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Machado de Assis e o embranquecimento do Brasil

 

Machado de Assis em imagem clássica divulgada nos livros e em foto recriada pela campanha "Machado de Assis Real". (FOTO | Divulgação).

Por César Pereira, Colunista

Em 1911, na cidade de Londres, Inglaterra, centenas de intelectuais reuniram-se para participar do Primeiro Congresso Internacional das Raças. O evento ocorreu entre os dias 26 e 29 de julho, durante o evento discutiu-se intensamente sobre eugenia, darwinismo social, o suposto “fardo do homem banco,” raças, relações inter-raciais, cordialidade inter-racial.

O Brasil foi convidado para tomar parte no congresso, e teve como seu delegado o antropólogo João Batista de Lacerda que durante a realização da sexta sessão do congresso apresentou o trabalho intitulado "The Metis, or half-breeds, of Brazil" para intelectuais da Europa, África, Ásia e América. Era um artigo onde o representante brasileiro defendia sua tese de embranquecimento da população “mestiça” do Brasil.

Ao longo da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX, importantes intelectuais brasileiros refletiram sobre o papel histórico, econômico e social do negro para a civilização brasileira. Intelectuais brancos como José de Alencar, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, dedicaram-se a pensar sobre o chamado “elemento negro” no Brasil.

Esses homens escreveram obras em que defendem um país com a hegemonia da branquitude sobre as características fenotípicas dos negros. Segundo a maioria deles, o negro representava a decadência da raça, e a sua predominância demográfica no Brasil explicava em grande parte nosso atraso cultural e econômico com relação as nações europeias mais ricas e “civilizadas” que eram os modelos para o Brasil das elites.

José de Alencar polemizou intensamente na imprensa fluminense nas décadas de 1860 e 1870 contra os abolicionistas que ganhavam força por todo o Império do Brasil. Em suas Cartas a favor da escravidão, José de Alencar argumenta contra a extinção do trabalho escravo no país e questiona sobre o futuro da nação depois que o “elemento servil” já não estiver sob a tutela de um senhor branco. Na visão do escritor cearense os pretos livres representavam um sério risco à sociedade brasileira.

Joaquim Nabuco foi um dos mais importantes políticos brasileiros do final do período monárquico. Suas principais pautas eram a defesa da manutenção da monarquia no país e a abolição da escravidão. Joaquim Nabuco defendia o fim da escravidão como um instrumento político que iria revolucionar o império, pois a escravização dos negros era uma mancha na sociedade brasileira uma vez que tal prática envergonhava o Brasil perante as nações civilizadas e atrasava a economia nacional.

Nabuco compreendia a escravidão não como sendo um instrumento que se impunha de forma violenta e destrutiva sobre seres humanos negros, mas como uma prática política imprópria para uma nação civilizada como a nossa. Para ele a escravização não era um problema porque violentava pessoas, mas porque fazia do Brasil uma nação bárbara perante as nações civilizadas da Europa. Acabar com a escravidão era libertar o Brasil.

Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna concluíram que a presença do negro no Brasil era um fator importante na formação cultural e econômica do país, mas para eles essa importância não se sobrepunha ao do branco, pois os brancos, principalmente a herança luso-europeia do Brasil deveria se impor sobre a africana.  Para estes intelectuais havia a necessidade de um predomínio do branco sobre o negro, a eliminação das chamadas características “negroides” por elementos “caucasianos” era fundamental para o Brasil caminhar lado a lado com a civilização europeia.

As ideias deles são ecos do pensamento geral da branquitude nacional nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Para Euclides da Cunha a própria miscigenação de várias raças no Brasil criou uma sub-raça, mestiços degenerados e que eram responsáveis pelos retrocessos culturais, econômicos e sociais.

O artigo de João Batista de Lacerda é a defesa dessa ideologia de embranquecimento do país. O projeto da branquitude propondo-se a criar uma nação branca, um Brasil cuja presença do negro fosse irrelevante ou inexistente se corporifica na comunicação de João Batista de Lacerda em Londres,

 Para Lacerda a escravização de pretos e pretas no Brasil não representou violências, pois esses homens e mulheres foram sempre tratados com cordialidade pelos seus senhores. Segundo ele não houve na história de nosso país violência escravocrata, pois em nenhum período histórico houve segregação do negro pelo branco.

Ainda segundo seu ensaio a aceitação da miscigenação a partir do livre intercurso sexual do branco e das negras no Brasil, criou por aqui uma singular “excepcionalidade racial”, pois por causa da "seleção sexual", os mulatos procurariam sempre encontrar parceiros que pudessem "trazer de volta seus descendentes para o tipo branco puro", removendo os aspectos característicos da "raça negra", inclusive o atavismo. (Lacerda, 1911a, p. 382).

Desenvolvendo mais ainda seus argumentos racistas, Lacerda afirma que a introdução de imigrantes brancos no Brasil em muito favoreceu a melhoria racial do país, assim, o cruzamento entre os mestiços e os brancos faria recuar o “elemento negro” decadente e aos poucos o “elemento branco” superior predominaria, prevendo João Batista de Lacerda que em cem anos 1912 a 2012 já não haveria mais negros no Brasil.

Grande parte dos dados que Lacerda apresenta para demonstrar sua tese do branqueamento, foram produzidos por Roquette-Pinto (Figura 1). Este outro intelectual brasileiro era assistente da cadeira de Antropologia, Arqueologia e Etnografia do Museu Nacional, portanto um jovem antropólogo que já vinha reunindo, pelo menos desde o ano de 1906, vastas informações, dados estatísticos sobre a formação social do Brasil, principalmente com relação à 'evolução' e às características raciais do povo brasileiro.

As pesquisas de Roquete-Pinto estavam apontando que a população branca no Brasil tinha crescido progressivamente, e de forma acelerada, entre 1870 e 1910, enquanto o crescimento da população negra e mestiça seguiam em sentido claramente oposto (Souza, 2011, p. 90-92). Se baseando, então, na sequência progressiva dessa estatística, não fora difícil para João Batista de Lacerda chegar à conclusão que, em 2012, a "raça branca" representaria 80% da população brasileira, os indígenas, 17% e os mestiços, 3%, sendo que a "raça negra" tendia a desaparecer de vez do território nacional (Lacerda, 1912b, p. 101).

O trabalho de Lacerda publicado em 1912, foi o amadurecimento de uma ideia que já vinha sendo desenvolvida desde o século XIX e que aparece ilustrada na pintura A redenção de Cam, de Modesto Brocos (1893). O diagrama criado por Roquete-Pinto se impunha como o elemento científico comprobatório da ideologia do branqueamento do Brasil.


Sintomaticamente no ano de 2011 a Caixa Econômica Federal veiculou na televisão um comercial utilizando um ator branco que representava o papel de Machado de Assis como um dos clientes do banco. Na propaganda um ator branco caminha pelas ruas do Rio de Janeiro no começo do século XX e dirige-se a uma agência da Caixa Econômica para fazer uma transação bancária. A peça publicitária é narrada pela atriz Glória Pires.

Ao entrar no banco o ator representando Machado de Assis é cumprimentado como um homem célebre das letras nacionais e o próprio comercial deixa isto evidente ao longo de seu 1 minuto e 2 segundos de duração. A ideia dos criadores da peça publicitária é deixar bem evidente ao público que aquele senhor branco grisalho é um dos maiores escritores da língua portuguesa.

Logo que a propaganda veio a público causou imenso desconforto em quem conhece bem a história de Machado de Assis. Filho de pai negro e neto de pretos que tinham sido escravizados, o escritor era um homem negro e foi como uma pessoa preta que alcançou a maior posição intelectual já atingida por escritor brasileiro em todo o mundo.

A cor da pele de Machado de Assis se tornou alvo de disputas entre a elite brasileira desde os primeiros dias de sua morte em 26 de setembro de 1908. Joaquim Nabuco que era seu amigo, pessoa que muito conviveu com ele desde a década de 1880 e se correspondia intensamente com Machado se pronuncia nesses termos sobre a cor deste: "O Machado para mim era branco. [...] quando houvesse sangue estranho, isto em nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica" (NABUCO Apud MASSA, p.46).

A negritude de Machado de Assis sempre foi um problema para a branquitude brasileira. Ressentida por saber que o maior escritor da nossa língua e um dos maiores intelectuais do mundo é um indivíduo não-branco, então essa elite vai utilizar de todos os subterfúgios para impor um branqueamento que o fizesse seu legítimo representante.

Além disso, um Machado de Assis negro refutaria os argumentos da intelectualidade racista brasileira e internacional, aquela intelectualidade que se reunira em 1911 na cidade de Londres para argumentar sobre a superioridade da raça branca sobre a raça negra e desta primeira sobre todas as raças.

A peça publicitária da Caixa Econômica Federal foi a massificação da tese defendida por João Batista de Lacerda de que em cem anos não haveria mais negros no Brasil. Ora, analisemos de perto a estrutura da ideologia veiculada pela propaganda do banco federal.

Segundo Lacerda em 2012 a população brasileira seria composta de 80% de brancos, 17% de indígenas e apenas 3% de mestiços, negros seriam ausentes, logo, uma campanha publicitária para divulgar um dos bancos mais ricos do país, um banco que pertence ao país, país este supostamente segundo Lacerda formado predominantemente por pessoas brancas, pessoas que seriam os verdadeiros clientes do banco, indígenas consumiriam serviços bancários na selva? Mestiços pobres se utilizariam de bancos? Assim a campanha da Caixa Econômica Federal dirigiu-se para aqueles que ela considerava ser a maioria dominante do provo brasileiro, os brancos.

Se a tese de João Batista de Lacerda estivesse correta a propaganda da Caixa Econômica Federal teria acertado bem no alvo o ego da branquitude brasileira, pois como não existiria mais negros no Brasil, um Machado de Assis branco satisfaria muito bem o narcisismo branco.

Mas não foi isto que se deu. No dia seguinte ao início da primeira veiculação da propaganda o Movimento Negro, clientes do banco, jornalistas, escritores, intelectuais e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir-PR), questionaram o presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Hereda e este teve que suspender a peça publicitária do ar e solicitar da agência que a produzira fizesse uma outra agora com um ator negro representando o escritor.


Foto da representação das duas propagandas da Caixa Econômica Federal (FONTE | YOUTUBE)

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A cor da pele de Machado de Assis sempre foi um problema para as pulsões narcísicas da elite branca nacional. Mesmo quando o escrito era vivo, os intelectuais brasileiros já polemizavam sobre sua origem hereditária e a sua negritude. Num dos primeiros estudos sobre a obra machadiana o crítico literário e antropólogo Sílvio Romero escreve o seguinte:

Quem já o estudou à luz de seu meio social, da sua influência, de sua educa- ção, de sua hereditariedade não só física como étnica, mostrando a formação, a orientação normal de seu talento? Quem já lhe ‘assinou o posto’ na história espiritual do país? (ROMERO, p. 18)

 

E continua:

(...) Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pode sair, e aí dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto (ROMERO, p. 28).

 

Este estudo de Sílvio Romero sobre Machado de Assis foi escrito nos meados da década de 1890 e publicado em 1897, isto é, quando o escritor estava no auge de sua carreira literária tendo já escrito e publicado os romances da primeira fase de 1872 a 1878 e as obras mais importantes da literatura mundial como Memórias Póstumas de Brás Cubas, O alienista, Quincas Borba, Papéis Avulsos e Histórias sem data.

Durante todo a crítica de Sílvio Romero sobre o escritor fluminense nota-se o desconforto deste com a negritude de Machado de Assis. Para Sílvio Romero a obra deste era imperfeita exatamente devido as suas influências hereditárias africanas. Podemos compreender que a visão de Romero eram os ecos do desconforto geral da intelectualidade branca nacional bem como da própria elite da qual o crítico literário sergipano havia se feito cão de guarda.

Nas citações acima percebe-se a obsessão de Sílvio Romero com relação a afrodescendência de Machado de Assis, tais obsessões narcísicas já muito evidentes quando o escrito era vivo se tornarão ainda mais intensas após sua morte. Romero defendia a seguinte tese sobre o futuro do Brasil:

A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao branco; mas que esse, para essa mesma vitória, tem necessidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta com quem tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no Velho Mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a imigração europeia. (ROMERO, p. 47).

 

Percebemos que as ideias de Sílvio Romero são muito semelhantes a ideologia geral que predominava entre a intelectualidade branca brasileira em fins do século XIX e início do XX. Para estes porta vozes da elite não havia futuro para o negro no Brasil. Desse modo explica-se por que se recusavam a aceitar um Machado de Assis afrodescendente.

Relutante em reconhecer a genialidade da obra de Machado de Assis devido as suas ideias racistas, Sílvio Romero passa a analisar a obra machadiana como imitação da escrita de Flaubert, Zola e Charles Dickens. Para Sílvio Romero a literatura de Machado de Assis é apenas uma imitação dos cânones europeus.

Mesmo diante da relutância de Romero outros críticos literários e intelectuais precisaram reconhecer a genialidade de Machado de Assis. Um desses críticos foi José Veríssimo. Para este o Machado de Assis gênio literário da língua portuguesa não era o descendente de pretos, na troca de cartas com Joaquim Nabuco José Veríssimo não aceita o adjetivo “mulato” com que se referiam ao amigo.

Mulato, ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato e penso que lhe doeria mais do que essa síntese. (…) O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego” ( Joaquim Nabuco, em carta a José Veríssimo, após a morte de Machado de Assis, disponível em: https://www.geledes.org.br/duas-cores-de-machado-de-assis/, acesso em 11 de junho de 2023 ).

         

Assim os dois se entenderam sobre o problema da cor da pele de Machado de Assis, era um mulato, mas um mulato grego. A insatisfação das pulsões narcísicas da elite brasileira com um Machado de Assis negro atravessou, portanto, todo o século XX e ainda repercutiu no ano do centenário do Congresso Internacional das Raças através da propaganda da Caixa Econômica Federal.

O branqueamento de Machado tornava-o palatável para as elites e foi assim que ele entrou na galeria dos cânones da literatura brasileira. A certidão de óbito do escritor lavrada em 19 de outubro de 1908, três semanas após sua morte o declara como branco.


Trecho da Certidão de óbito de Machado de Assis. (FOTO | Reprodução | Internet).

A declaração do documento destoa dos vastos testemunhos sobre a negritude de Machado de Assis, mas confirma a campanha oficial para branqueá-lo. Importante notar aqui que este documento possui uma anomalia estudada pela cientista social Simone da Conceição Silva, esta anomalia consiste em estar declarada a cor da pessoa morta, para a pesquisadora é estranho que a certidão de óbito de Machado de Assis a traga, pois este tipo de declaração só passou a ser obrigatória no Brasil em 1973.

Apesar de constituir uma falsa declaração da branquitude do escritor o atestado de óbito vai servir de base para sustentar vários argumentos sobre a suposta pele branca ou no máximo mulata do autor. Essa obsessão em descrever Machado de Assis como branco vai ecoar nas celebrações do seu centenário nascimento em 1939.

Para desmontar os argumentos sobre a negritude do escritor, argumentos estes que tinham principal base sua ascendência africana, pai, avós paternos e o fato de haver nascido no Morro do Livramento, a região da Pequena África no Rio de Janeiro, exibiu-se na Academia Brasileira de Letras a certidão de nascimento de Machado de Assis como prova irrefutável de sua dívida com a branquitude luso-brasileira:

Aos treze dias do mês de Novembro de mil oitocentos e trinta e nove annos na Capella da Senhora do Livramento filial a esta Matriz com Provizão do Illustrissimo e Reverendissimo Monsenhor, e Vigário Capitular Narcizo da Silva Nepomuceno, e minha licença o Reverendo Narcizo José de Moraes Marques baptizou, e pos os Santos Oleos a Joaquim, innocente filho legítimo de Francisco Jozé de Assis, e Maria Leopoldina Machado de Assis, elle natural desta Côrte, e Ella da ilha do Faial, digo, Ella da Ilha de São Miguel: forão padrinhos o Excellentissimo Viador Joaquim Alberto de Souza da Silveira, e Dona Maria Jozé de Mendonça Barrozo, nasceo aos vinte e hum de junho do prezente anno: de que fis este assento.

O Vigr.° Jozé Francisco da Silva Cardoso. (COSTA & FRANCO, p. 49)

O documento causou impacto, pois para a intelectualidade do Estado Novo representava o triunfo do elemento lusitano sobre o africano, demonstrando que aqueles que insistiam em Machado de Assis negro estavam enganados. A partir desse momento a crítica e a história da literatura trabalhará durante todo o século XX, com a representação de um Machado de Assis branco.

Para ajudar na manutenção do mito da branquitude de Machado de Assis a iconografia, registros fotográficos e pinturas guardados na Academia Brasileira de Letras será de grande importância. Nas fotografias em branco e preto, o escrito é representado como um jovem quase imberbe, sentado numa escrivaninha encarando o espectador, nesta fotografia seus traços afrodescendentes foram quase apagados pelo trabalho de retoque do estúdio.


Fotografia de Machado de Assis como esta acima ajudaram a divulgar a imagem do gênio da literatura brasileira como um homem branco (FOTO | Reprodução | Internet).

Em outra fotografia ele aparece já como um senhor maduro, barbado e grisalho olhando fixamente para um horizonte ausente como se contemplasse misteriosamente algo que só a ele é dado ver. Ainda nesta fotografia procurou-se apagar sua negritude. No entanto, apesar de todo os esforços por invisibilizar sua afrodescendência através dos retratos divulgados ao público, a sua ascendência negra não escapou aos olhos dos estudiosos mais atentos, segundo um destes:

Alguns o consideram como branco. Examinando os retratos que dele nos ficaram, nota-se que, adulto, tinha, como muitos brasileiros, alguns traços negroides: cabelos ligeiramente crespos, o lábio inferior bastante carnudo, um nariz antes achatado. Estes traços mais ou menos acentuados segundo os vários retratos, são bem encobertos pelo uso da barba. (MASSA, p.46-47)

 

Quem assim se pronuncia é o crítico francês Jean-Michel Massa no seu livro A juventude de Machado de Assis de 1947. Apesar dessa percepção do autor francês a regra entre os estudiosos brasileiros da vida e da obra machadiana foi sempre considerá-lo não-negro. Os vastos estudos bibliográficos, de crítica literária e história da literatura que serão escritos por diferentes autores no decorrer do século XX, procurarão obsessivamente repensar a condição de mulato de Machado de Assis e todos eles concomitantes num ponto, não aceitam a negritude do escritor.

Somente no século XXI começa-se a rediscutir a afrodescendência de Machado de Assis e as obsessivas tentativas de branqueá-lo ao longo da história do Brasil. Estudos como o de Sidney Shalhoub “Machado de Assis Historiador” e de Eduardo de Assis “Machado de Assis Afrodescendente” reabriram o debate sobre a presença do negro na obra do romancista.

Machado de Assis segundo esses historiadores era um homem negro e como tal agia, também agia como um intelectual negro observando as elites brancas por dentro, também agia como um funcionário público negro dentro do alto escalão da monarquia e da república, e agia igualmente como um jornalista negro num país escravocrata e racista.

REFERÊNCIAS

COSTA & FRANCO, Machado de Assis, José Olympio, Rio de Janeiro, 1988.

LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912a.

MASSA, Jean-Michel, A juventude de Machado de Assis, Ministério da Educação, 1947.

ROMERO, Nelson. A história da literatura brasileira. 3. ed.. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1944.

Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

 

Aleksandr Púchkin e Machado de Assis. (FOTO/ Wikimedia Commons).

Este estudo pretende, em leituras de Púchkin e aproximações de Machado, analisar, em perspectiva comparada, o lugar de visibilidade da herança afrodescendente em Aleksander Púchkin (1799-1837) na literatura russa e Machado de Assis (1839-1908) na literatura brasileira. Perceber, entre margem e centro, a voz plural e inovadora do autor russo, seus caminhos até o outro. Em Puchkin, a viagem. Fronteiras possíveis. O olhar para si que se deixa atravessar pela diferença. Em Machado, seu olhar para as máscaras sociais e para a escravidão. Nesses autores, marcas em sua literatura que formam a sua casa e o seu tempo, em diálogo com a modernidade. Na abertura para o outro, leituras onde o que estava no lugar do cânone também se modifica, escurecendo o imaginário nos novos contextos.

Machado de Assis e a sua fina ironia sobre a Abolição da Escravatura



Em crônica publicada no dia 19 em maio de 1888 – mês em que foi abolida a escravatura no país –, Machado de Assis descreve um cenário bem atual e ironiza a “liberdade” que negros e negras passaram a ter com o fim da escravidão.

Crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888, seis dias após a abolição da escravatura.

Bons dias!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…

– Oh! meu senhô! fico.

– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…

– Artura não qué dizê nada, não, senhô…

– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites.

Texto extraído do livro Assis, Machado de. Obra Completa, Vol III. 3ª edição. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 – 491.

Personalidades Negras que Mudaram o Mundo: Machado de Assis


Joaquim Maria Machado de Assis nasceu dia 21 de junho de 1839, na cidade do Rio de Janeiro. O garoto pobre, filho de um operário mestiço chamado Francisco José de Assis e de Maria Leopoldina Machado de Assis, marcou a história da literatura brasileira. Ao contrário do que se imagina, a trajetória de Machado de Assis não o conduziu naturalmente para o mundo das letras. Ainda na infância o jovem “Machadinho”, como era carinhosamente chamado, perdeu sua mãe.

Durante sua infância e adolescência foi criado por Maria Inês, sua madrasta. A falta de recursos financeiros o obrigou a dividir seu tempo entre os estudos e o trabalho de vendedor de doces. Ainda sobre condições não muito favoráveis, Machado de Assis demonstrava possuir grande facilidade de aprendizado. Segundo alguns relatos – no tempo em que morou em São Cristóvão – aprendeu a falar francês com a dona de uma padaria da região.

Já aos 16 anos conseguiu publicar sua primeira obra literária na revista “Marmota Fluminense”, onde registrou as linhas do poema “Ela”. No ano seguinte, Machado conseguiu um cargo como tipógrafo na Imprensa Nacional e dividiu seu tempo com a criação de novos textos. Durante sua estadia na Imprensa Nacional, o escritor iniciante teve a oportunidade de conhecer Manuel Antônio de Almeida, diretor da instituição e autor do romance “Memórias de um sargento de milícias”.

O contato com o diretor lhe concedeu novas oportunidades no campo da literatura e o alcance de outros postos de trabalho. Aos 19 anos de idade, Machado de Assis se tornou colaborador e revisor do Jornal Marmota Fluminense. Nesse período conheceu outros expressivos escritores de seu tempo, como José de Alencar, Gonçalves Dias, Manoel de Macedo e Manoel Antônio de Almeida. Nesse tempo ainda se dedicou à escrita de obras românticas e ao trabalho jornalístico.

Entre 1859 e 1860, conseguiu emprego como colaborador e revisor de diferentes meios de comunicação da época. Entre outros jornais e revistas, Machado de Assis escreveu para o Correio Mercantil, Diário do Rio de Janeiro, O Espelho, A Semana Ilustrada e Jornal das Famílias. A primeira obra impressa de Machado de Assis foi o livro “Queda que as mulheres têm para os tolos”, onde aparece como tradutor. Na década de 1860, consolidou sua carreira profissional como revisor e editor.

Na mesma época conheceu Faustino Xavier de Novais, diretor da revista “O futuro” e irmão de sua futura esposa. Seu casamento com Carolina foi bem sucedido e marcado pela afinidade que sua companheira também possuía com o mundo da literatura. Em 1867, Machado de Assis publicou seu primeiro livro de poesias, intitulado “Crisálidas”. O sucesso da carreira literária teve seqüência com a publicação do romance “Ressurreição”, de 1872.

A vida de intelectual foi amparada por uma promissora carreira constituída no funcionalismo público. A conquista do cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas ofereceu uma razoável condição de vida. No ano de 1874, produziu o romance “A mão e a luva” em uma seqüência de publicações realizadas dentro do jornal O Globo, na época, mantido por Quintino Bocaiúva.

O prestígio artístico de Machado de Assis o tornou um autor de grande popularidade. Durante as comemorações do tricentenário de Luís de Camões, produziu uma peça de teatro encenada no Imperial Teatro Dom Pedro II. Entre 1881 e 1897, o jornal Gazeta de Notícias abrigou grande parte daquelas que seriam consideradas suas melhores crônicas.

O ano de 1881 foi marcante para a carreira artística e burocrática de Machado de Assis. Naquele mesmo ano, Machado tornou-se oficial de gabinete do ministério em que trabalhava e publicou o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, considerado de suma importância para o realismo na literatura brasileira.

A ampla rede de relações e amizades de Machado de Assis lhe abriu portas para um outro importante passo na história da literatura brasileira. Em reuniões com seu amigo, e também escritor, José Veríssimo confabulou as primeiras medidas para a criação da Academia Brasileira de Letras. Participando ativamente das reuniões de escritores que apoiavam tal projeto, Machado de Assis tornou-se o primeiro presidente da instituição. Com a sua morte, em 1908, foi sucedido por Rui Barbosa.

A trajetória de Machado de Assis é alvo de interesse dos apreciadores da literatura e de vários pesquisadores. A sua obra conta com um leque temático e estilístico bastante variado, dificultando bastante o enquadramento de seu legado em um único gênero. O impacto da sua obra chegou a figurá-lo entre os principais nomes da literatura internacional.


Relação das obras:
Romances
Ressurreição - 1872
A mão e a luva - 1874
Helena - 1876
Iaiá Garcia - 1878
Memórias Póstumas de Brás Cubas - 1881
Quincas Borba - 1891
Dom Casmurro - 1899
Esaú e Jacó - 1904
Memorial de Aires - 1908
Poesia
Crisálidas
Falenas
Americanas
Ocidentais
Poesias completas
Contos
A Carteira
Miss Dollar
O Alienista
Noite de Almirante
O Homem Célebre
Conto da Escola
Uns Braços
A Cartomante
O Enfermeiro
Trio em Lá Menor
Missa do Galo
Teatro
Hoje avental, amanhã luva - 1860
Desencantos - 1861
O caminho da porta, 1863
Quase ministro - 1864
Os deuses de casaca - 1866
Tu, só tu, puro amor - 1880

Lição de botânica - 1906