeira versão do texto foi anunciada pelo governo em janeiro, mas não
divulgada. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não
reconhecer essa modalidade de ensino. Para a Corte, a Constituição prevê apenas
o modelo de ensino público ou privado, cuja matrícula é obrigatória, e não há
lei que autorize a medida.
O que muda com a Medida Provisória?
A
medida provisória abre um novo caminho de judicialização do tema. Com a MP, o
tema ganha força imediata de lei. O Legislativo só é chamado a discutir,
aprovar ou descartar a pauta em um momento posterior, mas o fato é que ela já
começa valendo.
De
acordo com o artigo 62 da Constituição Federal, uma medida provisória tem por
pressuposto urgência e relevância. “Mas
nem sempre o Executivo respeita esse critério quando edita uma MP, como é o
caso do homeschooling. Isso precisa ser questionado na Justiça, é um claro
abuso”, avalia o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito a Educação,
Daniel Cara.
Outro
ponto crítico para o especialista é a pauta vir alocada no Ministério comandado
por Damares e não no de educação. “Deveria
estar no MEC, o que só revela o conservadorismo estrutural desse governo. Nas
entrelinhas das falas do governo, além do que se ouve nos bastidores de
Brasília, a ideia é que o homeschooling seja acompanhado pelas mães e avós, que
seriam as tutoras presenciais dos filhos e netos. Ademais, a Ministra Damares
quer ter uma agenda mais material do que “meninos vestem azul, meninas vestem
rosa“. Contudo, é preciso ler o texto da MP e observar a postura da base do
governo em emendas para saber se essa intenção se materializa. Mas já estamos
de sobreaviso”, sinaliza Cara.
Cenário
Um
levantamento realizado pela Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned),
uma das principais influenciadoras do tema, indicam 7,5 mil famílias e 15 mil
estudantes na modalidade, em 2018. No documento oficial divulgado pelo governo,
no entanto, a estimativa apresentada é de 31 mil famílias, quase cinco vezes o
número da associação.
De
qualquer forma, o número dos que aderem à modalidade é pouco representativo
diante os quase 50 milhões de estudantes da educação básica. Motivo pelo qual o
professor da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, também questiona o
senso de urgência dado ao tema.
“Eu vejo uma inversão de posição. O que é
urgente é que as famílias matriculem seus filhos nas escolas após a decisão
judicial do STF e não que esse grupo, aparentemente limitado, justifique algo
extremo como uma medida provisória. Vejo um certo oportunismo desse lobby de
homeschooling para usar a ilegalidade a favor de um interesse próprio, sem
discussão democrática no Congresso Nacional”, avalia.
A
possibilidade de educar em casa também não parece dialogar com a realidade
social e financeira da maior parte dos brasileiros, que têm rendimento médio
domiciliar per capita – a soma dos rendimentos mensais dos moradores do
domicílio – de R$ 1271,00 (PNAD Contínua, 2017). Em entrevista concedida à
imprensa, o presidente da Aned, Ricardo Dias, reconheceu que 9% das famílias que
aderem à modalidade estão na região Sul do País, a de maior rendimento médio
domiciliar per capita, R$ 1567,00.
Uma
mãe de Curitiba, adepta do homeschooling, ouvida pelo Carta Educação em
condição de anonimato, contou que recorre a professores particulares para
encaminhar a educação de seus dois filhos, de sete e 10 anos de idade.
Ela
conta que, entre os motivos que a fizeram tirar os filhos da escola, está o
bullying sofrido pelo caçula e também a falta de um atendimento personalizado,
que considere as características individuais das crianças no processo de
aprendizagem.
Tirar da escola resolve?
Para
os especialistas ouvidos pela reportagem, os problemas estruturais e
pedagógicos das escolas não podem ser utilizados para justificar a pauta do
homeschooling como uma demanda macro e, sim, devem ser enfrentados com ações e
políticas no contexto escolar.
É o
que coloca a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
Carlota Boto. “O bullying é um problema?
É. Ele é, sobretudo, uma forma de hostilidade e as escolas devem trabalhar o
universo da socialização das crianças para diminuir a sua ocorrência. Na vida
em sociedade nós também vivemos experiências de intolerância e hostilidade. O
que eu quero dizer é que tirar os filhos das escolas não resolve a dificuldade
social das crianças”, atesta a educadora reafirmando a importância de
projetos políticos pedagógicos orientados para todas as questões escolares.
A escola,
bem ou mal, apresenta às novas gerações a diversidade do mundo, as diferenças,
a pluralidade cultural. Tudo isso é necessário. Será que é válido criar as
crianças em uma bolha familiar? Será que isso é direito?”, questiona Boto.
O direito à educação em risco
O
artigo 205 da Constituição Federal reconhece a educação como um direito de
todos e dever do Estado e da família e sua promoção com a colaboração da
sociedade, “visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”.
O encaminhamento
e os desdobramentos do tema ainda são obscuros para Ximenes, que inclusive
relembra que o STF ainda não publicou o acórdão do tema. Para ele, a pauta pode
caminhar apenas para colocar na ilegalidade a prática do homeschooling, como
também para reconfigurar o direito a educação no Brasil, “o que seria um retrocesso”.
“Se partirmos para o entendimento de que a
família está acima do Estado na definição da educação será necessário redesenhar
não só a concepção de educação, como a de política educacional e de escola
pública”, atesta.
Ximenes
reforça a concepção de educação pública e republicana que, além da
complementaridade entre Estado e família no dever de estudar, reconhece a educação
obrigatória “como um requisito necessário
para a igualdade e democracia, independente da posição de seus pais”.
A
preocupação dos especialistas mira nos interesses que sustentam a agenda e que,
para eles, tem convergência com o Escola sem Partido. O presidente da Aned,
Ricardo Dias, traz como um dos motivos para os pais tirarem seus filhos da
escola a “doutrinação ideológica”, principal reivindicação do movimento,
amplamente acolhida por Bolsonaro e seus representantes governamentais, como o
ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez.
“A triste realidade é que o homeschooling e o
Escola sem Partido colocaram as escolas no centro da guerra cultural
bolsonarista, que serve fundamentalmente para amelhear militantes e apoiadores
para a ultradireita – a partir da mentira astuta contra as escolas e a
pedagogia”, critica Daniel Cara.
Para
Salomão, caso formalizado, o homeschooling pode expandir o mercado educacional
e sua oferta de produtos e serviços. “E
em que medida esses atores, que se beneficiam desse tipo de oferta, não vão
influenciar os pais a não matricularem seus filhos nas escolas?”,
questiona.
Para
Daniel Cara, é impossível atingir a dimensão em um processo de
ensino-aprendizagem realizado pelas famílias e fomentado por sistemas de
educação à distância. “A convivência com
alunos e professores nas escolas é fundamental pedagogicamente e compreende o
direito à educação, que vai muito além da mera instrução”. (Com informações
da CartaEducação).
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