Etimologicamente,
a palavra ateu é formada pelo prefixo a — que denota ausência — e pelo radical
grego theós — que significa Deus, divindade ou teísmo; ou seja, a palavra ateu
pode significar sem deus ou sem teísmo. Como a imprecisão desse primeiro significado
o torna impróprio para representar a noção de descrença ateística, usa-se como
base a acepção teísmo, que significa crença na existência de algum tipo de deus
ou deuses de natureza pessoal. Nesse caso, chegamos a uma definição mais
coerente e clara de indivíduo ateu: aquele que não acredita na existência de
qualquer deus ou deuses.
Assim, quando queremos uma palavra que representa tal
perspectiva, usamos o termo ateu ligado ao sufixo ismo, que, na língua
portuguesa, é usado com o significado de doutrina, escola, teoria ou princípio
artístico, filosófico, político ou religioso. Deste modo, chegamos a uma
definição bastante nítida do que é ateísmo: estado de ausência de crença na
existência de qualquer deus ou deuses.
Uma
vez que o ateísmo é apenas uma classificação — e não uma doutrina ou uma
cosmovisão —, logicamente não incorpora qualquer espécie de valores, princípios
morais ou noções de ética. É exatamente devido a esse fato que muitos
indivíduos, inadvertidamente, classificam os ateus como imorais. Deve ficar
claro, entretanto, que a ausência de um conjunto de valores morais, na verdade,
refere-se somente ao ateísmo em si mesmo, de modo que, na prática, isso não
implica qualquer incompatibilidade entre ambas as coisas.
Assim
como os teístas, os ateístas possuem valores morais que norteiam suas ações.
Não há quaisquer evidências empíricas para sustentar a acusação de imoralidade
tão frequentemente lançada contra os descrentes. É claro que os ateus, como um
todo, não compartilham um código moral único, não possuem uma moral baseada na
autoridade de princípios ateísticos, que seriam absolutos ou superiores como os
valores vinculados ao teísmo. Na realidade, os ateus escolhem individualmente —
visando seus objetivos, suas necessidades — quais são os valores que melhor
lhes servirão para guiar suas vidas em função do sentido que escolheram para
elas; ou seja, o que não existe é uma moral ateísta no sentido em que falamos
de uma moral cristã. Entretanto, há, por certo, ateístas morais, os quais se
baseiam em fatores de natureza humana para fundamentar seus valores de modo
racional; pois é claro que, sem um deus, tais fatores não poderiam ser
absolutos ou transcendentais.
A
grande frequência com que se tenta corroborar ou refutar o ateísmo através de
julgamentos e valores morais apenas demonstra uma lamentável leviandade (ex:
“ateus também fazem caridades” ou “muitos ateus são criminosos”). É claro que,
se desejarem, alguns ateus podem ser bondosos, compassivos, solidários etc.
Talvez devido ao fato de a maioria dos religiosos se identificar com esse tipo
de moral sua típica ojeriza à palavra ateu possa ser um pouco amenizada;
todavia, pretender que a bondade tenha, em si mesma, algum valor, que ofereça
qualquer verossimilhança à posição, é, no mínimo, um absurdo. O mais
“dogmático” dos ateísmos ainda não passa de uma mera negação (“Deus não
existe”, afirmativamente). Sendo assim, assumir um posicionamento ateísta
remete-nos a um plano muito mais fundamental, muito mais abrangente. Em outras
palavras, além de ser independente da moral, o ateísmo a precede em
profundidade filosófica; ou seja, na melhor das hipóteses, somente será
possível deduzir, individualmente, valores a partir do ateísmo, mas nunca o
ateísmo a partir dos valores. Daí a impossibilidade de a bondade, por exemplo,
servir de respaldo a ele; e o mesmo vale para objeções ao ateísmo baseadas em
delitos cometidos por indivíduos ateus.
Há
também uma grande tendência de se querer vincular a responsabilidade das ações
à visão de mundo do indivíduo, e tal tendência está ligada à ideia de que esta
vem sempre carregada de valores e deveres; nesse caso, também vinculada ao
mal-entendido de que o ateísmo é uma crença positiva. Por exemplo, se um
cristão faz caridade em nome de Deus e usa a Bíblia para justificar tal feito,
então se pode dizer que o cristianismo é, em certo grau, responsável por tal
ação. Isso porque toda religião tem seus dogmas, suas verdades, seus princípios
superiores, em suma, seu tu deves. Portanto, ela define o que é o bem e o que é
o mal, o que é certo e o que é errado, e assim por diante. Diferentemente, o
ateísmo encontra-se alheio a todo esse rebuliço de valores que os humanos
cultivam. Se um ateu faz algo bom ou mau, isso não se deve ao ateísmo, pois o
ateísmo não diz coisa alguma a respeito do que devemos ou não fazer. O ateísmo
não diz o que é o bem nem o que é o mal, muito menos o que é certo ou errado.
Ele não arrasta consigo nenhuma espécie de valor, e é por isso que não se pode
atribuir-lhe qualquer tipo de culpa ou responsabilidade. Tudo recai tão-somente
sobre os ombros do arbítrio individual, não sendo possível qualquer espécie de
generalização da causa de seu ato que venha a abarcar o ateísmo.
Todos
os animais são ateus, e todas as pessoas, um dia, já foram ateias; sem exceção.
Todos os bebês nascem sem discernimento suficiente para compreender a noção de
deus. Como vimos acima, esse estado é enquadrado como uma categoria de ateísmo.
É claro que não se trata de uma descrença deliberada, mas demonstra quão
absurdo é tentar derivar qualquer espécie de consequência do fato de alguém ser
ateu. Certamente os religiosos fervorosos objetarão essa ideia, dizendo que é
injusto taxar qualquer pessoa incapaz de formar seu juízo a respeito do assunto
como uma ateísta. Contudo, vejamos: injusto por quê? Há algo de errado em ser
ateu? É sinal de perversão, de insanidade? É claro que não (talvez sim, mas
apenas para alguns teístas intolerantes, que só gostam da lógica quando esta
está em seu favor). Nesta situação, a palavra está descrevendo perfeitamente a
perspectiva do indivíduo em relação à ideia da existência de divindades. Por
exemplo, certamente ninguém levantaria objeções à pretensão de classificar um
bebê como um indivíduo apolítico por ser incapaz de conceber o que é política e
de posicionar-se em relação a ela; tampouco à ideia de que todos eles são
analfabetos. Como se pode dizer, afirmou Richard Dawkins, que uma criança de
quatro anos seja muçulmana, cristã, hindu ou judia? É possível falar de um
economista de quatro anos de idade? O que você diria sobre um neoisolacionista
de quatro anos ou um liberal republicano de quatro anos? A questão está na
incoerência de imputar posições positivas a quem não pode responder por elas,
sequer pode concebê-las. Em nossa sociedade, entretanto, a palavra ateu
encontra-se tão carregada de preconceitos, tão estigmatizada, que chamar um
indivíduo de ateu, longe de ser uma mera classificação neutra, na verdade
aparenta ser uma espécie de insulto.
Entretanto,
quando analisamos a perspectiva religiosa, torna-se compreensível que tais
preconceitos existam. O fato de alguém rejeitar a verdade óbvia de que existe
um criador, e declarar-se abertamente ateu, só pode significar que se trata de
uma pessoa insensível, cínica, ressentida, frustrada com a vida e revoltada com
Deus. Mas, logicamente, tal raciocínio é de todo unilateral. O problema não
está nos ateus, mas no fato de que homens convictos são prisioneiros de seus
pontos de vista. Quem jura lealdade absoluta a uma doutrina ou ponto de vista
específico inevitavelmente fecha os olhos para todo o resto e, deste modo, a
imparcialidade torna-se algo impossível. Homens comprometidos com um ponto de
vista perdem sua liberdade de pensamento, tornam-se incapazes de enxergar a
realidade senão através de uma ótica parcial e pessoal, e assim tudo passa a
dividir-se em dois grupos: os que, como eles, sabem da verdade, e os outros,
que estão todos errados e perdidos. Sem dúvida, uma atitude lamentável, pois
qualquer pessoa razoavelmente esclarecida sabe que o uso da convicção — ou da
fé — como único critério da verdade fatalmente conduz a uma completa falta de
imparcialidade que cega e tolhe a visão de mundo.
Outro
equívoco comumente cometido por aqueles que se opõem ao ateísmo consiste em
tratar tal posição como análoga ao teísmo, como uma “religião da descrença”; ou
seja, julgam que os ateus, assim como os teístas, na realidade professam alguma
espécie de crença dogmática na inexistência de deus(es). Partindo dessa
premissa, concluem que o ateísmo não tem mais validade que qualquer crença
religiosa, pois, assim como os teístas acreditam em Deus e são incapazes de
provar sua existência, os ateus seriam descrentes igualmente incapazes de
provar sua inexistência.
Em
discussões do tipo Ateísmo versus Teísmo, percebe-se facilmente que a maioria
das pessoas não entende o que é ateísmo. É por isso que grande parte dos
argumentos usados contra ele é notável por sua absoluta irrelevância. Por
exemplo, quando algum ateu assume abertamente sua posição, logo é coberto de
argumentos verborrágicos e disparates de todo tipo. Alguns exemplos: “você quer
ir para o inferno?”; “você é mais um daqueles que acredita que isso tudo surgiu
do nada?”; “então explique a origem da vida e do Universo”; “é uma pena que
você seja tão infeliz”.
Sem
levar em consideração o primeiro exemplo e o último, pois sequer merecem uma
resposta séria, devemos ter em mente que o fato de alguém ser ateu não diz
nada, absolutamente nada sobre o que ele pensa a respeito de tais assuntos.
Isso porque o ateísmo possui caráter negativo, e as negações são extremamente
parcimoniosas no fornecimento de dados. Por exemplo, se alguém dissesse “eu não
me chamo José”, que poderíamos inferir a partir disso além do fato de que seu
nome é outro, que não José? Seria absurdo pensar que tal informação fornece
qualquer pista significante sobre seu verdadeiro nome. É simplesmente incabível
tentar deduzir a partir do fato de alguém ser ateu quais são seus pontos de
vista filosóficos, morais ou científicos sobre quaisquer assuntos.
Sejamos
honestos quanto a nós mesmos: somos seres complexos, capazes de empreendimentos
notáveis, mas também limitados, e não temos todas as respostas ao nosso
alcance, pelo menos não atualmente. Portanto, quem não quiser se enganar
através de fábulas explicativas e consoladoras, precisa aprender a conviver com
tais limitações, pois a atitude de responder uma pergunta se valendo de um
mistério, na realidade, não explica coisa alguma. Isso, naturalmente, não
significa fechar-se totalmente para outros pontos de vista. Em nosso
conhecimento, há — e deve haver — lugar para a dúvida, para a incerteza, pois
deste modo nosso conhecimento não ficará cristalizado na forma de crenças
impermeáveis às novas evidências que vierem a ser descobertas e às novas
teorias que vierem a ser formuladas. Se não aceitarmos que nossa visão de mundo
é provisória, que sempre estará sujeita a revisões, ela se tornará obsoleta
rapidamente. Então devemos conceder à hipótese da existência de um deus alguma
plausibilidade? Certamente: a mesma que concederíamos a uma especulação
bastante improvável que, há milênios, está à espera de evidências que a
comprovem.
Voltando
ao assunto principal, é sempre comum vermos, devido a todos os mitos que
existem sobre o ateísmo, indivíduos imaginando e se perguntando como os ateus
são. Talvez pensem que são criaturas exóticas raríssimas que vivem num submundo
oculto, se vestem de preto e advogam pela destruição de todas as religiões, mas
isso não passa de fantasia. Em sua maioria, ateus são pessoas realmente comuns,
que apenas baseiam na lógica e nas evidências suas opiniões sobre a realidade.
O fato é que, provavelmente, todas as pessoas já se depararam com ateus
casualmente, mas sem se aperceberem disso, daí acharem que são tão raros. Na
realidade, se não perguntarmos diretamente aos indivíduos, é quase impossível
descobrir se são ateus. São poucos aqueles que gritam aos quatro ventos que não
acreditam em nenhum deus.
Sem
dúvida, também há os ateus exacerbados, tipicamente denominados ateus
militantes, alguns dos quais mantêm uma postura hostil para com a religião.
Alguns julgam que ela é uma grande travanca ao progresso da humanidade,
principalmente aqueles que têm algum conhecimento de História. Mas isso, como
vimos, não pode ser encarado como uma consequência direta do ateísmo, pois não
existe uma Santa Escritura ateísta que dita “tu vilipendiarás a religião e
escarnecerás a crença do teu próximo”. Se algum ateu procede de tal maneira,
trata-se apenas de um posicionamento individual, e querer imputar a causa de
seu comportamento agressivo ao ateísmo é uma atitude errada e desonesta.
Muitos
também pensam que os ateus são irredutíveis em sua descrença, que são
descrentes crônicos, incapazes de mudar seu ponto de vista. Se podemos dizer
que os ateus são irredutíveis, o são apenas na atitude de não acreditar em
hipóteses sem comprovação. Certamente, se algum teísta surgisse com uma prova
realmente válida para a existência de deus, até os ateus mais ferrenhos teriam
de dar o braço a torcer; não há motivos para se pensar o contrário. Afinal, por
que algum indivíduo se oporia à existência de um criador? Quem não gostaria de
ser a coroa da criação? Quem escolheria ser um efêmero mamífero, um grão de pó
pensante, se pudesse ser o imortal supra-sumo do Universo? Para citar Peter
Atkins:
Seria
de fato fascinante se o Universo tivesse um propósito; seria provavelmente
prazeroso haver vida após a morte. Porém, não há um só pedacinho de evidência
em favor de nenhuma das duas especulações. Como é fácil de compreender por que
as pessoas anseiam por um propósito cósmico e vida eterna, e não existe
evidência para ambos, me parece uma conclusão inescapável que nenhum dos dois
existe.
Realmente
seria ótimo se todos nós fôssemos tão especiais quanto gostaríamos de ser, mas
o fato é que não temos motivos para acreditar que somos. Novamente, é a
integridade intelectual que nos impede de acreditar em algo infundado somente
porque é confortante.
Pelo
exposto acima, percebemos que o ateísmo, ao contrário da imagem que se pinta
dele, não é representado por uma seita de iconoclastas fanáticos, imorais e
desequilibrados querendo destruir a religião a todo custo. Sem dúvida, o
ateísmo apresenta-se como uma posição totalmente razoável, lúcida e sensata
quando encarada na perspectiva objetiva; isto é, sem se levar em conta fatores
subjetivos, como o modo que “gostaríamos que a realidade fosse”, “no que
precisamos acreditar para viver” etc. Como foi salientado no início deste
trabalho, o que os indivíduos livres-pensadores buscam não são certezas
absolutas: buscam aquilo que é mais provável de ser verdadeiro.
O
objetivo deste capítulo foi desfazer alguns dos principais mitos, preconceitos
e calúnias que gravitam ao redor do ateísmo, para que assim sejamos capazes de
enxergar a posição de modo cristalino. Naturalmente, fica claro quanto esforço
é feito da parte dos teístas no sentido de deturpar o verdadeiro significado
dessa descrença. Em vez de enfrentar as verdadeiras questões, criam espantalhos
do que seria o ateísmo e, destruindo-os, ufanam-se de tê-lo refutado, quando na
realidade tal refutação não passa de um mal-entendido.
Contudo,
não pensemos que são todos tão ingênuos e inocentes: caluniam porque não podem
enfrentar; evadem porque não podem responder. O fato é que o teísmo sempre
terminou como perdedor em todas as vezes em que tentou enfrentar os fatos e a
racionalidade, e simplesmente desmoronaria se tentasse, honestamente, se
confrontar cara a cara com todas as questões que o ateísmo apresenta.