O sol nasce para tods, mas é preciso muits queimando para que alguns poucos desfrutem de vastas sombras, por Karla Alves


Karla Alves. (FOTO/ Reprodução/ Facebook).

Há alguns dias após uma palestra que ministrei numa instituição de ensino para superiores uma mulher branca que também havia proferido uma palestra antes de mim me procura ao final da minha fala pra dizer (com os olhos emocionados) que "não tinha culpa de ser branca". Eu respondi que eu também não tinha culpa dela ser branca, que eu abria mão do legado de opressões destinado à pessoas de minha cor e perguntei se ela estava disposta a abrir mão da herança de privilégios por ela gozados por ter a pele clara. Não houve resposta. Nesse caso (eu disse pra ela), não venha me afirmar que está do mesmo lado que eu nessa luta. Daí pensei sobre a serventia dos discursos que repetimos para nós mesmos e a quem de fato esses discursos acomodam.

Outros ditados são comumente repetidos pelo verbo popular para nos acomodar nas condições sociais que nos destinam, como o do copo vazio que tá cheio de ar. Sem menosprezar o poder sagrado e elegante do Ar, me pergunto (em termos materiais): um prato ou um copo cheio de ar serve pra encher o bucho de quem mesmo? Bem, no Cariri muits "Mestres" da cultura popular (prets em sua graaaaaande maioria) têm muitos copos, pratos e panelas vazios sobre a mesa enquanto "Mestres" e "Doutors" superiores (brancs em sua quase totalidade) se afirmam como "intelectuais da cultura" disfarçando sua obesidade conceitual em sandálias de couro ao mesmo tempo em que ditam regras e ditados para nos convencer de sua eterna síndrome de princesa Isabel.

As relações raciais que permeiam o debate sobre as manifestações culturais brasileiras definem o lugar que cada qual ocupará debaixo do sol. O grande intelectual negro Abdias Nascimento já nos alertava sobre as motivações dos funcionários da corte portuguesa no Brasil colônia que permitiam às celebrações de origem africana:

"Para o governo (...) o batuque é um ato que, uma vez por semana, força todos os negros - automaticamente e sem conhecimento consciente - a renovar aqueles sentimentos de aversão mútua que eles tem por concedido desde o nascimento (...) Esses sentimentos de hostilidade mútua podem ser vistos como a mais poderosa garantia que as maiores cidades do Brasil desfrutam. Suponha que um dia as várias nações africanas esquecessem sua tradição de ódio, inculcado de uma para outra. Suponha que (...) se tornassem amigos e irmãos: o resultado seria uma espantosa e inelutável ameaça ao Brasil, que terminaria com a desolação do país inteiro". (Extraído do livro O genocídio do negro brasileiro de Abdias Nascimento).

Como podemos ver, não havia benevolência ou tolerância dos senhores dirigentes do Brasil ao permitirem e até encorajarem os folguedos ds negrs escravizads, como nos fizeram pensar aqueles que nos ensinaram a pensar e insistem em se desenhar sob a ótica do mito do "Senhor Benevolente". Muito diferente nos atesta a escrita de um negro intelectual como Abdias ao nos apresentar tal documento que revela as intenções por trás das conceções dos Senhores, que visavam estabelecer a discórdia entre os povos negros através das diferenças culturais que cada nação negra trouxera em seu corpo, mente e coração.

De lá pra cá a síndrome senhorial se adaptou ao mercado e garante cargos com altas remunerações em instituições culturais para os herdeiros da pele branca e da vasta sombra, enquanto mantém a disputa e a discórdia entre os que tostam a pele debaixo do sol manifestando sua herança cultural, seja pelo verso cantado, dançado ou dito, garantindo a identidade nacional que é NEGRA, embora apresentada como mestiça (elemento fundamental da política de genocídio contra o povo negro). Os miseráveis cachês destinados aos grupos de tradição, assim como a política do Tesouro Vivo (deturpada em sua implementação vindo a ser hoje uma lei semelhante a dos Sexagenários, que "liberta" quem já beira à morte e os entrega à própria sorte) são alguns dos mecanismos de manutenção da disputa e da discórdia entre brincantes da tradição... Nada de novo, como podem ver.

A apropriação de nossas mentes e corpos continua. Os Senhores e as Sinhás ainda são xs mesms que continuam se passando por generosxs por nos servirem cafezinho enquanto roubam nosso ouro, e ainda querem nossa gratidão.

Nós negras e negros ainda somos maioria populacional nesse país erguido sobre a exploração do corpo e da mente negra. Precisamos construir pontes sobre a lama de discórdia que nos destinaram.

O couro do pandeiro no lombo negro é quem tosta no sol pro branco dançar, aplaudir e cantar engordando seu saldo bancário nas sombras da exploração.

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Karla Alves é Historiadora pela Universidade Regional do Cariri (URCA), integrante do Grupo de Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa e colunista do Blog Negro Nicolau.

Um comentário:

  1. Lindo texto,precisamos quebrar as correntes que prende nossas mentes e corpos, parar de olhar para as nossas diferença e concentrar no que nos une para lutar contra o opressor.

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