(FOTO/ Marcelo Camargo/ABR). |
Publicado
originalmente no Jornal da USP – Ao criticar a decisão do Supremo Tribunal
Federal de impedir que recursos públicos sejam usados para financiar sites
bolsonaristas, alegando que com essa medida a corte desrespeitou a liberdade de
expressão assegurada pela Constituição, e ao apoiar a apropriação com fins
políticos do feriado da Independência pelo presidente Jair Bolsonaro, o
patético manifesto de alguns empresários mineiros recolocou na ordem do dia o
impacto, na democracia, da disseminação de mentiras e informações falsas.
Quando
essa discussão começou, há alguns anos, a ideia era que as redes sociais
conduziriam a uma democracia digital, ampliando a participação cidadã no espaço
público da palavra e da ação. Hoje, contudo, o que se vê é preocupante, uma vez
que as técnicas de comunicação on-line simplificaram os debates, levaram à
substituição da reflexão por reações emotivas e permitiram a desqualificação
recíproca de adversários na vida política brasileira. Em vez de diálogos
consequentes, debates construtivos e acordos capazes de assegurar a vontade da
maioria sem desrespeitar os direitos da minoria, episódios como o do desfile de
blindados em Brasília, em agosto, e agora o da convocação da população para
apoiar Bolsonaro numa data cívica, fazem parte de um projeto de regressão do
regime democrático.
Ao
contrário do que se imaginava, a chamada democracia digital revelou-se
perigosamente corrosiva. Ela é uma falsa democracia, uma vez que a comunicação
em tempo real ampliou a irracionalidade das massas, estimuladas por
manifestações de ódio e intolerância emanadas do entorno familiar do presidente
da República. A volatilidade das informações transmitidas pela internet não
apenas passou a propiciar desordem, como também criou as condições de
instabilidade que alimentam crises de governabilidade.
Na
democracia digital, tudo dura pouco, o que abre caminho para improvisações e
falsas promessas, declarações insensatas e mentiras. E quanto maior é a
velocidade com que esse lixo eletrônico é disseminado, mais a lógica da ação
política é corrompida. Afinal se por um lado as redes sociais extravasam ira e
indignação, por outro não são capazes de viabilizar políticas proativas. Nos
espaços digitais, tudo é efêmero, o que acaba exigindo, como num círculo
vicioso, atos cada vez mais performáticos e discursos cada vez mais insensatos,
como se tem visto com os espetáculos circenses protagonizados por parlamentares
bolsonaristas. Graças à sua conectividade, as redes sociais muitas vezes
disseminam uma perigosa ideia de autogoverno e auto-organização, caminhando em
linha contrária à verticalidade das instituições do Estado de Direito, nas
quais as relações entre governantes e governados são mediadas por via
parlamentar. Outras vezes, disseminam uma não menos perigosa ideia de que
comandantes militares podem “pôr ordem no país”.
Além de não pensar, a internet e as redes sociais são parasitárias, na medida em que espalham os vírus das propostas autocráticas no ambiente que deveria ser o das liberdades públicas. Longe de ser o desdobramento evolutivo da democracia representativa, a democracia digital favorece a demagogia de políticos populistas, o que fica evidenciado pela forte semelhança das manifestações públicas – a começar pelas “motociatas” – do presidente Bolsonaro com as que eram feitas por Mussolini, na Itália, durante primeira metade do século 20.
A
internet propicia a expressão da opinião pública em tempo real, mas é
incompatível como práticas democráticas deliberativas, que operam em tempo
diferido, ou seja, de etapas que vão se sucedendo, uma a uma, até se chegar a uma
decisão legítima final. A internet também não elimina as relações de poder, mas
tende a transformá-las para pior. Ela pode ajudar a minar regimes autoritários,
é certo, mas não é suficientemente eficaz para manter uma democracia
consolidada. Ela derruba, mas não constrói, como tem dito o filósofo basco
Daniel Innerarity. Pelo modo como permite a disseminação de críticas
inconsequentes, de falas irresponsáveis e de narrativas mentirosas, o que se
tornou corriqueiro entre nós após a ascensão de Bolsonaro ao poder, a internet
gera expectativas infundadas. E também exagera possibilidades, expondo cidadãos
a um sem-número de riscos e permitindo a ascensão ao poder pelo voto direto de
ditadores que se valem das regras da democracia para miná-las, desgastá-las e
revogá-las.
Num
período histórico em que é difícil exercer uma cidadania crítica e responsável
em meio à multiplicação de lixo informático, não podemos jamais esquecer que o
funcionamento do Estado democrático de direito é vital para a preservação das
garantias fundamentais e das liberdades públicas – dentre elas a liberdade de
expressão. Mas em hipótese alguma se pode aceitar aventuras bizarras, como é o
caso, sob a justificativa de pedir que a população vá às ruas “em favor do
Brasil”, da apropriação das comemorações do feriado da Independência com o
objetivo de convertê-las numa antessala para o golpe.
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Por José Eduardo Faria, professor da Faculdade de Direito da USP. Publicado originalmente no Jornal da USP. Reproduzido na RBA.
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