Por séculos, os povos indígenas têm sido os principais defensores das florestas, da biodiversidade e dos ciclos vitais do planeta. À medida que a emergência climática atinge um ponto crítico, a atuação dessas populações ganha visibilidade — mas também um peso desproporcional. Neste 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, lideranças e organizações indígenas cobram espaço real nas decisões e alertam para retrocessos legislativos que colocam em risco seus territórios e a própria eficácia das metas climáticas.
Segundo
um levantamento feito pelo MAPbiomas publicado em agosto de 2024, entre 1985 e
2023, as Terra Indígenas (TIs) perderam menos de 1% de sua vegetação nativa,
enquanto as áreas privadas registraram uma perda de 28% no mesmo período. Essa
diferença destaca a eficácia das TIs na conservação ambiental. Para a
engenheira ambiental Gilmara Terena, é nas aldeias que a justiça ambiental
ganha sentido real.
“A
transformação tem que acontecer na base. É importante destacar que os povos
indígenas não são um bloco homogêneo. E quando a gente faz o recorte das
mulheres, o papel delas nessa luta por justiça ambiental é fundamental.”
Segundo
a engenheira, a atuação feminina é central nas retomadas de território. “As
mulheres estão na linha de frente com os homens. Levam os filhos, reconstroem a
vida, fazem brotar comida na areia se for preciso. Não é essa retomada
midiática de ‘origem’, mas sim a reconquista de territórios tradicionalmente
ocupados e usurpados pelo Estado.”
A
engenheira também critica o PL 2.159/2021, recentemente aprovado no Congresso,
que flexibiliza as regras de licenciamento ambiental. A nova legislação
desobriga a análise de impactos em terras indígenas não homologadas, uma
violação direta ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconhece
o direito originário aos territórios, independentemente da homologação.
“É
mais uma violência do Estado brasileiro contra os povos indígenas. Excluir
terras não homologadas do processo de licenciamento é negar nossa existência.
Aqui, metade das aldeias estão em áreas de retomada. Essas áreas são
pressionadas pela soja, pelo agronegócio, por cidades em expansão. Como vamos
proteger o que não é sequer reconhecido legalmente?”, questiona.
Segundo Alessandra Munduruku, ativista socioambiental, ao mesmo tempo em que os parlamentares europeus e o presidente Lula defendem a ratificação do Acordo do Mercosul, os povos indígenas permanecem à margem das decisões políticas e ambientais que impactam diretamente seus territórios. “Falam em proteger o meio ambiente, mas não mencionam a demarcação. Falam em enfrentar a crise climática, mas não retiram os invasores das nossas terras”, denuncia a liderança.
De
acordo com ela, o avanço do agronegócio, intensificado por esses acordos
internacionais, têm contribuído para a destruição de biomas e para o envenenamento
dos alimentos e das águas.
“De
que adianta falar em meio ambiente e assinar acordos internacionais se ninguém
trata da demarcação das terras indígenas? Se os invasores continuam nos nossos
territórios? Estão negociando o futuro às nossas custas. A globalização avança
destruindo justamente as áreas mais preservadas, onde vivem indígenas,
quilombolas e povos tradicionais, e são essas as mais atacadas por leis que
querem nos apagar”, pondera.
‘Demarcação deveria ser pauta de todo
povo brasileiro’
Para
Gilmara Terena, a demarcação de terras indígenas é condição indispensável para
qualquer política eficaz de preservação ambiental. “O SUS [Sistema Único de
Saúde] sequer alcança muitas áreas ainda não homologadas. E, mesmo sob um
governo de esquerda, o processo de demarcação não avançou. A Funai [Fundação
Nacional dos Povos Indígenas] foi deixada de fora do debate sobre
licenciamento. A degradação ambiental nos atinge a todos. A demarcação deveria
ser pauta de todo o povo brasileiro. Preservar territórios indígenas é
preservar biodiversidade, água limpa, vida”, afirma.
Ricardo
Terena, coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (Apib), reforça que o atual modelo de licenciamento ambiental ignora
os territórios em processo de demarcação, o que, segundo ele, fere diretamente
a Constituição e coloca vidas e ecossistemas em risco. “É uma forma de punir os
povos por uma omissão do próprio Estado”, critica.
A
falta de estrutura institucional, no entanto, não é o único entrave. O Projeto
de Lei 2.159/2021 enfraquece o licenciamento ambiental ao excluir da análise os
impactos em terras indígenas ainda não homologadas. Para o coordenador,
trata-se de uma violação constitucional.
“O
direito ao território é originário, não depende de homologação. Ignorar os
territórios em processo de demarcação é desrespeitar a Constituição e o próprio
STF.”
A
Constituição Federal de 1988 estipulava o prazo de cinco anos para a conclusão
de todas as demarcações. Mais de três décadas depois, o país ainda acumula
processos paralisados e disputas territoriais, agora agravadas pela Lei nº
14.701/2023, que instituiu o chamado “marco temporal”. Ricardo Terena vê no
novo modelo de licenciamento uma forma de desregulamentação extrema:
“É
um autolicenciamento. Os próprios empreendedores declaram que cumprem as
exigências, sem qualquer fiscalização real. É uma licença para destruir”,
resume.
Para
Alessandra Munduruku, não há como dissociar a luta indígena da agenda climática
global. “O mundo precisa entender que sem nossos territórios protegidos, não há
solução possível para a crise climática. Nós estamos aqui, resistindo há
séculos. Mas quem segura a caneta precisa fazer sua parte”, diz.
Construção da NCD indígena para COP30
Termina
nesta quinta-feira (5), em Brasília (DF), a Pré-COP Indígena, encontro
preparatório para a 30ª Conferência do Clima da ONU (COP30), que será realizada
em 2025, em Belém (PA). O evento representa um marco estratégico na articulação
dos povos indígenas diante da crise climática e oficializa a entrega da
primeira Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) construída sob a
perspectiva indígena. A NDC é o instrumento com o qual os países apresentam à
Organização das Nações Unidas (ONU) seus compromissos formais para a redução
das emissões de gases de efeito estufa. Agora, os povos originários propõem uma
NDC própria, com metas e soluções baseadas em seus modos de vida, saberes
ancestrais e relação direta com os territórios que protegem há milênios.
Segundo
Toya Manchineri, coordenador-geral das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (Coiab), o principal eixo da proposta indígena é a defesa da
demarcação de terras como medida efetiva de política climática. “O Brasil
menciona, em sua NDC apresentada em Baku, que protegerá os territórios
indígenas, mas não detalha como isso será feito. Para nós, é fundamental que os
estados assumam esse compromisso com prazos claros”, afirma. “Quantas terras
serão efetivamente demarcadas até 2032, por exemplo? Precisamos de metas
concretas.”
“Outro
ponto importante que estamos pautando é o financiamento direto. Propomos que os
estados reconheçam os fundos indígenas como instrumentos legítimos para
combater o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa. Defendemos que o
financiamento chegue diretamente às organizações e territórios indígenas”,
completa Manchineri.
A
outra reivindicação do movimento indígena é a participação plena nas zonas Azul
e Verde da COP30. A Zona Azul é o espaço oficial da conferência, gerido pela
ONU, onde ocorrem as negociações diplomáticas entre os países. Já a Zona Verde
é o espaço voltado à sociedade civil, à ciência, aos movimentos sociais e à
apresentação de soluções climáticas não estatais. Embora o governo brasileiro
tenha se comprometido a garantir a presença indígena nesses espaços, ainda não
houve confirmação prática.
“Queremos
negociadores indígenas de fato, com voz nas decisões e não apenas presença
simbólica para fotos bonitas”, cobra Manchineri. “Estamos propondo também o
financiamento direto às nossas organizações. Já fazemos nossa parte. O que
falta é apoio.”
‘Resposta precisa ser coletiva’
Diante
da exclusão histórica e da violência institucional, a campanha “As Respostas
Somos Nós”, articulada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e
pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), tem
protagonizado ações concretas de enfrentamento à crise climática. Lançada
recentemente por diversas organizações indígenas, a iniciativa convoca uma
mobilização coletiva — de indígenas e não indígenas — em defesa dos territórios
e da biodiversidade.
“Essa
campanha não é apenas dos povos indígenas. Nós já fazemos a nossa parte, mas
ela convida também os não-indígenas a se engajarem. Somente assim será possível
conter o desmatamento e o aquecimento global. Os territórios indígenas são
fundamentais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, mas sozinhos
não daremos conta”, enfatiza Manchineri.
“Conservamos
a floresta há milhares de anos, mas seguimos sendo assassinados, discriminados
e ignorados”, afirma Toya Manchineri. “Sozinhos, não daremos conta. É preciso
que a sociedade brasileira e a comunidade internacional caminhem conosco. A
crise climática é global — e a resposta também precisa ser coletiva.”
Para
Gilmara Terena, a lógica que move a sociedade dominante está em desacordo com
os princípios dos povos originários. “A sociedade não indígena vive para o
lucro, para a competição. Nós vivemos de outra forma. Pensamos no coletivo,
porque pertencemos ao coletivo. Enquanto isso, o outro lado vive
confortavelmente, usufruindo do que a gente preserva. E ainda assim, somos nós
que adoecemos, que morremos”.
Apesar
dos retrocessos e das ameaças constantes, a engenheira ambiental mantém a
esperança nos próprios territórios. “As transformações reais começam aqui. É
aqui que vamos continuar resistindo — com nossas tecnologias, com nossa força
coletiva e com a certeza de que não estamos defendendo apenas nossas aldeias,
mas o futuro do planeta”, conclui.
_______
Com informações do Brasil de Fato.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!