Um
montante de 896 mil processos relativos a casos de violência doméstica contra a
mulher tramitam atualmente na Justiça brasileira. Os dados são do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e foram obtidos com exclusividade pela Agência
Brasil.
Eles
confirmam a presença desse tipo de violência nos lares brasileiros e a
dificuldade de a Justiça dar resposta a situações conflituosas, o que pode
gerar consequências dramáticas. O alerta vem à tona neste dia 10 de outubro,
Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher.
"Se essa violência não for noticiada, essa
vítima pode morrer", diz a promotora Silvia Chakian, coordenadora do
Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério
Público de São Paulo, que acrescenta que a apresentação de respostas rápidas
por parte das instituições públicas é fundamental para que as mulheres
continuem denunciando e consigam, assim, romper o ciclo de violência.
Para
amenizar o volume de pendências, o CNJ promoveu esforços concentrados entre os
dias 21 e 25 de agosto, no âmbito da Semana Paz em Casa, iniciativa que tem por
objetivo acelerar a análise e o julgamento de processos, por meio de audiências
e ações multidisciplinares.
Nesses
cinco dias, foram expedidas 19.706 decisões judiciais e 6.214 medidas
protetivas relacionadas a casos de violência doméstica. O montante representa
apenas 3% dos processos que tramitam na Justiça.
A
semana foi criada em março de 2015 e, desde então, já foram realizadas oito
edições da iniciativa. Nelas, foram proferidas mais de 100 mil sentenças e
concedidas 50.891 medidas protetivas, após 860 júris e 118.176 audiências. A
proposta integra a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres, criada pela Portaria n° 15 do CNJ, em 2017.
Justiça restaurativa
Além
da Portaria, o CNJ expediu recomendação aos tribunais, em agosto, para que
técnicas da Justiça restaurativa passem a ser usadas em casos que envolvam
violência contra a mulher. Segundo a carta de recomendação, "devem ocorrer
como forma de pacificação, nos casos cabíveis, independentemente da
responsabilização criminal, respeitando-se a vontade da vítima".
No
entanto, a iniciativa da Semana Paz em Casa e o uso de técnicas baseadas na
busca de resolução de conflito caracterizado como crime entre infrator e vítima
é polêmica. Teme-se que essas medidas possam desestimular denúncias e levar à
manutenção de relações violentas.
Em
audiência pública realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da
Câmara dos Deputados, no fim de setembro, a Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão (PFDC), a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) e
especialistas criticaram a recomendação.
A
procuradora Deborah Duprat avaliou que a medida "pretende neutralizar mais
uma vez essa violência em prol da chamada unidade familiar, que é um histórico
do patriarcado no Brasil". Além disso, dado que o modelo de Justiça
Restaurativa tem sido usado para desafogar o poder Judiciário, a procuradora
avalia que pode acarretar em menor persecução penal.
Silvia
Chakian aponta que tais técnicas são interessantes para determinados casos,
inclusive para que conflitos sejam resolvidos de outras formas que não por meio
da punição, por exemplo, com o encarceramento.
Não
obstante, ela alerta que sua adoção deve ser vista com "muito cuidado" em casos de
violência contra a mulher, "porque
quando a gente fala de violência contra a mulher, estamos falando de uma
relação desigual, marcada pelo poder". Por isso, "a pretexto de haver reparação, não pode fazer
com que a mulher tenha que suportar violência".
A
Agência Brasil procurou o CNJ para comentar a política, mas não houve
disponibilização de fonte até a publicação desta reportagem. A assessoria do
órgão ecaminhou publicações sobre a recomendação, nas quais o Conselho aponta
que a implementação de técnicas de Justiça restaurativa, feita a pedido da
presidente do Conselho e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen
Lúcia, tem o intuito de possibilitar a recomposição das famílias e, no longo
prazo, a pacificação social, por meio do reconhecimento de erros e
responsabilização pelos atos praticados.
Legislação específica
Há
mais de dez anos, desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, o Poder
Judiciário passou a se defrontar com uma realidade que, com frequência,
escapava aos autos. A violência contra a mulher, muitas vezes vista como uma
questão doméstica, ganhou visibilidade e tornou-se uma questão pública.
De
lá para cá, outras iniciativas colaboraram para essa mudança, como a aprovação
da Lei do Feminicídio, que tipificou o homicídio motivado pela condição de
gênero da vítima e criou agravantes para situações desse tipo. Apesar desses
avanços, casos comuns como o assédio a mulheres no transporte público, por
exemplo, trouxe à tona questionamentos sobre como a Justiça aborda a questão.
A
promotora Silvia Chakian avalia que as leis são importantes não apenas pelo
aspecto da punição, mas porque determinam que o Estado não pode continuar
neglicenciando a violência e as mortes das mulheres.
"A Lei do Feminicídio não cria só o crime de feminicídio, ela traz uma visão muito mais ampla. Engloba desde a forma como esses casos são noticiados, como a polícia vai a campo preservar o local dos fatos, como o legista vai fazer sua abordagem. Ela deve fazer com que esses profissionais atuem pensando no contexto de violência contra a mulher, na relação desigual de opressão que ali existia.
A
mudança de entendimento deve chegar aos juris, para que aqueles que examinam os
casos não admitam argumentos ainda comuns, "como a tese do crime
passional, de que matou por amor ou em um ato de loucura. Não se admite mais
esse tipo de argumento".
Para
que essa nova concepção seja firmada, a promotora acredita que "ainda
temos muito que avançar na incorporação de todos os aspectos", por isso
defende a ampliação de políticas de formação para os operadores do Direito.
Ela
conta, por exemplo, que ainda é comum que operadores não atribuam a categoria
feminicídio de forma adequada, o que ocorre, por exemplo, quando não se
identifica essa tipificação penal no inquérito, mesmo quando a narrativa dos
fatos evidencia tratar-se de crime associado ao fato da vítima ser mulher.
Promotora há 18 anos, ela observa, contudo, "uma evolução do tratamento muito grande".
A
opinião é compartilhada pela Coordenadora da Casa da Mulher Brasileira no
Distrito Federal, Iara Lobo. "O
patriarcado ainda impera e permeia todas as camadas da sociedade, mas esse
entendimento, até por causa das leis, tem mudado bastante".
Ela
exemplifica, por exemplo, que as mulheres têm sido questionadas, com mais
frequência, se querem ser ouvidas na presença do agressor, situação que está na
lei, mas que não era respeitada.
Apesar
desses avanços, ela relata que algumas dificuldades permanecem. Advogada, Iara
conta que muitas mulheres não são acompanhadas por advogados em audiências.
"Na prática, as mulheres ficam sem
acompanhamento de advogado e isso é uma falha terrível, porque toda pessoa que
vai a uma audiência o que quer é se sentir segura. Ainda mais quando está
envolvida uma situação de violência", afirma.
Em
todo o Brasil, uma em cada três mulheres sofreu algum tipo de violência no
último ano. Entre as maiores de dezesseis anos, 40% das brasileiras sofreram
assédio dos mais variados tipos, sendo que 36% receberam comentários
desrespeitosos ao andar na rua (20,4 milhões de mulheres) e 10,4% foram
assediadas fisicamente em transporte público (5,2 milhões de mulheres).
Os
dados são da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil,
fruto de uma parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o
Datafolha. (Por Helena Martins, no HuffPostBrasil).
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Manifestante protesta em São Paulo contra violência contra mulheres. |
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