A
convicção política de que a educação é chave na construção da cidadania do
negro brasileiro conecta o mundo atual ao final do século XIX, no contexto do
término jurídico da escravidão. Isto porque, apesar de todas as mudanças no
tecido social, e ultimamente na gestão dos interesses públicos, o racismo,
estruturante de todas as relações sociais, continua a determinar limites para a
reversão das desigualdades socioeconômicas
Do
CEERT - De acordo com os números da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios – PNAD, divulgados em dezembro de 2015 pelo IBGE, os
negros e pardos representavam 54% da população brasileira; no entanto, sua
participação no grupo dos 10% mais pobres era muito maior: 75%. Por outro lado,
a participação dos negros no grupo do 1% mais ricos não chegava a 18%.
Esses
dados, como há anos vêm assinalando economistas como Marcelo Paixão,
representam a tela principal de um conjunto de fatores que aprisionam a
população negra na base da pirâmide social, como é o caso da educação.
Em
2015, ainda segundo a PNAD 2015, 53,2% dos estudantes pretos ou pardos de 18 a
24 anos de idade cursavam níveis de ensino anteriores ao superior, como o
fundamental e o médio, enquanto apenas 29,1% dos estudantes brancos estavam
nessa mesma situação.
Isso
demonstra que apesar da adoção das políticas de ação afirmativa (aqui,
especificamente, as cotas para negros nas universidades), o fosso que separa o
acesso de brancos e negros ao ensino superior está longe ainda do que seria uma
situação de equilíbrio.
Pode-se
inferir, também, que esses dados são reveladores da potência do mito da
democracia racial, pois, mesmo diante dessas evidências, parte muito
significativa dos trabalhadores em educação, sobretudo de gestores e docentes
na educação básica, ainda insiste em manter fechados os olhos para a relevância
da Lei nº 10.639, de 2003.
A
professora de línguas Fabia Kelli Batista Lopez, do colégio estadual de São
Miguel do Araguaia, em tantos anos de existência da legislação, é uma das
inúmeras vozes que admitem nunca ter desenvolvido, de modo contínuo em suas
aulas, conteúdos que atendam à legislação.
Revela
que falta material didático adequado na escola e que nunca participou de nenhum
programa de capacitação para lidar com as diretrizes curriculares para a
educação para as relações étnico-raciais.
Diz
que sabe muito pouco sobre a Lei e explica o motivo: “É que nós temos que trabalhar esse conteúdo sobre a cultura africana e
do afro-brasileiro na sala de aula, nós sabemos disso, mas só que ele é mais
trabalhado mesmo na época da consciência negra (…) a gente não trabalha no
decorrer do ano”.
Classificar
o racismo como crime hediondo e aprovar leis como a que está aqui em tela, ou o
Estatuto da Igualdade Racial – que busca igualar as condições de oportunidades
e representatividade do segmento negro na sociedade ao tempo em que instrui a
defesa dos direitos étnicos individuais –, são medidas que possuem imenso
significado para o antirracismo.
Contudo,
ao que parece, as práticas antirracistas no ambiente escolar ainda estão a
depender da iniciativa da professora negra ou do professor negro e das/os
trabalhadoras/es da educação politicamente engajadas/os. Acresce a professora
Fabia que, para atender efetivamente à legislação, “é necessário ter mais informações, cursos de capacitação… que a
parceria com o sindicato é essencial”.
Por
outro lado, Noemi Medeiros, graduada em educação física, agente educacional em
uma escola de periferia no vigésimo quarto núcleo da cidade de Pelotas, Rio
Grande do Sul, nos faz crer que essa falta de material didático, bem como
informação e preparo para lidar com os conteúdos pertinentes acabam por
liquefazer o que, anteriormente à criação da Lei nº 10.639, de 2003, parecia tornar
mais sólido o embate.
A
opinião dessa servidora pública remete à desconfiança de que, sem uma
estratégia eficaz pronunciada pelo Estado para a implementação da legislação,
possivelmente pode estar havendo mais ocultação das tensões provocadas pelo racismo
na escola, em razão do maior conhecimento de outra lei, aquela que pune por
crime de racismo.
“O que eu acho mais triste é precisar existir
uma lei para a gente ser respeitada. Eu acredito que nós estamos sendo mais
respeitados, assim em termos de… eles olham a gente com mais cuidado. Não é que
terminou o racismo, mas é que ele está cada vez mais oculto. A agressividade
que se fazia… hoje eles sabendo que é crime e que a gente passa para o aluno
que tem uma lei que ampara ele… (…) então, quando tu conheces uma Lei tu estás
amparado (…) quando tu tens uma Lei tu mostras que não estás sozinho, que somos
um grande grupo que estamos lutando por esse ideal ”.
A
sensibilidade da funcionária Noemi talvez esteja a oferecer pistas para avaliar
que a comunidade escolar, que se vê obrigada, há mais de treze anos de sanção
da Lei nº 10.639, de 2003, a realizar atividades sobre “a consciência negra” relacionando-as quase sempre exclusivamente ao
período de novembro, pode estar, na realidade, reduzindo o que se encontra no “espírito” da Lei a ações pontuais, que
aparentemente justificariam o seu cumprimento.
E
os agentes que têm assumido a responsabilidade de definir procedimentos
metodológicos e conduzir pedagogicamente as ações a eles inerentes, mesmo que
parcialmente, ao invés das equipes de direção, continuam a ser as/os
trabalhadoras/es em educação politicamente engajadas/os.
Nesse
sentido, o que teria realmente mudado com o acréscimo feito à LDB? Teria sido
tão somente o ambiente de legitimidade dentro da escola para que quem sempre
foi politicamente engajada/o exija, e não apenas demande, as condições objetivas
para fazer o que sempre se fez.
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Foto: Reprodução - CEERT. |