A
Mulata Globeleza não é um evento cultural natural, mas uma performance que
invade o imáginário e as televisões brasileiras na época do Carnaval. Um
espetáculo criado pelo diretor de arte Hans Donner para ser o símbolo da festa
popular, que exibiu durante 13 anos sua companheira Valéria Valenssa na função
superexpositiva de “mulata”. Desde a década de 1990 a personagem segue à risca
o mesmo roteiro: é sempre uma mulher negra que samba como uma passista, nua com
o corpo pintado de purpurina, ao som da vinheta exibida ao longo da programação
diária da Rede Globo.
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Nayara Justino, a Globeleza rejeitada pela Globo por ser "escura demais". Reprodução. |
Para
começar o debate em torno dessa personagem, precisamos identificar o problema
contido no termo “mulata”. A palavra de origem espanhola vem de “mula” ou
“mulo”: aquilo que é originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais
nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas.
Trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura
imprópria que não deveria existir.
Empregado
desde o período colonial, o termo era usado para designar negros de pele mais
clara, frutos do estupro de escravas pelos senhores de engenho. Tal
nomenclatura tem cunho machista e racista e foi transferido à personagem
globeleza, naturalizado. É uma memória triste dos 354 anos de escravidão negra
no Brasil.
A
mulher negra exposta como Globeleza segue, inclusive, um padrão de seleção
estética próxima ao feito pelos senhores de engenho ao escolher as mulheres
escravizadas que queriam perto de si. As escravas consideradas “bonitas” eram
escolhidas para trabalhar na casa-grande. Da mesma forma, eram selecionadas as
futuras vítimas de assédio, intimidação e estupro.
Desde
o período colonial, mulheres negras são estereotipadas como sendo “quentes”,
naturalmente sensuais, sedutoras de homens. Essas classificações, vistas a
partir do olhar do colonizador, romantizam o fato de que essas mulheres estavam
na condição de escravas e, portanto, eram estupradas e violentadas, ou seja,
sua vontade não existia perante seus “senhores”.
Veja
só como isso é verdade: em 2015, a Globo trocou a Globeleza Nayara Justino,
eleita por voto popular no programa Fantástico, por uma de pele mais clara, a
atual Globeleza Érika Moura, escolhida internamente, já que a primeira “não
teria se alinhado à proposta”, segundo eles. Reafirmando “o paladar”
eurocêntrico de escolher a mulher negra apta para ser exposta como objeto
sexual. Em outras palavras, pautados por racismo e machismo (de forma velada
para alguns, para nós, muito evidente) selecionam quais padrões de negras vão
explorar em suas vinhetas seguindo critérios de pele mais clara, traços
considerados mais finos e corpo mais esbelto, porém voluptuoso e luxurioso
“tipo exportação”.
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Érika Moura está como Globeleza desde 2015. Reprodução/Facebook. |
Um
exemplo dos estigmas que estão colocados sobre os corpos das mulheres negras, e
demonstra como funciona a imposição do lugar que devemos ocupar, é o caso da
Vênus Hotentote. Seu nome original é Sarah Baartman. Nascida em 1789 na região
da África do Sul, ela foi levada, no início do século 19, para a Europa. Sarah
Baartman deu um corpo à teoria racista. Ela foi exibida em jaulas, salões e
picadeiros por conta de sua anatomia considerada “grotesca, bárbara, exótica”:
nádegas volumosas e genitália com grandes lábios (uma caracteristica presente
nas mulheres do seu povo, os khoi-san). Seu corpo foi colocado entre a
fronteira do que seria uma mulher negra anormal e uma mulher branca normal, a
primeira considerada selvagem.
A
história de Baartman se passou há séculos, mas esse estigma ainda hoje recai
sobre nós, negras. Atualmente vemos um canal influente como a Rede Globo que,
por quase 30 anos, expõe mulheres negras nuas a qualquer hora do dia ou da
noite no período de Carnaval, negando-se a nos representar para além desse
lugar de exploração dos nossos corpos no resto de todo o ano. Quantas mulheres
negras vemos como atrizes, apresentadoras, repórteres nas grades das grandes
emissoras?
É
necessário entender o porquê de se criticar a Globeleza. Não é pela nudez em
si, tampouco por quem desempenha esse papel. Não temos problema algum com a
sensualidade, o problema é somente nos confinar a esses lugares negando nossa
humanidade, multiplicidade e complexidade. Quando reduzimos seres humanos
somente a determinados papéis e lugares, se está retirando nossa humanidade e
nos transformando em objetos.
Não
somos protagonistas das novelas — não somos as mocinhas nem as vilãs, no máximo
as empregadas que servem de mera ambientação, adereço (inclusive apto ao abuso)
para a estória do núcleo familiar branco. Basta lembrar do último papel da
grande atriz Zezé Motta na emissora, onde foi a empregada Sebastiana em Boogie
Oggie. Em contrapartida, algumas atrizes como Taís Araujo e Camila Pitanga se
destacam, mas não podemos fingir que isso não é por serem jovens e negras com
pele mais clara.
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Zezé Mota é atriz e cantora; Foto: Reprodução/Facebook. |
Qual será o destino das atuais
atrizes negras brasileiras?
Talvez
o mesmo das atrizes negras mais velhas e globelezas: o descarte e o
esquecimento quando seus corpos não servem mais. A verdade nua e crua é que a
Globeleza, atualmente, só reforça um lugar fatalista, engessado,
pré-estabelecido para a mulher negra numa sociedade brasileira racista e
machista e esse lugar fixo precisa ser rompido, quebrado, começando com o fim
desse símbolo/personagem.
Não
aceitamos ter nossa identidade e humanidade negadas por quem ainda acredita que
nosso único lugar é aquele ligado à exploração do nosso corpo. Não mais
aceitaremos nosso corpo refém da preferência e da vontade de terceiros, para
deleite de um público masculino e de uma audiência que se despoja do
puritanismo hipócrita apenas no Carnaval. Não mais aceitaremos nosso corpo
narrado segundo o ponto de vista do eurocentrismo estético, ético, cultural,
pedagógico, histórico e religioso. Não mais aceitaremos os grilhões da mídia
sobre nosso corpo!
É
necessário sair do senso comum, romper com o mito da democracia racial que
camufla o racismo latente dessa sociedade. Não podemos mais aceitar que
mulheres negras sejam relegadas ao papel da exotização.
Esse
Manifesto não só clama pelo fim da Globeleza como nasce da urgência e do grito
(há muito abafado) pela abertura e incorporação de novos papéis e espaços para
mulheres negras no meio artístico brasileiro. Um novo paradigma precisa
despontar no horizonte dos artistas negros sempre tão talentosos, porém, ainda
sem o abraço do reconhecimento.
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Viola Daviz ao receber o Emmy. Foto: Flick/cc/Disney/ABC Television Gr. |
O
que falta para mulheres negras, como frisou a americana Viola Davis em seu
discurso após ganhar o Emmy, são oportunidades. A construção de novos espaços
já vem sendo feita de forma árdua na sociedade real, nas classes pobres, nos
coletivos organizados, na juventude periférica, estudantil e trabalhadora onde
negras são maioria entre as adeptas de programas como Prouni, ou já são
cotistas nas universidades. Entretanto, esse novo lugar ainda não é refletido
na mídia, ao menos não da forma mais fidedigna e verossimilhante possível. Fica
evidente que não há interesse em nos representar tal qual somos. Parecemos um
incômodo e as poucas vozes negras de destaque são maquiadas, interrompidas ou
roteirizadas a fim de amenizar nossa realidade e quando não, glamourizar a
favela.
Não
podemos mais naturalizar essas violências escamoteadas de cultura. A cultura é
construída, portanto, os valores dela também o são. É preciso perceber o quanto
a reificação desses papéis sulbalternos e exotificados para negras nega
oportunidades para nós desempenharmos outros papéis e ocuparmos outros lugares.
Não queremos protagonizar o imaginário do gringo que vem em busca de turismo
sexual.
Basta!
Já passou da hora!