O jurista Silvio Almeida. (Imagem: CHRISTIAN )PARENTE/DIVULGAÇÃO. |
“Nada
não está tão ruim que não possa piorar”. A frase dita no último
dia 27 pelo presidente da República durante solenidade que marcou os mil dias
de seu governo pode ser considerada histórica. Isso porque foi das raríssimas
vezes em que o presidente falou algo aparentemente verdadeiro e que, levando em
consideração o que tem sido seu governo e sua personalidade, soou como um “lapso
de lucidez”.
A
frase é também uma boa síntese dos mais de mil dias de horror da gestão de Jair
Bolsonaro. De fato, instalou-se no Brasil um governo em que as expectativas são
sempre de que tudo vai piorar. Não há absolutamente nada que dê ao menos a
impressão de que algo no país funcione, que irá melhorar ou de que algum dos
inúmeros problemas nacionais pode ao menos ser encaminhado. É uma mistura
fantástica de incompetência, insanidade, crueldade e corrupção.
Em
um jantar nos Estados Unidos realizado em 2019, o presidente da República disse
que em seu governo seria necessário “desconstruir” muita coisa no Brasil antes
que algo pudesse ser construído. Depois de mil dias de governo percebe-se que o
presidente, seguindo o padrão que lhe é habitual, não disse a verdade, ao menos
não completamente. Este governo não é tão somente de destruição, mas de lesão,
de sofrimento e de dor. Matar não é suficiente: é preciso torturar, humilhar e
levar à loucura.
É
também um governo corrupto, e não apenas no sentido usual do termo. É corrupto
no sentido filosófico, já que inverte a finalidade das instituições, fazendo
com que operem de forma contrária aos propósitos que declaradamente motivaram
sua criação. Exemplos disso são os ministérios.
O
Ministério da Economia se torna o fiador da miséria e da pobreza; o Ministério
da Justiça promove perseguição e vingança; o Ministério do Meio Ambiente lidera
a destruição da natureza; o Ministério da Saúde serve para espalhar a doença e
assim por diante.
Os
efeitos da decadência civilizatória representada pelo governo brasileiro se
apresentam nos mais diversos setores da vida nacional. Na economia, além dos
índices de desemprego, de desalento e do aumento progressivo da miséria, o país
se vê à mercê de pessoas que, tendo o dever de agir, assistem com cinismo a
milhões de pessoas passando fome, comendo restos de carcaças, revirando latas
de lixo e sufocando por causa de uma doença para qual já existe vacina.
Na
política, as reformas propostas pelo governo e seus aliados têm o claro
propósito de facilitar a captura do Estado por interesses privados, seja de
grupos econômicos, seja de organizações criminosas. Neste momento, a reforma
administrativa é a ponta de lança deste movimento que visa a fragilização dos
mecanismo de controle social do Estado brasileiro.
Mas
talvez o pior de todos os efeitos destes mil dias de trevas sejam os produzidos
na alma dos brasileiros. Desassossego, desesperança, tristeza e ódio são os
sentimentos que talvez melhor descrevam este estado suicidário, racista e
assassino no qual estamos todos metidos. O governo brasileiro não inventou, mas
deu sustentação, potencializou e conferiu legitimidade a uma cultura de morte e
cinismo que se disseminou na sociedade brasileira.
Sair
deste pesadelo que tem custado milhares de vidas e interditado o futuro irá
exigir uma grande recusa dirigida aos propagadores do ódio e aos lesadores que
integram ou apoiam o governo, suas ideias e suas ações.
Para
isso, instituições como esta Folha tem que assumir a responsabilidade
que lhe cabe como o jornal mais lido do país e decidir se quer participar da
construção de um país digno ou continuar investindo na criação de polêmicas
artificiais em nome de uma suposta “pluralidade”.
Racismo
e falsificação histórica nada têm a ver com postura democrática. Quem abre
espaço para este tipo de indigência intelectual e moral, que prestigia
irresponsáveis e fanfarrões, colabora, ainda que indiretamente, para que esse
pesadelo jamais tenha fim.
_______________
Sílvio Almeida é jurista e professor. Publicado originalmente no Geledés.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!