O
discurso eufemístico e calcado na negação de responsabilização dos adolescentes
no Brasil quando do cometimento de algum ato infracional, ainda mais quando se
pretende forjar o discurso de que a responsabilização de adolescentes autores
de ato infracional não tem qualquer vinculação com o direito penal, constitui
grande óbice à apreensão e entendimento da complexidade da temática, de maneira
a impedir à população a percepção de que o direito penal juvenil lida com a
máxima intervenção estatal em direitos fundamentais.
A
circunstância apontada tem fomentado frequentes discussões e incontáveis
projetos legislativos em prol da redução da maioridade penal em âmbito nacional
toda vez em que se colocam sob holofotes a ocorrência de dado ato infracional
de natureza grave pelos meios de multimídia, seduzindo o público a acreditar
que menoridade seria sinônimo de impunidade, ou quando o Legislativo enfrenta
alguma grave crise de credibilidade, como ocorre no presente momento.
A redução da maioridade penal exsurge como um perfeito desvio de foco da atual crise política.
Em
termos gerais, pode-se dizer que tais propostas se baseiam nas falaciosas e
rasas ideias de que: 1) os adolescentes estariam cometendo hoje cada vez mais
atos infracionais de natureza grave; 2) seria incompatível a capacidade de
exercício do direito ao voto estar em um patamar etário abaixo da maioridade
penal atual; e, 3) finalmente, a atual sociedade globalizada e o tamanho fluxo
e acessibilidade a informações significariam que os adolescentes – ou, como
melhor se encaixa nesses discursos acríticos, “menores”-, “saberiam muito bem o
que fazem”.
A
respeito do primeiro aspecto que motivaria o retorno da discussão sobre a
redução da maioridade penal, Ana Paula Motta Costa, juntamente com outros
integrantes do Programa Interdepartamental de Práticas com Adolescentes e
Jovens em Conflito com a Lei (Pipa) da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) relatam que:
“A
maioria dos argumentos para mudança da legislação aponta como justificativa o
aumento dos atos infracionais cometidos por adolescentes Por isso, cumpre
ressaltar que foram registrados 22.077 (número absoluto) atos infracionais –
menos de 4% do total de crimes cometidos no mesmo período – importante frisar,
8.415 (38,1%) foram de roubo e 5.863 (26,6%) foram de tráfico de drogas.
Portanto, extrai-se que os crimes hediondos não são a maioria dos fatos
praticados por adolescentes, pelo contrário: estupro e latrocínio, por exemplo,
compõem apenas 2,9% dos atos infracionais registrados em 2011, enquanto que os
atos infracionais análogos aos crimes contra o patrimônio (roubo tentado e
consumado, furto, estelionato e receptação) e tráfico de drogas correspondem a
72% desse total.[1].”
Além
de se ignorar o caráter punitivo de toda a atuação do Estado nesta seara
específica, colocando sob o mesmo patamar questões atinentes a diferentes ramos
e fundamentos do direito, nota-se que os discursos[2] apreciam a utilização do
direito penal como meio para se atingir a (utópica) segurança pública.
No
caso do direito penal juvenil, quer-se fazer acreditar que ao responsabilizar
os adolescentes conforme o direito penal dos adultos os atos infracionais serão
coibidos, sendo que se noticia “que as taxas de incidência de ato infracional
têm, na verdade, caído significativamente ao longo do século XX quando em
comparação aos crimes cometidos por adultos[3]” (destaque dos autores).
Apesar
de a tais posicionamentos em prol da redução da maioridade penal existir uma
capacidade quase infinita de crítica[4], desde um ponto de vista histórico e
sociológico até puramente dogmático, destaca-se a reflexão realizada por Maíra
Cardoso Zapater, quem sintetizou a redução da maioridade penal como medida
antijurídica, inútil e socialmente injusta:
“É
uma proposta antijurídica: a vedação à idade penal decorre da inafastável
interpretação do art. 228 da CF – em que prevê o limite etário de 18 anos o
início da responsabilização criminal – como um desdobramento do direito à
igualdade, conferindo-lhe natureza de cláusula pétrea (…). É uma proposta inútil:
a função preventiva da pena jamais mostrou qualquer resultado em relação aos
acusados adultos. Quanto ao argumento de que os adolescentes são
instrumentalizados por adultos, que os utilizam para a prática de delitos, por
acreditarem na impunidade das pessoas com menos de 18 anos, é importante
ressaltar a existência de problemas notoriamente graves nas investigações
policiais, que recorrentemente se satisfazem com uma confissão – seja da
verdade ou não. Além disso, tanto a situação de um adolescente praticar um
crime ou assumir falsamente a autoria de um crime praticado por um adulto são
situações que já encontram previsão de punição criminal no ordenamento jurídico
e não há por que pensar que punir o adolescente da mesma forma que o adulto
iria evitar o fato já não evitado pela punição atual. Ademais, deve-se frisar
que nada impediria que adultos continuassem a aliciar adolescentes e crianças
mais novas para que respondessem por seus crimes, a enfraquecer ainda mais o
argumento. É uma proposta socialmente injusta: punir adolescentes como se pune
(mal) os adultos somente fará estender a essa parcela da população a
seletividade social e econômica característica do sistema penal.[5]”
Cabe
enfatizar que a hipotética vigência de normativa que reduzisse a faixa etária
de imputabilidade penal, expandindo a abrangência do direito penal comum, não
promoveria um direito penal meramente simbólico, mas surtiria efeitos
imediatos: primeiramente nos órgãos relacionados à apuração de atos
infracionais, já que a competência para tanto passaria às varas criminais, e,
posteriormente, nos órgãos e varas de execução penal, provocando um colapso no
sistema de controle formal do Estado, já mais que exaurido atualmente.
A
clarificação da questão penal juvenil não depende apenas dos pressupostos
históricos e sociológicos, mas, por óbvio, de questões pertencentes à atual
dogmática penal e às discussões criminológicas para que seja possível uma
abordagem apropriada da responsabilização de adolescentes, não apenas a teor
das questões que este sistema jurídico específico encerra, mas também
ressaltando as questões atinentes aos próprios indivíduos destinatários dessa
bruta ingerência estatal.
Se
um por um lado não se pode admitir um discurso baseado unicamente no direito
penal comum para a responsabilização de adolescentes, por outro, os postulados
desse ramo do direito não devem ser completamente desprezados, já que é o ramo
do direito que mais oferece garantias, embora extremamente carentes de
efetividade.
A
cultura jurídica punitiva e seus respectivos desdobramentos, inclusive
doutrinários e jurisprudenciais, necessitam oxigenarem-se, abandonando fórmulas
pré-prontas que demonstram analfabetismo jurídico[6] no contexto de uma
Constituição Federal como a de 1988. Obviamente, tal é um problema profundo,
que se inicia desde o ensino jurídico, percorre a forma de seleção nos
concursos públicos até escoar na atuação de atores jurídicos acostumados a
repetir mantras que se bastam por si sós, como “ordem pública”, ocasionando o
sofrimento de tantas pessoas injustamente presas, principalmente adolescentes,
afinal, de modo algum se ignora o teor dos art. 174 do ECA, reprodutor da
lógica do art. 312 do CPP.
Apenas
é factível em um âmbito que trate de máximas consequências a direitos
fundamentais por ocasião do ato de responsabilizar–ou seja, reconhecer a
capacidade de responder por seus atos[7]–, se esse ato estiver relacionado a um
juízo de reprovabilidade do agente em razão da sua conduta desconforme à norma,
seguindo um procedimento com o máximo de garantias, até mais que no sistema
penal dos adultos, pela peculiar condição de pessoa em desenvolvimento em que
se encontram os adolescentes.
Desse
modo, não basta ao sujeito “saber o que está fazendo”, mas o conteúdo desse
saber e poder concreto de determinar-se conforme esse entendimento para se
poder falar em responsabilização (aqui destacando a necessidade de diálogo com
a categoria da culpabilidade por vulnerabilidade, ainda mais considerando o
perfil fenotípico e social do jovem selecionado pelo sistema socioeducativo).
Não
se está aqui a defender o sistema socioeducativo, cujas premissas
majoritariamente são equivocadas – ao pretender, dentre outras questões, educar
por meio da contenção física -, mas indicar que as regras do jogo não são
escolhidas, pois dotadas de imperatividade de cunho garantista, sobretudo após
Constituição Federal de 88, e devem ser obedecidas, pelo menos até que tenhamos
alguma alternativa que vise a colocar ainda mais barreiras ao sistema punitivo
estatal.
Nessa toada, verifica-se que redução apenas trará o aumento do sofrimento aos adolescentes e conduzir à ilusória satisfação de um sentimento de vingança, ao incremento da violência e ao subsídio para escusos discursos eleitorais.
O
direito, se se pretender como conhecimento científico e não meramente
manipulativo, não pode se basear em vingança e muito menos servir como
instrumento para o desvio de atenção da população, tirando, assim, o foco de
atenção da população da atual crise política no Brasil.
O
cenário nacional atual demonstra que os direitos e as garantias fundamentais
dificilmente se consolidarão, ainda mais em democracias tão jovens e
claudicantes como a brasileira, em que impera o pensamento inquisitivo e
tendente a flexibilização quanto não o menosprezo das liberdades públicas.
Os
discursos defendendo a redução da maioridade penal não apenas demonstram a
ameaça aos direitos dos adolescentes, mas sinalizam um crescente
punitivista que vem tomando o país e que
pode atingir qualquer pessoa, sob os pretextos da malfadada defesa social ainda
tão presente em nossa cultura jurídica.
Lara Maria Tortola Flores Vieira
é advogada do Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude
da Universidade Estadual de Maringá (NEDDIJ/UEM). Graduada em Direito pela UEM.
*****
[1]COSTA,
Ana Paula Motta; et al. Mais do mesmo: a falácia do aumento do tempo de
internação. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 22, n. 260, p. 09, jul. 2014.
[2]
“O uso desvirtuado do Direito Penal vem se acentuando. A mídia retrata a
violência como um ‘produto espetacular’ e mercadeja sua representação. A
criminalidade (e a persecução penal), assim, não somente possui valor para uso
político (e, especialmente, para uso ‘do’ político), senão que é também objeto
de autênticos melodramas cotidianos que são comercializados com textos e
ilustrações nos meios de comunicação. São mercadorias da indústria cultural,
gerando, para se falar de efeitos já aparentes, a sua banalização e a da
violência.”Cf. BIANCHINI, Alice. ANDRADE, Léo Rosa. Inoperatividade do direito
penal e flexibilização das garantias. In: BRITO, Alexis Augusto Couto de;
VANZOLINI, Maria Patrícia (Coord.). Direito penal: aspectos jurídicos
controvertidos. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 28.
[3]COSTA,
Ana Paula Motta; et al. Op. cit., p. 09.
[4]Ademais,
destaca-se a coletânea de artigos reunidos ainda no ano de 2001 que reuniu
posicionamentos e justificativas contrários à redução da maioridade penal, cf.
CRISÓSTOMO, Eliana Cristina R. Taveira; et al (Orgs). A razão da idade: mitos e
verdades. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001.
[5]ZAPATER,
Maíra Cardoso. Novamente (ou ainda?) redução da idade penal como solução: qual
problema se pretende resolver?. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 22, n. 259, p.
10, jun. 2014.
[6]ROSA,
Alexandre Morais da. McDonaldização do Processo Penal e analfabetos funcionais.
Disponível
em:<http://www.conjur.com.br/2013-out-19/diario-classe-mcdonaldizacao-processo-penal-analfabetos-funcionais>.
Acesso em 23/06/2017.
[7]
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 10. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 383.
(Com informações do CEERT).
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Foto: Reprodução/ CEERT. |
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