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O Professor à frente de um retorno que as consequências da pandemia ainda impedem. (FOTO | Reprodução | ICL Notícias). |
Passados cinco anos desde o início da pandemia de Covid-19, o quadro que se desenha nas escolas públicas brasileiras é desolador. O retorno às aulas presenciais não significou retomada plena da aprendizagem. Pelo contrário: revelou-se a ampliação de uma crise que já existia, mas que agora se agudiza em silêncio.
Os
primeiros dias de volta mostraram salas onde o tempo pareceu congelado. Alunos
do nono ano com dificuldades de leitura que remontam aos anos iniciais (alguns
ainda analfabetos). Jovens do ensino médio incapazes de interpretar uma questão
simples de prova. A evasão foi apenas a face visível. O abandono da aprendizagem,
mais profundo, persiste.
Dados
recentes do Saeb e do Ideb confirmam a queda nos níveis de alfabetização,
lógica e interpretação. Não se trata apenas de retrocessos pontuais, mas de uma
regressão estrutural. A defasagem atinge os que já estavam à margem: estudantes
pobres, negros, moradores das periferias. Uma exclusão silenciosa, que não é
medida em provas, mas sentida no cotidiano.
Frente
a esse cenário, a resposta do Estado nas escolas públicas – que atendem
justamente os que mais dependem da educação básica para romper o ciclo da pobreza
– tem sido a aceleração.
Empurram-se
conteúdos. Revivem-se apostilas padronizadas. Avaliações são aplicadas como
termômetros de gestão, não de aprendizagem. Ao invés de reorganizar o tempo
pedagógico, simula-se normalidade com calendários intactos, e inchados, e cobranças
redobradas ao professor.
A
promessa de “recuperação da aprendizagem” se converteu em pressão sobre o
professorado. Sob o pretexto de que é preciso correr atrás do prejuízo,
desconsideram-se as condições reais das escolas e o esgotamento dos que
sustentam o ensino com o próprio corpo.
O
modelo conteudista retorna, travestido de emergência. Em vez de abrir espaço
para escuta, acolhimento e reconstrução coletiva do processo educativo,
impõe-se a lógica do desempenho. Repetem-se metas, rankings e indicadores como
se fossem solução. A precariedade é apenas remanejada.
Não
há reforço escolar sem reforço humano. Onde estão os profissionais de apoio e
os mediadores para os neurodivergentes com laudo? Onde está o investimento em
formação continuada, em estrutura adequada, em escuta psicoemocional? Os
discursos são ruidosos, mas as salas continuam quentes, superlotadas, com
materiais escassos, contratos temporários – e salários que desmotivam.
A
ausência de um plano nacional para recompor a aprendizagem escancara a falta de
compromisso político com a educação básica. Não basta retórica. É necessário
tempo, recursos, planejamento e vontade de transformar. Nada disso se faz com
improviso e palavras de ordem.
É falsa a ideia de que tudo se resolve com esforço individual do estudante ou mérito pessoal do docente. As desigualdades educacionais são históricas, estruturais e exigem respostas institucionais. Tratar a crise pós-pandêmica como questão de mérito é esconder a raiz do problema.
Na
visão do filósofo alemão-americano Herbert Marcuse, a “tolerância repressiva” –
conceito formulado no ensaio Repressive Tolerance (1965) – descreve a aceitação
de críticas que não desafiam as estruturas vigentes. Na educação, tolera-se
falar do fracasso escolar, desde que não se denunciem o desfinanciamento, a sobrecarga
docente ou a precarização nas escolas públicas. Tudo é permitido, exceto
questionar o abandono sistemático de quem ensina.
O
discurso da retomada da aprendizagem precisa ser reconstruído com base na
justiça educacional. Isso significa garantir o direito à diferença, respeitar
tempos diversos, criar trajetórias personalizadas. E, acima de tudo, confiar no
papel pedagógico da escuta.
Responsabilizar
o magistério é a fórmula mais cômoda. É mais simples jogar o foco sobre o
profissional da ponta do que investir em soluções complexas. Mas sem ele nenhum
projeto de aprendizagem se sustenta. Não há futuro que não passe pelas mãos de
quem educa.
A
escola que se deseja construir precisa romper com a lógica de desempenho como
único critério. É urgente pensar um modelo que promova equidade real, que olhe
para as especificidades, que não tema o debate com os profissionais de Educação
e que aceite o tempo, necessário, para a reconstrução.
A
aprendizagem pós-pandemia é desafio geracional. Requer coragem institucional
(com recursos econômicos), compromisso social e escuta atenta dos que estão na
linha de frente. Professores não podem seguir adoecendo para sustentar uma
farsa de normalidade.
Famílias,
por sua vez, precisam estar engajadas no processo, oferecendo respaldo ético
que permita à escola cumprir sua função com dignidade.
O
discurso do retorno precisa ser substituído pelo projeto da reinvenção – ou
seja, em vez de tentar retomar o modelo anterior como se nada tivesse ocorrido,
é necessário reconstruir práticas e políticas a partir do que se transformou. E
isso começa com a escuta ativa do professor, com o reconhecimento do seu saber,
com a valorização do seu trabalho. Não se aprende no vazio. Aprende-se na
relação.
Se a
educação é, de fato, prioridade, é hora de tratá-la como tal. Com políticas que
enfrentem as consequências da pandemia, não que as maquiem. Com coragem de
mudar estruturas, não apenas manuais didáticos. Com professores respeitados,
não culpabilizados. Com escuta, não cobrança. Com projeto, não improviso.
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Texto de Valter Mattos da Costa, professor de História, originalmente no ICL Notícias.
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