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Quem foi Maria Madalena? (Foto: Divulgação). |
Não
só as novelas bíblicas da TV Record estão preocupadas em exumar, com requintes
de duvidoso realismo, as figuras nebulosas do Velho e do Novo Testamento.
A
missão de entender a natureza, em carne e osso, de criaturas edulcoradas pela
narrativa religiosa incorre, na visão dos crentes, no pecado do sacrilégio, mas
nem todos os estudos recentes e as últimas encenações têm como objetivo impor
uma visão iconoclasta e desmistificadora em relação às Escrituras e à tradição
dos cultos.
Esta
Maria Madalena que a Netflix está botando no ar, por exemplo, filme de produção
própria, trafega por um fio que desmente mentiras e mal-entendidos sem ofender
a fé. Pode, portanto, agradar aos crentes dando uma piscadela para os céticos.
De todo modo, arrisca-se a sugerir uma intimidade entre o Cristo e sua
companheira que o pudor episcopal teima em esconder.
!Maria Madalena é, ela mesma, um enigma tão
intrincado, tão polêmico e tão atraente quanto aquele que envolve o Cristo
histórico.
Os
Evangelhos a citam 14 vezes, ao passo que a própria mãe do Cristo só merece
sete menções. É um incontestável atestado de sua presença ao pé do Nazareno
numa época em que o papel das mulheres era meramente figurativo – e
reprodutivo.
Maria,
a que veio de Magdala, não era como as outras. Estava com Jesus na Galileia,
onde ele anunciava o reino de Deus e curava os enfermos e os aleijados.
Acompanhou Jesus quando ele partiu para Jerusalém, de acordo com a profecia.
Quando foi pregado na cruz pelos romanos, abandonado pelos discípulos, a
Madalena estava presente.
Ela
assistiu ao corpo ser levado para a tumba, fechada com uma pedra. No terceiro
dia, Maria Madalena descobriu que o túmulo estava vazio. Ouviu uma voz, ela se
virou e viu Jesus. Estendeu a mão para tocá-lo. Devia ter essa prerrogativa.
Mas ele disse: “Não me toques”. E pediu a ela para espalhar ao mundo a
boa-nova.
“A
mulher é em todas as coisas inferior ao homem”, escreveu o historiador judaico-romano
Flavius Josephus acerca da lei da Torá. “Deixem-na, portanto, ser submissa, não
para sua humilhação, mas para que ela possa ser dirigida; porque a autoridade
foi dada por Deus para o homem.”
Não
por acaso, a Maria de Magdala ingressara com ressalva maliciosa na narrativa
bíblica, via Evangelho de Lucas (8:1-3), já fazendo parte da comitiva devota
que acompanha as pregações do Cristo no ministério da Galiléia. Ela “fora de
quem saíram sete demônios”.
No
melhor dos casos, pode significar que ela tivera sete homens, o que reforça a
confusão que se estabelecera, no mesmo Evangelho de Lucas, com aquela “mulher
da cidade”, “um pecadora”, a qual, ao saber da presença do pregador por ali
“trouxe um vaso de alabastro com bálsamo e colocou-se a seus pés, chorando, e
começou a lavar seus pés com lágrimas, e os enxugava com os cabelos, e beijou
os seus pés e os ungiu com unguento… E ele disse a ela: ‘Os teus pecados estão
perdoados’” (Lucas, 7: 37-50).
Só
em 1969 é que o Vaticano se incumbiu de desfazer a confusão, conta o
historiador americano Michael Haag, em seu Maria Madalena, que acaba de ser
publicado no Brasil. Confusão que foi por séculos e séculos conveniente,
diga-se, para o cânone eclesiástico, no qual as mulheres ou tinham de se
submeter ao papel mundano, suspeito, secundário da discípula de Magdala ou eram
espiritualizadas, divinizadas, destituídas de toda e qualquer condição humana,
como a Virgem Maria.
Como
atesta o jornalista e pesquisador brasileiro Luiz Cesar Pimentel, em seu Jesus,
uma Reportagem, os sucessivos concílios e sínodos desde a Idade Média só
trataram de emoldurar a trajetória do Cristo e seus seguidores – e seguidoras –
de acordo com a doutrina da Igreja. Em cruas palavras: mulher, tal como
Madalena, ou era santa ou era puta.
Revisar
historicamente os fatos relatados pelas Escrituras pode pôr em xeque, sim,
velhos dogmas e antigos mitos. Os quatro Evangelhos, base para a narrativa
cristã, foram escritos décadas depois da morte do Cristo, a partir de relatos
orais nem sempre precisos.
Dos
evangelistas, só João foi contemporâneo dos fatos. Mas a exegese crítica visa,
como anuncia Pimentel, muito mais uma busca, ao estilo jornalístico, da verdade
dos fatos do que um desafio à versão proposta pela fé.
Pimentel
cita profusamente as investigações de um fórum multidisciplinar e
pluriconfessional denominado Jesus Seminar, que, a partir de 1985, reuniu mais
de 200 experts para um mergulho isento, mas minucioso em toda a literatura
cristã.
Do
revisionismo, a nova Madalena vai emergindo, com direito até a certas
liberdades, digamos, poéticas. No filme da Netflix, por exemplo, ela aparece ao
lado direito do Cristo naquela que seria a Última Ceia. Na antológica versão
iconográfica de Leonardo da Vinci (1452-1519), a figura andrógina seria São João,
o mais jovem dos discípulos.
Dan
Brown, no bombástico O Código da Vinci, insiste que é Madalena, credenciada
pela circunstância de ser a consorte do Cristo. Ele a amava como um homem ama
uma mulher, defende Brown. Costumava beijá-la na boca, o que era um escândalo.
Os outros discípulos tinham ciúme dela e se queixavam abertamente. Casaram-se
em Canaã (as tais bodas em que faltou vinho, para desespero de sua mãe Maria,
eram do próprio Cristo). Tiveram uma filha, Sara, cuja descendência prossegue
no tempo, até hoje.
Após
a morte de Jesus, Madalena e Sara, ajudadas por José de Arimateia,
refugiaram-se no sul da França – onde a verdade sobre o Cristo foi preservada
ao longo dos tempos.
Os
hereges cátaros conheciam o segredo. Na igrejinha de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume,
na Provença, estariam os ossos da mulher do Cristo. Ou em Vézelay, na Borgonha.
A tradição gnóstica, que redimiu Madalena do ostracismo, aceitava Jesus como
profeta, mas não como Deus. Descria da ressurreição. Mas esta já é outra
história. (Com informações de CartaCapital).