O
espetáculo O Topo da Montanha, adaptação do texto de Katori Hall, dirigida por
Lázaro Ramos, produzida e protagonizada por ele e Taís Araújo, faz sua estréia
na cidade do Rio de Janeiro neste próximo dia 20 de Janeiro, feriado de
aniversario da cidade, no Teatro do Sesc.
Como
águas turbulentas ante a calmaria de um riacho; como um debate entre a sagaz
sede de justiça e a paciência histórica, própria dos grandes sábios, assim é o
encontro entre o imponente líder Martin Luther King e a humilde camareira
Camae, num texto incrível e surpreendente, brilhantemente interpretado pelo
casal mais emblemático do empoderamento negro atual.
Você é negra? Você é negro? Então
deve assistir!
Sim,
brancos de boa de vontade devem assistir também. Mas é certo que para negras e
negros que lotaram as apresentações em São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Bahia,
o significado de estar ali em comunidade e experimentar este texto e esta
interpretação é algo diferente, revelador e profético. Uma experiência
magistralmente descrita pela jornalista e militante do movimento negro Ana
Flávia Magalhães Pinto, em suas Notas a partir do lugar de público negro, já
publicado por este Blog e que recupero abaixo. Vale a pena ler. Vale a pena
assistir.
Depois nos diga se aceita o bastão.
Notas a partir do lugar de público
negro
Por Ana Flávia Magalhães Pinto*
Longe
de ser uma crítica de arte, escrevo a partir tão somente do lugar de público.
Mas não apenas público, substantivo carente de materialidade. Falo como
integrante do público negro, um conjunto de espectadores/as comumente
subestimado ou até muito sonhado, porém tido como distanciado das salas de
teatro, cinema, galerias, etc., por razões que dialogam com as violentas e
sofisticadas práticas de exclusão sociorracial.
Faço
isso porque acredito sinceramente que, afora autoras/es, obras e críticos/as
especializados/as, o público é também fundamental para que a arte exista. E
nós, público negro, não só existimos, mas também, tal como aconteceu na noite
do último sábado (10), podemos nos fazer presentes em quantidade e qualidade!
Estou
me referindo à experiência de assistir à peça O Topo da Montanha, uma adaptação
do texto de Katori Hall, dirigida por Lázaro Ramos, produzida e protagonizada
por ele e Taís Araújo, que estreou no Teatro Faap, São Paulo.
Eu
e um casal de amigos nos dirigimos a essa casa localizada no elegante bairro de
Higienópolis bem achando que seríamos a famigerada limitada cota negra entre
uma maioria de espectadores brancos. Diferentemente do previsto e como chegamos
cedo, pudemos nos deliciar ao ver a entrada de seguidos pequenos grupos de
amigos, famílias, casais e homens e mulheres solitárias de pele escura, cabelo
crespo e com umas caras de contentamento indisfarçável! As pessoas estavam
gostando de se ver ocupando aquele lugar!
De
todo modo, é preciso dizer que essa não foi a primeira vez que vi isso
acontecer. Na verdade, observo esse fenômeno se repetir cada vez com mais
frequência e intensidade nos últimos anos. Considero que eu mesma sou prova
disso. Ouso até especular se a incorporação das cotas raciais ao debate público
já não está servindo para catalisar a expansão dos limites da participação
negra em outros espaços… É, pode ser, mas isso é assunto para outro texto.
Por
ora, é melhor continuar no Topo da Montanha. Aliás, a escolha desse texto é,
por si, um grande presente, sobretudo para nós, público negro. Em tempos de
marchas em defesa da vida da população negra no Brasil , o que inclui
aproximações e conflitos de natureza variada , recuperar a trajetória de Martin
Luther King a partir do registro de múltiplas dimensões da vida humana serve
como uma boa oportunidade para se refletir como temos encaminhado nossas
práticas de resistência ao que nos oprime. O reconhecimento da confluência
entre medo e esperança, egoísmo e altruísmo, vaidade e humildade num sujeito
emblemático como King é, de fato, uma das várias qualidades da escrita de
Katori Hall.
Natural
de Memphis, Tennessee, ela é uma jovem escritora negra, de 34 anos, formada em
instituições de renome como Columbia e Harvard, tendo sido a primeira mulher
negra a receber o prêmio Laurence Olivier de melhor peça estreante, em março de
2010, por The Mountaintop, título original em inglês. Para além dos títulos
acadêmicos e prêmios, vale mesmo a pena acompanhar a trajetória de Katori por
sua capacidade criativa. Atualmente, ela está trabalhando em seu primeiro filme
de curta metragem, Arkabutla, que fala sobre relações familiares e racismo.
Outras
escolhas feitas para o espetáculo também nos convidam a reconhecer e destacar
mais um punhado de talentos negros do teatro. A consultoria dramática e cênica
é assinada por Ângelo Flávio. Ator, dramaturgo e diretor, ele é um dos
expoentes do teatro negro brasileiro, fundador da Cia Teatral Abdias Nascimento
(CAN) na UFBA, em 2002, e responsável, entre outras, pela montagem da peça A
casa dos espectros (2006), a partir da obra Funnyhouse of a Negro (1964), de
Adrienne Kennedy, outra escritora afro-estadunidense.
O
figurino é de Tereza Nabuco, artista que há anos atua em produções da Rede Globo.
O desenho de luz, recurso fundamental para a garantia da dramaticidade do
espetáculo, está sob os cuidados do experiente iluminador cênico Valmyr
Ferreira. Afora diversos trabalhos no teatro, Ferreira assinou a iluminação da
exposição “Abdias Nascimentos 90 anos Memória Viva”, no Arquivo Nacional do Rio
de Janeiro, 2004. Por sua vez, o cantor, ator, pianista, compositor e arranjador
Wladimir Pinheiro assina a Trilha Original. Até bem recentemente, Wladimir
esteve em cartaz com a peça Ataulfo Alves – O Bom Crioulo, dirigida por Luiz
Antonio Pilar, no Teatro Dulcina do Rio. Bem que essa também poderia circular
por outras cidades.
Somado
a tudo isso, a interpretação da dupla Taís Araújo e Lázaro Ramos é capaz de
emocionar ainda mais. Além de sustentarem muito bem o dinamismo das falas e do
encaminhamento dado ao toque de inusitado fantástico da narrativa (tem que ir
para entender!), os atores são capazes de garantir muito sentido até para os
momentos de silêncio.
A
performance de Taís, em especial, está digna de todos os aplausos de pé ao
final. Vendo a maturidade de sua interpretação, foi impossível não lembrar do
discurso de Viola Davis ao receber o Emmy 2015 de Melhor Atriz: “A única coisa
que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não
pode vencer o Emmy por papeis que não existem”. E mais uma vez livre de
sabotagens, Taís Araújo se mostra uma gigante no palco. A atuação de Lázaro
Ramos não deixa por menos. O brinde extra é perceber que o homem está jogando
tão bem em tantas áreas!
Apagam-se
as luzes, vem aquela sensação de quero mais! E, assim, ir ao teatro firma-se
como algo que faz muito sentido para a vida, mesmo que isso implique
reorganizar as finanças da semana ou do mês! É isso, o teatro também é nosso
lugar, público negro!
*
Ana Flávia é Doutora e mestre em
História, jornalista, ativista do Movimento Negro, autora do livro “Imprensa
negra no Brasil do século XIX” (Selo Negro, 2010).
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Foto: Juliana Hilal. |