![]() |
A PEC do trabalho escravo prevê que os donos ou adminis tradores de terras onde tenham pessoas trabalhando em con dições de escravidão poderão ser punidos e suas terras confiscadas |
Sob
qualquer ponto de vista, trabalho escravo contemporâneo é algo tão absurdo que
ninguém, em sã consciência, é capaz de defendê-lo publicamente. Não é apenas um
crime contra os direitos humanos. Também configura concorrência desleal e
contribui para manchar o nome dos produtos brasileiros no exterior, dando de
mão beijada razão para o erguimento de barreiras comerciais não tarifárias sob
justificativa social.
De
acordo com o artigo 149 do Código Penal, são elementos que determinam trabalho
análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o
trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de
se recuperar fisicamente e ter uma vida social), cerceamento de
liberdade/trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes,
isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão
por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a
ele).
Varas,
tribunais e cortes superiores utilizam a definição desse artigo. Em decisões da
maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal fica clara a compreensão de
que eles entendem o que é esse crime. A Organização Internacional do Trabalho
apoia a aplicação do conceito brasileiro. Gulnara Shahinian, relatora para
formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, afirmou que o mundo
precisa copiar o exemplo do Brasil.
Mesmo
assim, vira e mexe há políticos que reclamam que fiscais do trabalho consideram
como escravidão a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a
falta de copos descartáveis. Isso não é verdade. Afinal de contas, qualquer
fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas
encontrados. Mas não são essas as autuações que configuram trabalho escravo.
Quando ouço esse blablablá, faço uma rápida pesquisa no Ministério do Trabalho
e Emprego e descubro dezenas de outras autuações que o empregador em questão
recebeu. Sempre me surpreendo com as fotos da “espessura do colchão” e os
depoimentos dos trabalhadores “sem copos plásticos”.
Ao
afirmar que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo – simplesmente
porque não concordam com ele –, essas pessoas querem desestabilizar um dos
raros processos em que o governo federal aprendeu a caminhar. Cerca de 46 mil
pessoas foram libertadas desde 1995, o que faz do combate à escravidão uma
política de Estado e não de partido, muito menos de governo.
A
“PEC do Trabalho Escravo”, proposta de emenda constitucional que prevê o
confisco de propriedades flagradas com esse crime e sua destinação à reforma
agrária e ao uso social urbano, está para ser votada no plenário do Senado. Se
aprovada em dois turnos, passa a vigorar em todo o país, pois já foi aprovada
na Câmara. Ela é considerada uma espécie de “segunda Lei Áurea”, dado o impacto
que sua aprovação causaria.
A
bancada ruralista quer atrelar a sua aprovação ao afrouxamento do conceito.
Praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os
tempos mudaram e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis.
Promovem, dessa forma, a “insegurança jurídica” no campo e na cidade. O governo
federal disse que isso não está em discussão. A ver.
Mas,
se ficar decidido que o crescimento econômico é mais importante que a dignidade
das pessoas, podemos – em um esforço da nação – revogar também a primeira Lei
Áurea. Que tal?
O Blog INFORMAÇÕES EM FOCO extraiu excelente texto de Leonardo Sakamoto,
jornalista, doutor em Ciência Política, professor de Jornalismo da PUC-SP e
coordenador da ONG Repórter Brasil. O texto foi publicado originalmente no
Jornal Gazeta do Povo. O texto pode ser encontrado também no site Reporter Brasil.