Dedicando
a palestra ao deputado federal eleito Marcelo Freixo (Psol-RJ), que teve um
plano de atentado contra sua vida descoberto recentemente, o sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos fez uma análise pouco convencional sobre
os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o futuro da luta por
direitos no mundo. Uma luta que, segundo ele, deve ser fundamentada nos ideais
anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal. Para o diretor do Centro de
Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, estes três elementos se
articulam desde o século 16 contra os direitos do homem.
Boaventura diz que a Declaração Universal foi usada na Guerra Fria “para mostrar a superioridade do capitalismo”. (Foto: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL). |
“O drama da nossa sociedade é que o
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado atuam juntos, enquanto nossas lutas
estão fragmentadas e desarticuladas”, afirmou Boaventura de Sousa Santos,
durante palestra na noite de terça-feira (18), no Sesc Bom Retiro, na região
central de São Paulo.
O
sociólogo acredita que o colonialismo praticado durante séculos pelos países
europeus segue existindo, porém, de outra forma. Assim como defende que o
capitalismo em vigor em nada se parece àquele formulado nos séculos 17 e 18,
sendo hoje, em sua estrutura financeira e mercadológica, um instrumento de
violação de direitos. “Temos negros
sub-humanos, mulheres sub-humanas, refugiados que não são tratados
verdadeiramente como gente. A ideia de que há gente descartável, para mim, é a
verdadeira violação de direitos humanos. Continuamos a viver a dicotomia
trágica de quem é verdadeiramente humano e quem é sub-humano”,
afirmou.
Para
ele, a compreensão de que o capitalismo se “aproveita”
do ideário dos direitos humanos vem desde a própria promulgação da Declaração
Universal, em 1948. E neste ponto ele se desvia das análises convencionais
sobre o tema, normalmente focadas na influência trágica das duas guerras
mundiais em solo europeu para o nascimento da Declaração Universal. Boaventura
acredita que o documento passou a ser usado como um instrumento da Guerra Fria,
“para mostrar a superioridade do
capitalismo sobre o comunismo”, uma narrativa que ao longo dos anos de
1950, 1960 e 1970 tentou mostrar que não havia violações de direitos humanos no
mundo capitalista ocidental, apenas no “outro lado do muro de Berlim”.
“A Guerra Fria tinha um duplo critério. Do
lado comunista, tudo era visto com lupa, mas o que acontecia no Ocidente, não.
Até mesmo as ditaduras na América do Sul eram para defender os direitos humanos
do comunismo”, pondera. De acordo com o sociólogo, professor da
Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, estabeleceram-se então
no mundo paradigmas complexos: comunismo/socialismo versus capitalismo/direitos
humanos.
Um
paradigma que desmorona junto com a queda do Muro de Berlim, em 1989, fato
histórico interpretado como uma vitória do capitalismo e dos direitos humanos.
“O curioso e o trágico é que nesse
momento ocorre a crise dos direitos humanos. Começa a narrativa de que o Estado
de bem-estar social na Europa é muito caro, é preciso cortar benefícios,
privatizar, os direitos passam a ser atacados e usados na estrita medida em que
ajudam o capitalismo global. Os direitos humanos viram um instrumento do capitalismo,
usado para validar sua vitória”, explica Boaventura de Sousa Santos.
Direitos prioritários e novos
“Os direitos humanos são uma grande narrativa
da dignidade humana, mas não é a única. Todos os povos têm seus conceitos de
dignidade humana”, destacou, citando como exemplo as diferenças que tal
conceito tem para índios brasileiros ou povos árabes. “Os direitos humanos têm diferentes leituras em diferentes contextos e,
para entender, é preciso conhecer a história.”
O
sociólogo português ponderou que ao longo da história sempre houve um “direito
prioritário”. Para John Locke, o “pai do liberalismo”, explicou Boaventura, o
direito à propriedade era o mais importante. E o fato do filósofo inglês ter
enriquecido como sócio de uma empresa que traficava escravos em nada arranhou
sua imagem — porque afinal, negros não eram considerados humanos.
“Não é a lógica dos direitos humanos que
define o que é prioritário, é o poder”, explica Boaventura. O sociólogo
exemplifica sua afirmação com algo comum nos dias atuais: a preocupação diária
em saber como “o mercado” vai reagir
diante de qualquer ação política. Antes de saber se a ação ou política pública
irá ou não beneficiar a sociedade, importa primeiro ter a aprovação do “mercado”. “Há sempre um direito prioritário que comanda o outro na lógica do
capitalismo, tal como no colonialismo.”
Olhando
para o futuro, ele propõe três novos direitos humanos que serão determinantes
para a causa: direitos da natureza; direitos à memória e à história; e o
direito à diversidade cultural, econômica e política.
Sobre
os direitos da natureza, o sociólogo considera uma “omissão” ele não ter sido criado até hoje, pois sem a preservação
ambiental, o planeta Terra será inviável para os humanos num futuro próximo.
Como exemplo, citou decisão recente do parlamento da Nova Zelândia que declarou
como "sagrado" um rio
importante para os índios maoris, incluindo a reparação pelos impactos sofridos
por contaminação.
Com
relação ao direito à memória e à história, Boaventura acredita que a justiça
social está atrelada à justiça cognitiva, ou seja, o conhecimento indígena é
imprescindível para a preservação da Amazônia e, portanto, esse próprio
conhecimento deve ser preservado. Dessa forma, a história e a sabedoria de
povos nativos devem ser mantidos e respeitados como direitos humanos.
O
direito à diversidade cultural, econômica e política proposto pelo sociólogo
português não é menos desafiador. Para ele, é preciso haver outras formas
reconhecidas de associações comunitárias e econômicas em paralelo ao direito da
propriedade privada.
“Há zonas de resistências que não aceitam que
haja só uma forma de desenvolvimento. Deve haver outra e para isso é preciso
novos direitos e deveres. Se conseguirmos esse equilíbrio, conseguiremos ter os
direitos humanos contra essa ótica que devasta a natureza e a diversidade”,
finalizou. (Com informações da RBA).
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