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Manifestante protesta contra o racismo no Brasil e em defesa das vidas negras em um ato em 21 de junho deste ano em Brasília. (FOTO/ Adriano Machado/ Reuters). |
Apesar da ação afirmativa que garante recursos para 2022, lideranças antirracistas demandam que as legendas deem mais apoio econômico a candidatos negros já nas eleições deste ano e não repitam distorções das cotas femininas após decisão do TSE.
Em
2018, quase metade das candidaturas ao Legislativo em todo o país era de
pessoas negras, mas, no fim, somente 4% acabaram eleitas. Uma delas foi
Benedita da Silva (PT-RJ), que renovou seu mandato de deputada federal e hoje é
pré-candidata à Prefeitura do Rio de Janeiro. Inconformada com a baixa
representatividade na política, ela apresentou uma consulta ao Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) demandando reparte mais igualitário de recursos
públicos de campanha entre candidatos negros e brancos, o que foi aprovado por
maioria pelos ministros na semana passada. Pela decisão, que vale a partir de
2022, a divisão dos fundos partidário e eleitoral, além do tempo de propaganda
na TV, terá de ser proporcional ao número de postulantes negros.
“É uma conquista que interessa não apenas aos
negros que disputarão eleições, mas a todas as pessoas que repudiam o racismo
em nosso país”, diz a ex-ministra da Assistência Social. “Demos o primeiro
passo para começar a diminuir o abismo que existe entre candidaturas negras e brancas.”
Ao avaliar a consulta, o TSE reconheceu que a falta negros em cargos políticos
deve ser enfrentada com a instituição de regra específica. “Há momentos em que cada um precisa escolher
de que lado da história deseja estar. O TSE está do lado dos que combatem o
racismo”, disse o ministro relator da ação, Luís Roberto Barroso.
A
Educafro também foi signatária da consulta protocolada no TSE. Para Frei David,
coordenador da ONG, a aprovação da proporcionalidade é resultado de uma luta
histórica do movimento negro pela disputa de terreno nas instituições. “O dinheiro que o Brasil entrega a cada
partido tem sido manipulado pelos caciques renomados da política. Eles
geralmente botam seus parentes para seguir ocupando esses espaços”, afirma
o ativista pela igualdade racial. “É o
momento de fazer justiça para o povo negro e trazer equidade para o campo
político.”
Em
2018, o professor Douglas Belchior, da Uneafro e Coalizão Negra por Direitos,
levantou a bola sobre a má distribuição de recursos dos partidos para
candidaturas negras. Na época, ele era candidato a deputado federal pelo PSOL,
em São Paulo, e cobrou publicamente a legenda pela concentração de recursos em
torno das candidaturas brancas. “Os
partidos, assim como todas as instituições no Brasil, são atravessados pelo
racismo. Mas os de esquerda, como o PSOL, têm obrigação de estar atentos à
pauta da representatividade negra”, diz Belchior, que vai além em seu
questionamento. “Temos quantas
candidaturas majoritárias ligadas a movimentos negros? Quantas lideranças
negras nosso país já perdeu por falta de apoio e estrutura? O quanto isso
atrasou a luta por direitos sociais? Eu fui só mais uma figura prejudicada pela
lógica racista dos partidos.” Na última eleição, ele recebeu 46.026 votos,
mas acabou não sendo eleito devido ao coeficiente eleitoral.
Embora
comemore a decisão do TSE, Belchior lamenta que a aplicação da regra tenha
ficado para 2022. “Há incoerência do
tribunal ao avaliar e reconhecer a pertinência da medida, mas não aplicá-la de
forma imediata. Por que esperar mais dois anos para reparar uma injustiça
histórica?”, argumenta o professor. “Agora
a responsabilidade está com os partidos. Já é uma vergonha que sejam obrigados
por lei a fazer distribuição proporcional dos recursos a candidatos negros.
Precisam ser cobrados para tomar providências nas eleições municipais.”
Criticado
por Belchior há dois anos, o PSOL anunciou no início de agosto, antes da
votação no TSE, um novo regulamento para distribuição do fundo eleitoral a seus
candidatos, priorizando mulheres (com 30% dos recursos) e negros (50%). Dessa
forma, os diretórios municipais do partido estão obrigados a garantir que um
candidato negro receba individualmente 50% a mais que um candidato branco. “Essa decisão mexe no poder. Não ter acesso a
recursos inviabiliza nossas candidaturas. Quando mexemos em percentuais para
afirmá-las, estamos dizendo que, na prática, aqui está o nosso compromisso. É
uma reinvenção da forma de fazer política”, celebrou Áurea Carolina,
primeira deputada federal eleita pelo partido em Minas Gerais e pré-candidata a
prefeita de Belo Horizonte.
Este
ano, o professor da Uneafro não sairá candidato, mas apoia uma candidatura
coletiva de pessoas negras da ONG na capital paulista. Inspirado em uma
iniciativa dos Estados Unidos, o movimento prepara o lançamento do Votos negros
importam, plataforma de arrecadação para candidaturas antirracistas.
Outras
lideranças políticas e do movimento negro enalteceram a decisão, como é o caso
do senador Paulo Paim (PT-RS). Autor do Estatuto da Igualdade Racial, ele
chegou a ser, em seu mandato anterior, o único negro eleito no Senado. “Queremos ver um parlamento onde se observe,
de preferência na mesma proporção, homens e mulheres, negros e brancos”,
diz Paim.
Brechas para burlar o sistema
Desde
1997, os partidos são obrigados por lei a ter pelo menos 30% de candidaturas
femininas. No entanto, ao longo das últimas décadas, a reserva de vagas para
mulheres não se refletiu na mesma proporção em cargos públicos, já que, para
driblar o sistema, legendas instituíram práticas de candidatas “laranjas” e a
manutenção de boa parte dos recursos nas campanhas dos homens. Com a divisão
proporcional das verbas para negros, também existe a preocupação de que, pela
escassez de representatividade nas executivas partidárias, a regra não seja
capaz de corrigir as desigualdades do financiamento de campanha.
“Não podemos correr o risco de repetir as
distorções das cotas para mulheres. Por isso, além da medida, é necessário que
os partidos estabeleçam seus próprios regimentos para assegurar o cumprimento
da lei”, observa Douglas Belchior. Já para estas eleições, o TSE prevê
mudanças na tentativa de coibir fraudes na reserva de candidaturas femininas.
Após o fim das coligações, os partidos terão de enviar suas listas
proporcionais de candidatas, que precisam apresentar autorização por escrito e
ainda podem ser barradas pela Justiça Eleitoral em caso de irregularidades.
Segundo lideranças do movimento negro que trabalharam na articulação da
consulta ao TSE, as chances de fraude na destinação de recursos tendem a ser
menores. Ao contrário das mulheres, a nova regra não prevê uma cota, mas sim o
reparte proporcional dos fundos de campanha e da propaganda eleitoral a
candidatos negros.
Apesar
de não haver reserva de candidaturas, o vereador Fernando Holiday
(Patriota-SP), que se define como um parlamentar negro que “nunca se rendeu ao discurso da esquerda e
segue lutando contra o racismo disfarçado de cotas raciais”, publicou um
vídeo atacando a medida. “Os candidatos serão
escolhidos dentro dos partidos não por suas propostas, mas pela aparência e a
cor da pele. Isso significa pregar uma outra forma de racismo”, opinou o vereador.
O
vereador e integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) defende que a falta de
representatividade negra deve ser combatida a partir da meritocracia, “por meio da Internet, por exemplo”,
citando sua experiência pessoal. “Me
tornei quem eu sou pelo que eu penso, não pela cor. Se nós temos um problema de
pessoas negras que não são eleitas, precisamos superar isso pelo mérito. O
sujeito, só por ser negro, não representa todos os negros.”
Outro
receio, externado por Belchior, é de que a distribuição proporcional seja
manipulada por partidos, especialmente os de direita, para alavancar
candidaturas de pessoas negras que desacreditam ações afirmativas como cotas e
fundos de proteção a minorias étnicas. “A
lei precisa gerar oportunidades para pessoas comprometidas com as pautas do
movimento negro. A direita, inclusive, já tem usado candidaturas para desvirtuar
o combate ao racismo, colocando pessoas negras que dão prosseguimento à lógica
da branca.” Em 2018, o PSL, do presidente Jair Bolsonaro, foi o partido que
mais elegeu parlamentares que se declaram negros ou pardos (42) para o
Congresso, seguido pelo PT, com 40. Representando 48% do total de candidaturas,
os negros fecharam o pleito com apenas 27% de eleitos.
Com
intuito de iniciar uma mudança de percentual já nestas eleições, o economista
Eduardo Moreira, criador do movimento somos70porcento, lançou um programa para
capacitação digital de candidatos, que prevê reserva de 40% das vagas para
mulheres e 40% para negros. “Por causa da
pandemia, os candidatos que dominarem as ferramentas da Internet em campanha
via redes sociais terão mais chances de se eleger”, explica Moreira. “Vamos distribuir 1.000 bolsas a partidos do
campo progressista, seguindo a previsão das cotas, e outras 50 para a Educafro.
Queremos que candidatos e candidatas negras não só disputem a eleição, mas
cheguem em condição de vencer.”
Experiente
no meio, Benedita da Silva acredita que a revisão do financiamento é a chave
para incentivar, acima de tudo, uma maior participação política das mulheres
negras —12,9% das candidaturas em 2018, mas detentoras de somente 6,7% do fundo
eleitoral. Na mesma semana da conquista no TSE, a deputada petista sofreu
ofensas racistas de ultraconservadores contrários à medida nas redes sociais.
Depois de denunciá-los pelas agressões, ela prefere destacar o otimismo diante
da nova regra e encabeçar outra luta, para que os partidos se antecipem à
obrigação imposta pelo TSE. “Nós,
mulheres negras, somos maioria. A pátria não vai nos pertencer, de fato,
enquanto a maioria de nós não estiver inserida na política.”
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