A
audiência pública sobre o projeto de iniciativa popular da Lei da Mídia
Democrática, realizada na terça passada (12), na Câmara, acabou se
transformando em uma discussão política e ideológica sobre as diferentes visões
da esquerda sobre a comunicação. E demonstrou a voracidade com que se dará, nas
eleições 2014, o debate no campo progressista sobre as reformas estruturantes
necessárias à consolidação da democracia brasileira.
Enquanto
os deputados do PT, PCdoB, PDT, PSB buscaram as convergências que os unem na
defesa do projeto, o PSOL fez duras críticas aos governos Lula/Dilma e
explicitou diferenças ideológicas que dividem os principais partidos de
esquerda que estão na situação e na oposição.
O
evento, organizado em conjunto pelas comissões de Educação, Cultura e Ciência e
Tecnologia, convidou a representante do Centro de Estudos de Mídia Barão de
Itararé, Sônia Corrêa, e a presidente do Fórum Nacional de Democratização da Mídia
(FNDC), Rosane Bertotti, que apresentaram o projeto da Lei da Mídia Democrática
aos deputados e representantes da sociedade civil. E lotou o plenário da casa
com parlamentares, militantes da causa e estudantes, muitos deles os mesmos que
ganharam as ruas, em junho, para protestar, entre outras coisas, contra a
mídia.
Presidente
da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão, a deputada Luíza Erundina
(PSb-SP) lembrou que o projeto aborda os principais pontos construído na 1ª
Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), ocorrida há quatro anos, que
deixou um grande legado sobre o tema. Para ela, o projeto tem o mérito de estar
fundamentado em um amplo processo de construção coletiva, a Confecom, além de
ser encaminhado ao congresso via iniciativa popular. A deputada ressaltou o
fato de que, apesar de haver consenso na sociedade sobre a importância de se
regulamentar a comunicação, o parlamento não responde a esta reivindicação
histórica da população.
O
deputado Paulo Rubem Santiago (PDT-PE) recordou a luta travada pela principal
liderança do seu partido, Leonol Brizola, contra os abusos da mídia e reafirmou
o apoio do seu partido à proposta. Ele cobrou uma presença mais efetiva do das
centrais sindicais nas mobilizações, considerando que elas também são vítimas
privilegiadas do oligopólio da mídia, assim como os movimentos populares e a
política no seu sentido mais amplo. “É essencial uma reforma democrática e
democratizante que transfira poder à sociedade”, ressaltou.
A
deputada Luciana Santos (PCdoB-PE) acrescentou que a luta pela democratização
da comunicação precisa sair da seara das entidades que debatem o assunto e
virar uma bandeira de toda a população. Segundo ela, uma pesquisa realizada
pela Fundação Perseu Abramo, que será lançada na semana que vem, revela que 71%
da população é favorável a algum tipo de regulação da mídia. “Todos os países
regulam a mídia, todas as outras concessões públicas do Brasil tem algum tipo
de regulação”, argumentou.
A
deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), à exemplo de Erundina, abordou a dificuldade do tema encontrar
abertura no parlamento. “Estou no meu quinto mandato e se há um tema que não
consegue avançar aqui, é este, até porque vários parlamentares são donos de
meios de comunicação”, observou. Segundo ela, a pauta sobre o tema é extensa, e
toda ela travada: seu projeto de regionalização da produção de comunicação
continua engavetado, enquanto a comissão criada para regulamentar a
Constituição de 88 aprovou, à toque de caixa, proposta bastante conservadora sobre
o tema.
A
deputada Fátima Bezerra (PT-RN) lembrou que a democratização da mídia está
diretamente ligada a outra pauta essencial à consolidação da democracia
brasileira: a reforma política. E ressaltou que ambas não conseguem avançar no
parlamento, apesar do compromisso assumido por seu partido com as duas
bandeiras. “Esses dois temas, quando caminham no Congresso, é para pior. Vejam o debate sobre essa minirreforma
eleitoral: é um insulto à sociedade se
discutir tamanho de adesivos quando precisamos de mudanças profundas”, pontuou.
Visões divergentes
A
cizânia começou quando o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) criticou a forma como
os movimentos de defesa da democratização da mídia e a esquerda tradicional
encaram o processo de comunicação. “Não podemos considerar os meios de
comunicação como controladores absolutos de corações e mentes. (...) Não vamos
avançar neste processo se não sairmos deste maniqueísmo simplista que
transforma a mídia em inimigo”, contrapôs.
Segundo
ele, a produção de sentidos se dá na recepção, cuja audiência é heterogênea.
Além disso, na opinião de Wyllys, os veículos de comunicação são arenas de
disputa. Como exemplo, citou o fato de, apesar dos meios de comunicação tenham
se aliado contra o governo petista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
não deixou de ser reeleito e de eleger a presidenta Dilma Rousseff, por conta
do Bolsa Família. “Não podemos tratar a
audiência como algo monolítico, porque a produção de sentido é feita na recepção,
a partir da posição do sujeito”, pontuou.
O
deputado - que é adepto das chamadas teorias da recepção e ganhou projeção
nacional ao vencer o reality show Big Brother, da TV Globo - criticou duramente
o descompromisso do governo do PT com a pauta da comunicação, nesses quase 10
anos de mandato. E defendeu o papel social das novelas na formação de
consciência e cidadania, postura conflitante com a da esquerda tradicional, que
julga o gênero como principal veia de transmissão dos valores da elite
dominante.
“No
momento em que o governo Dilma enterrava o projeto contra a homofobia, quem
manteve o assunto foi uma novela da TV Globo. As novelas, eventualmente,
politizam em temas em que o governo se omite”, justificou.
O
deputado Paulo Teixeira (PT-SP) argumentou a democratização da mídia, assim
como a reforma política, é tema fundamental para o aprimoramento da democracia
brasileira. E reconheceu que o governo petista deixou a desejar no tema, em
função da correlação de forças desfavorável. Ele defendeu que o governo
encaminhe ao congresso o projeto deixado pelo ex-ministro da Comunicação,
Franklin Martins, que enfrenta o assunto.
E criticou a atual forma de distribuição da publicidade estatal,
centrada nos meios convencionais, enquanto o mundo mudou e novos veículos
ganharam espaço nas redes.
Mais
direta, a deputada Fátima Bezerra ressaltou que e coligação que governa o país
não tem interesse nenhum na reforma política e na democratização da mídia.
“Isso
é o óbvio do óbvio. Todos nós sabemos que ela nuca vai aprovar nada
progressista. Por isso, a importância da mobilização popular”, acrescentou.
A
deputada Luciana Santos lembrou das implicações do caráter monopolista da mídia
brasileira no resultado do processo de comunicação, sustentando que, ainda que
o domínio não seja absoluto, o poder de criar consensos de uma mídia
concentrada é desproporcional e nocivo ao debate público inclusivo. “Quando se
tem um monopólio, você só reflete a visão de mundo daquele grupo. Isso é
explícito. E a história dos meios de comunicação no Brasil tem DNA”, argumentou.
Ela
lembrou também que Lula se elegeu em um processo democrático, dentro das regras
estabelecidas e, por isso, precisou fazer concessões. “Lula se elegeu. Nós não
fizemos uma revolução. O poder político do governo é muito menor do que
gostaríamos”, justificou.
Com
uma visão mais gramsciana do processo comunicacional, a deputada Erika Kokay
(PT-DF) acrescentou que vivemos uma espécie de luta de classes pós-moderna, em
que os meios de comunicação têm lado muito definido. Segundo ela, eles são
responsáveis por um forte processo de invasão da cidadania e desconstrução dos
sujeitos, que desestabiliza a correlação de forças. “É óbvio que a sociedade
está em disputa e que há outros espaços de construção do sujeito. Mas quando
esses outros espaços não estão fortes, a opressão da mídia é inegável”.
Kokay
também defendeu um virada no governo para enfrentar esse e outros temas
relevantes à democracia. “Temos um governo dominado por limites de uma eleição,
inclusive, midiática. O que foi possível construir de transformação dentro
desses limites já está se esgotando. Ou enfrentamos questões estruturantes, ou
paramos de avançar”, diagnosticou.
Numa
postura mais conciliadora, o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) agradou a ala
mais tradicionalista ao citar o velho Karl Marx – “as ideias dominantes de uma
época são as ideias da classe dominante”. Mas, em seguida, concordou com o
colega de partido ao admitir que os meios de comunicação desempenham papel de
vanguarda em assuntos nos quais o governo se omite. “A gente tem que considerar, sim, o receptor
crítico. Fiquei impressionado com a total rejeição da garotada que foi as ruas
em junho aos meios de comunicação”, esclareceu.
As
divergências políticas e teóricas preocuparam militantes da democratização da
mídia, que esperavam conquistar nos partidos de esquerda uma defesa mais
homogênea do projeto, que não encontra respaldo entre os setores mais
conservadores do congresso. Porém, divergências à parte, todos concordaram há
uma omissão do parlamento e dos sucessivos governos em relação ao tema, que é
preciso democratizar o acesso à mídia, regulamentar padrões mínimos de
procedimento para os veículos e rever as concessões historicamente tratadas
como armas para favorecimento político.
Via
Carta Maior