Negros Lutando, de August Earle (1824), é considerada a primeira referência iconográfica da prática no Brasil. |
A
capoeira ajudou a moldar o samba e até o futebol do país, defende pesquisador,
que chama atenção também para as “dívidas não pagas” para com os povos
responsáveis por trazer essa linguagem ao Brasil.
A pergunta que não quer calar é: quando será reconhecido o valor basilar da capoeira para a construção da identidade musical brasileira?
Duas
das principais referências que o mundo tem do Brasil são a música e o futebol.
Embora pouco se diga, a capoeira está na raiz de ambas. Esse caldeirão cultural
fervilhante de ginga e sons espalha-se por todo o planeta, é visível nas ruas,
nos shows, nos estádios, mas, mesmo no nosso país, não é completamente
compreendido. É uma história complexa, perdida nos escaninhos da tortuosa
memória brasileira que por séculos tentou sonegar a devida importância de suas
origens básicas africanas ou indígenas, e os reflexos desse conflito
identitário permanecem até os dias atuais.
A
partir de 1532, milhões de africanos foram arrancados de suas nações e trazidos
para o Brasil, dando início ao maior processo de migração forçada da história.
Ao longo dos séculos, os escravizados deixaram impressas suas marcas na cultura
brasileira. Uma das mais importantes e influentes dessas raízes foi a capoeira.
A
origem da palavra é do tupi: ka’a (“mato”) e pûera (“que foi”). Embora seja
controvertida a razão da utilização do termo, a tese mais aceita é de que a
vegetação derrubada ao redor das fazendas favorecia a fuga dos escravos, pois,
se tentassem fugir pela mata fechada, ficariam embrenhados no cipoal. Seja como
for, as primeiras referências a uma forma de luta própria dos escravos remontam
ao Quilombo de Palmares e vieram dos soldados portugueses (“Dragões”) que
relataram, por volta de 1690, ser necessário “mais de um Dragão” para capturar
um negro desarmado, pois estes defendiam-se com uma “estranha técnica de
esquivas e pontapés”. Por isso o Quilombo de Palmares é apontado como um dos
prováveis berços da capoeira, o que é questionável (há sérios estudos que
apontam para Sergipe como matriz); mas sabe-se, com certeza, de sua origem no antigo
ritual N’Golo, ou “Dança das Zebras”, praticada na África Austral, atual
território de Angola, onde os jovens formavam rodas e disputavam um misto de
luta e dança com base na observação das disputas das zebras machos pelas
fêmeas, com coices e cabeçadas.
As
primeiras imagens que se têm, porém, são completamente reveladoras. Em 1824, o
inglês August Earle pintou Negros Lutando e, em 1835, o germânico Johann Moritz
Rugendas registrou a cena definitiva no quadro Roda de Capoeira, no qual
veem-se claramente os rudimentos da técnica da luta e o uso de instrumentos
musicais acompanhados de palmas.
As
rodas de capoeira eram praticadas com música não apenas por sua origem na
antiga dança das zebras. Os donos de escravos permitiam que dançassem para
evitar que ficassem deprimidos (banzo), e ali eles aproveitavam para treinar
luta. Dentre os toques mais antigos de berimbau há um, por exemplo, chamado
“cavalaria” que avisava da aproximação do feitor e outros vigilantes – nesse
momento, as mulheres abriam suas saias como asas para impedir a visão do que
ocorria e os capoeiristas passavam a dançarinos. Puxavam as mulheres para o
centro da roda e seguiam em danças de umbigadas, escapando dos castigos por
serem flagrados praticando técnicas de combate.
Foi provavelmente dessas rodas que nasceu o chamado “samba do Recôncavo baiano”. Das percussões e cantorias que acompanhavam a capoeira consolidou-se o principal tronco musical brasileiro, do qual derivaram o samba e o coco. Aliás, a música de capoeira, que os brancos incluíam no que chamavam genericamente de “batuques”, antecede o chorinho em 50 anos e o samba em quase um século.
Não
à toa, Vinícius de Moraes cantava que “o samba nasceu lá na Bahia, e se hoje
ele é branco na poesia, é negro demais no coração”. Foi ao ter contato com esse
universo que ele e o violonista Baden Powell criaram a célebre série dos
“afro-sambas”. Mas, muito antes, essa cultura já havia sido transposta para os
morros do Rio de Janeiro, em um movimento conhecido como Pequena África. No
início do século 19, era prática corrente encontros musicais nas casas das
“tias” baianas Yalorixás. A mais conhecida foi Hilária de Almeida, a Tia Ciata,
até hoje uma referência sobre o surgimento do maxixe, logo samba. Na casa dela
gerou-se o primeiro samba registrado em disco, Pelo Telefone (1917), com
autoria assumida por Ernesto dos Santos (Donga), sobre o que ainda restam
controvérsias – cogita-se que tenha sido obra coletiva e de “roda”.
Ao
largo desse debate autoral, fica evidente a matriz transposta da Bahia para a
Pequena África no Rio de Janeiro e da Grande África para o Brasil ao longo de
séculos.
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Por
Henrique Mann, publicado originalmente na Revista Prosa Verso e Arte
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