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(FOTO/ Reprodução). |
Essa constatação (na foto) explica o que significa MACHISMO ESTRUTURAL. Significa que o homem é formatado para praticar o machismo sem reconhecer, pois existem mecanismos (na lei, na família, na escola, nas mídias, religião...) para forçar a naturalização dessas práticas, impedindo que elas sejam reconhecidas por quem pratica e submentendo as vítimas de tais práticas à violenta a aceitação.
Estrupro
Culposo é mais um mecanismo para inocentar a violência e torná-la
"natural", alegando que o estuprador violou o corpo da vítima sem ter
intenção de estuprar. Significa dizer que a responsabilidade pelo ato de
violência se localiza no campo das intenções, na subjetividade, ou seja, no
campo dos sentidos. Mas se esses sentidos não são reconhecidos nem admitidos,
então não há como responsabilizar.
Como
responsabilizar um predador que, por necessidade física, atacou sua presa? Não
havia intenção, o ato foi motivado apenas por uma necessidade irracional. Logo,
por esta lógica sobre os animais, não havia intenção por que o desejo motivado
pela necessidade física não passou pela reflexão.
Existe,
então, algumas diferenças entre o desejo (intenção) e a realização desse
desejo. E uma dessas diferenças pode ser interpretada como uma ponte que pode
ou não ser percorrida, podendo ou não se efetuar como ato, a depender da
motivação para realização desse desejo e da reflexão sobre esta motivação. Essa
ponte entre o desejo e o ato é o que poderíamos chamar de potência. No caso em
questão, o que está sendo alegado é que o estuprador executou o ato mas não
teve a intenção. Como se ele fosse um animal movido por uma necessidade física
que se pretende admitir como "natural", cuja motivação não passou
pela reflexão. O senso de justiça se fragmenta e se perde na ponte que liga o
ato à intenção, movendo minha reflexão por algumas questões.
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Karla Alves. (FOTO/ Reprodução/ Facebook). |
Supondo
(apenas uma suposição) que nós estamos aceitando o veredito como verdade, se o
estuprador não tinha intenção, então o que o motivou a estuprar a vítima? Em
outras palavras, o que potencializou a sua intenção "inexistente"
(não consciente) a se tornar ato?
Talvez
a resposta esteja sólida como um concreto sustentando a estrutura social que
favoreceu o nascimento deste país.
Se
os antropólogos do imaginário fizessem uma expedição nas ruínas dessa estrutura
patriarcal, iriam revelar que em cada atitude machista reproduzida diariamente
e ensinada desde a infância, se estabelece uma ponte que potencializa o estupro
escondendo a intenção e silenciando o ato através da subliminar expropriação da
integridade feminina.
Fui
ensinada desde pequena a cruzar as pernas, a me sentar de modo que não
provocasse a frágil virilidade masculina. Isso me fazia pensar que o homem era
um bicho incontrolável que me atacaria se eu me movesse como algo vivo. Eu
deveria, então, demonstrar que não tinha vida, já que além de mulher eu sou
negra, a representação do objeto sem vida para ser explorado pela sexualização
e pela força de trabalho. Essa era (é) a representatividade que importa para
uma democracia representativa.
Ainda na primeira infância eu tive contato com o estupro sem ter a menor ideia do que essa palavra significava, por que eu nunca tinha se quer escutado essa palavra. Então o homem me mostrou seu pênis e perguntou se eu "aguentava". Eu não fazia ideia do que ele estava me perguntando. Aguentar o que? Como? Aquela pergunta não se articulava com nenhuma imagem que fosse familiar para minhas idéias. Mas aquele homem era neto da senhora respeitada no bairro que tinha televisão em casa e deixava bondosamente que meu irmão e eu assistíssemos o Chaves em sua casa, já que nós não tínhamos tv. Eu me sentia segura. E essa segurança foi abalada sem que eu tivesse a chance de perceber intenção.
Não
cabe aqui perguntar se havia maldade. Porque a malícia é peça cultural louvada
por uma religião que só cultua um Deus por causa do seu opositor. Se o diabo
deixasse de existir, Deus perderia seu sentido e a igreja perderia seu tesouro.
É por isso que as duas imagens são louvadas ao mesmo tempo. Uma que aparece à
nossa consciência como o Bem e a outra submetida ao medo inconsciente. O medo é
a potência alimentada que move o "devoto" a correr do diabo, o deus do
mal, em direção ao deus que representa o bem. O medo é a ponte invisível que
liga o bem e o mal. Sem o medo do castigo (inferno) não teria motivação para
correr em direção à recompensa (paraíso). Sem o medo da miséria não haveria
motivação para se adquirir dinheiro. Uma vez que os prazeres do paraíso é
minimamente acessado, lógico que o medo da miséria (ou do mal, do inferno) é
"esquecido", afastado da consciência que se concentra em aproveitar o
que é bom. Nessa mesma lógica binária, maniqueísta, se a intenção está
"esquecida", afastada da consciência por um cotidiano que afirma a
todo instante que a violação da integridade feminina é algo "normal",
pois o homem é reconhecido como homem através do seu sexo posto em prática,
então a mulher que se comporte de acordo com o sujeito homem, cruzando as
pernas e escondendo qualquer detalhe que provoque a manifestação dessa
masculinidade que está sempre a postos para se tornar ato assim que houver uma
"possibilidade", seja ela admitida ou não.
Se a
intenção do estuprador está submersa no inconsciente coletivo que foi
construído por uma moral pautada no machismo e, portanto, no direito do homem
de exercitar sua masculinidade, então sua consciência será motivada a executar
essa masculinidade de forma que a violação da integridade feminina seja
interpretada como algo normal. Isso significa que o homem não é humano, é um
animal movido por seu sexo, sem ter acesso a sua razão. E a mulher também é
formatada pela mesma lógica de desumanidade, sendo obrigada a esconder qualquer
manifestação espontânea de vida para se proteger do bicho homem.
E se
esta mulher trouxer em si qualquer outra característica que reforce a idéia de
objeto, como a cor de sua pele e outros traços fenotipicos, então ela que fique
em total silêncio e invisibilidade se quiser continuar existindo. Porque a todo
instante a potência violadora do bicho homem estará sendo alimentada por todos
os meios possíveis para que ele exercite sua "função" de sujeito
homem na sociedade sem perceber sua própria intenção, pois é peça (tijolo)
fundamental na manutenção de uma estrutura que nos condiciona a todes.
Quem
se beneficia dessa estrutura está patrocinando sua manutenção. E enquanto essas
idéias permanecem alojadas no campo inacessível das "intenções" não
admitidas, a estrutura se solidifica cada vez mais.
As
mulheres de muitas gerações somaram seus esforços às mulheres desta geração
para romper com esse silêncio saindo do lugar da invisibilidade imposta. E o
que esse veredito privilegiado está fazendo é muito mais do que inocentando a
barbárie, pois está nos dizendo que as
mulheres devem voltar ao silêncio e a invisibilidade nesta sociedade. O nome
que se dá a isso é retrocesso. E quando eu digo que este é um veredito privilegiado
é porque o mesmo tratamento jamais seria concedido a um homem preto numa
sociedade estruturalmente racista. É por isso que um homem preto deve refletir
muito mais sobre a violência que pratica como homem, pois sua masculinidade não
será privilegiada por sua cor na hora do julgamento.
Então,
HOMENS, admitam para si mesmos que vocês estão formatados para não reconheceram
suas próprias intenções e para não admití-las covardemente, caso reconheçam.
Por que essa é a herança da "genética social" que está resevada para
vocês numa sociedade patriarcal e que nos ensina que vocês serão beneficiados
por isso por acreditarem que estão exercendo sua liberdade, quando estão na
verdade sendo submetidos à peças de controle de uma estrutura. Encontrar
mulheres que silenciam (por vergonha da exposição, por medo, por inúmeros
outros fatores fornecidos pela mesma lógica patriarcal) diante dessas práticas
irá com toda certeza alimentar essa potência animalesca, deixando vocês homens,
num lugar de conforto para continuarem praticando seus atos socialmente destituídos
de intenção. Por isso querem nos submeter ao silêncio através do medo provocado
pela violência. Isso tudo tem a vê com cada um de vocês e com cada uma de nós.
Por isso escutem quando uma mulher lhe disser que está se sentindo violada.
Escutem e considerem. Porque talvez seja a revelação dos primeiros degraus da
violência que você está cometendo sem perceber por que teve seus sentidos
formatados para não perceber.
Vejo
e o mecanismo me diz para não acreditar no que está diante de mim; me diz para
não refletir sobre o que vejo. Ou seja, é o sentido da visão sendo
cotidianamente ferido para que cegos, possamos ser melhor conduzides pela
estrada da exploração.
Nenhuma mulher deve se diminuir, silenciar ou se anular para caber em modelos de relações sociais ditados pelo racismo, pelo machismo ou por qualquer que seja a forma de opressão.
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Karla Alves é
Historiadora pela Universidade Regional do Cariri (URCA), integrante do Grupo
de Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa e colunista do Blog Negro Nicolau.
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