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A escritora Marilene Felinto na 17.ª Flip (FOTO/Walter Craveiro. |
Numa
das mesas mais aplaudidas da programação principal da 17.ª Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip) até aqui, a escritora Marilene Felinto emocionou
a plateia ao comentar sua trajetória particular e dizer que levou décadas para
superar o “racismo internalizado na
mentalidade do brasileiro”.
“Os ancestrais de minha mãe são possivelmente
sobreviventes da degola e da tortura a que foi submetida pelo exército de
Euclides da Cunha a gente preta do arraial de Canudos, os milhares de escravos
recém-libertos que zanzavam pelo sertão em busca de comida e alguma crença para
suportar aquelas condições desumanas de vida”, leu, de um texto escrito
previamente à mesa, num dos momentos mais emocionantes da Flip até aqui.
Ela
reconhece que o escritor fez sua mea-culpa anos depois do fim da Guerra, em Os
Sertões, mas diz que o fato pouco lhe importa. “Levei anos para superar o estrago do racismo internalizado na
mentalidade do brasileiro, tão bem codificado no linguajar culto de Euclides da
Cunha e dos sociólogos do seu tempo”, disse.
“Minha presença aqui e esta fala, que vocês
infelizmente pagaram para ouvir, pode destoar assim do que se espera. Mas é que
eu não aceito a norma quando ela significa a manutenção, a naturalização da
perversidade, da exclusão, da desigualdade social. Levei décadas para superar o
complexo de inferioridade resultado da discriminação de raça e de classe.
Durante tempos, acreditei na minha própria feiura. ‘Sou feia’, eu me dizia
quando menina, me olhando no espelho”, leu.
Dona
de uma trajetória única no cenário das letras brasileiras, Marilene lançou seu
primeiro romance, As Mulheres de Tijucopapo (republicado em nova edição para a
Flip, em edição independente, assim como outros de seus livros), em 1982, e
depois estabeleceu uma voz ativa na imprensa brasileira com uma coluna de comentários
políticos na Folha de S. Paulo, a convite do jornalista Otavio Frias Filho, com
quem depois rompeu. Ela deixou a experiência na imprensa de lado, disse, “por
não aceitar o estado de coisas como ele é”.
“Não aceitei a censura, a liberdade de
expressão que só cabe aos donos da mídia”, disse. Em outro momento, ela
afirmou que a mídia brasileira deve uma reparação histórica aos brasileiros.
Rompida
com a imprensa, Marilene desenvolveu ainda um trabalho educativo com jovens da
periferia de São Paulo, estudando economia, sociologia e filosofia com alunos
do ensino médio, e trabalhou para o PT em algumas ocasiões. A escritora vive há
anos no interior de São Paulo e nunca parou de escrever, embora estivesse há
tempos sem publicar.
Sobre
As Mulheres de Tijucopapo, que chega agora à sua quarta edição, a escritora diz
em seu prefácio: “É um romance de
juventude. Por isso mesmo cheio dos defeitos, do ímpeto equivocado, dos
impulsos irascíveis daquele período da vida (para não dizer da minha já
tresloucada personalidade). Mas é nele também que reconheço a força
inconfundível, o vigor imbatível da fase única em que uma pessoa se move
impulsionada por uma fé cega no amanhã”.
Os
outros títulos lançados agora em edição da autora são: Fama e Infâmia: Uma
Crítica ao Jornalismo Brasileiro, Sinfonia de Contos de Infância: Para Crianças
e Adultos, Contos Reunidos e Autobiografia de uma Escrita de Ficção.
Marilene
disse ainda se sentir fora de moda e malcomportada. “No que se refere ao universo da cultura, das artes perpetua-se a mesma
desigualdade da estrutura social brasileira em todos os âmbitos: trata-se da
mesma hierarquia social branca e rica, o cenário é composto pelos mesmos
sobrenomes de sempre”, disse.
Ao
reconhecer que lhe foi muito custoso aceitar o convite para participar da Flip,
dedicou sua fala “aos escritores do
interior do Brasil”, “aos escritores
anônimos, das cidades e das periferias das grandes cidades, entre estes
últimos, jovens e moças negros, vítimas do extermínio cotidiano que ali se
processa”.
Ela
disse entender que os palcos e espetáculos de literatura, como aquele em que
estava presente, não tem nada em comum com a atividade silenciosa da escrita e
da leitura. “Mas o que, afinal, eu vim
fazer aqui, então?”, questionou. “Acontece
que certo tipo de escritor como eu é bem louco e faz pouco sentido.”
Escrever
literatura, para ela, só serve para o próprio autor do texto elaborar e
investigar questões que ele mesmo considera insuportável na realidade. “Para torná-la suportável, então, a pessoa
escreve sobre ela, inventa outra realidade. Mas quem precisa disso?” Ela
reconhece, a seguir, porém, que a literatura pode ser um "empreendimento
de saúde", emprestando palavras de Gilles Deleuze.
Entre
outras homenagens na sua fala de abertura, mencionou o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (“o melhor que já
houve por aqui, a despeito dos erros que tenha cometido”), Dilma Rousseff
(“que abriu com suas saias de
guerrilheira um espaço de esperança para nós, mulheres”) e o jornalista
Glenn Greenwald, que na sexta-feira, 12, arrastou uma verdadeira multidão em
Paraty. A curadora da Flip, Fernanda Diamant, Marielle Franco e a jornalista
Suely Duval Gonçalves, também foram citadas por Marilene.
No
rápido papo que se seguiu à leitura do texto, o mediador Fernando Barros e
Silva leu outro texto de Marilene, inédito, em que ela conta ter sido estuprada
por uma figura relevante do mercado editorial brasileiro nos anos 1980. “Se fosse jovem, me juntaria ao movimento Me
Too e diria seu nome”, escreveu. "Mas
confio a missão às novas gerações."
Questionada
pela plateia sobre sua opinião sobre os novos movimentos feministas, disse: “Sempre fui feminista. Tem que ser, alguém
tem dúvida? Acho lindo essa coisa de feminismo negro. Na minha época era
diferente, mas você tem um posicionamento do movimento negro jovem brasileiro
que é admirável. Isso tem que ser dito, apoiado e admirado”.
Ao
explicar que teve aprender o “paulistês” quando chegou em São Paulo (sua
família é de origem nordestina), comentou que o choque cultural da cidade
grande foi “fortíssimo”, questão que a fez escrever seu primeiro romance. Com
bom humor, disse que poderia parecer que ela estava gostando de estar ali, no
palco da Flip - “mas não estou”, riu.
No
fim do debate, ofereceu sua visão sobre a atual situação política brasileira: “É uma tragédia, um retrocesso social
gravíssimo para todas as camadas sociais. Jovens, velhos. Temos que apostar na
Vaza Jato, não vejo outra solução no momento”, disse, referindo-se ao
vazamento de mensagens de membros da Operação Lava Jato e do então juiz Sérgio
Moro.
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Com
informações do Estadão.
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