O baião lírico e o baião dialógico de Jonas de Andrade, o Bilinguim

 

Imagem 1. Jonas de Andrade, o Bilinguim. (FOTO | Reprodução | Internet).

 

“No meu jardim tem uma rosa
Tem uma rosa no meu jardim
No meu jardim tem muitas flores
Foi meu bem que plantou pra mim.”

(Trio Nortista)

 

Por César Pereira, Colunista

Quando Jonas de Andrade, o Bilinguim, nasceu no dia 29 de dezembro de 1941, Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, começava a sua carreira artística no Rio de Janeiro. No dia 05 do mês de março desse ano o futuro Reio do Baião atuou pela primeira vez num estúdio apoiando a execução da canção “A viagem de Genésio” da dupla Genésio e Januário e no dia 14 de março gravaria suas primeiras músicas: “Véspera de São João” e “Numa Serenata”.

Começava então a caminhada do grande artista do sertão nordestino que seria o precursor de muitos outros. O caminho aberto pelo músico negro Luiz Gonzaga no começo da década de 1940, seria igualmente trilhado por Jonas de Andrade e seu Trio Nortista vinte e cinco anos após o Gonzagão principiar a sua travessia.

Mas a trajetória de sucesso de Luiz Gonzaga não foi linear e nem tampouco imediata. Antes de alçar-se ao título de Rei do Baião, este artista precisou enfrentar o preconceito contra sua arte e contra a sua origem nordestina e negra. Muitas vezes foi relegado ao ostracismo e sujeitado a ocupar apenas determinados espaços, horários e palcos da cena cultural brasileira.

Em 1972, Luiz Gonzaga estreou no Teatro Tereza Rachel na cidade do Rio de Janeiro o espetáculo “Luiz Gonzaga volta pra curtir.” O evento marcou a carreira do Rei do Baião, pois era a primeira vez que sua arte ocupava um palco criado para abrigar os artistas das vanguardas da cultura brasileira das décadas de 1960 e 1970.

No Teatro Tereza Rachel apesentavam-se os principais nomes da Tropicália como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, os grandes nomes da Bossa Nova, os mais insignes sambistas do Rio de Janeiro, mas também a nova geração de músicos e artistas brasileiros que despontavam no cenário artístico nacional no início da década de 1970.

O palco da casa de espetáculos Tereza Rachel era o local onde se apresentavam os artistas que a classe média e os universitários consumiam naquele período. Luiz Gonzaga já era um artista com mais de trinta anos de carreira quando em março de 1972 estreou seu espetáculo no Teatro Tereza Rachel. Ele já um era um artista conhecido desde a década de 1940, pois o baião, (termo cunhado pelo próprio Luiz Gonzaga para se referir a sua estética musical), fazia sucesso entre o público que consumia a música nordestina.

Esses consumidores eram principalmente nordestinos que no período que se estende de 1940 a 1970, vão migrar para a região Sudeste do Brasil e depois para o planalto central fugindo da falta de perspectivas econômicas para si e suas famílias, isto é, da miséria endêmica que acometia os nove estados da região Nordeste.

O próprio Luiz Gonzaga é um desses migrantes que partiu do sertão, mais especificamente do Cariri, (sul do Ceará) em busca de melhores condições de sobrevivência nos grandes centros urbanos do Brasil. O rápido desenvolvimento econômico e a industrialização do Rio de Janeiro e São Paulo atrairia milhões de nordestinos que partiam do sertão a procura de meios de sobrevivência que os livrasse da vida miserável a qual viviam relegados devido a concentração de terras nas mãos dos latifúndios no interior do país.

Foi entre estes migrantes nordestinos que Luiz Gonzaga encontrou seus primeiros admiradores e foi principalmente entre eles que fez sucesso ao longo das décadas de 1940 e 1950. Quando a música do Rei do Baião começou a ocupar as rádios na região Sudeste e a indústria fonográfica percebeu que existia um público para consumir aquele tipo de arte, Luiz Gonzaga conquista também um lugar nas gravadoras e assim se faz conhecido também no Nordeste, a região de onde havia migrado fugindo da miséria.

A partir das décadas de 1950 e 1960, com a consolidação do modelo econômico desenvolvimentista no Brasil haverá uma expansão de 400% da indústria fonográfica. As estações de rádio que antes estavam restritas aos grandes centros urbanos do país e a algumas capitais dos estados se expandem para as cidades médias do interior do Brasil.

Os serviços radiofrequência modulada (Rádio AM), expandiram-se por todo o território nacional, atingindo 100% de cobertura nos meados da década de 1950. Assim, emissoras de rádio como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a Super Rádio Tupi, a Rádio Globo e a Rádio Record podiam ser sintonizadas praticamente em todos os lugares do Brasil.

Essa difusão da radiofonia permitiu que a música de Luiz Gonzaga chegasse ao sertão, e com isto aumentou a sua fama e cresceu o seu público consumidor. Luiz Gonzaga passou então a se apresentar em espetáculos públicos pelas cidades do interior do Brasil, principalmente do Nordeste nas décadas seguintes. Seu baião se propagaria pelas festas do sertão nordestino e mesmo nas capitais dos estados dessa região.

O barateamento dos aparelhos de rádio e dos toca-discos permitiu aos trabalhadores que possuíam uma renda comprarem esses produtos e desse modo ajudaram a alavancar as vendas dos discos dos artistas ligados a música nordestina especialmente nas décadas de 1970 a 1980.

No entanto, apesar do sucesso do Rei do Baião, sua arte nunca pode ocupar os palcos dos teatros frequentados pela classe média e a elite do país. O baião ficou restritos as festas do interior do Nordeste, comícios, festejos juninos, era visto como música folclórica, sub arte para consumo dos migrantes nordestinos. Assim, a presença de Luiz Gonzaga ocupando o espaço do Teatro Tereza Rachel foi um momento marcante para o baião e seus adeptos. Na sua edição de 12 de março de 1970, o jornal Correio da Manhã assim se pronuncia sobre o espetáculo Luiz Gonzaga Volta Pra Curtir:

Luiz Gonzaga Volta pra Curtir em cartaz no Teatro Tereza Raquel é a concretização de um trabalho de valorização da cultura musical de origens nordestina que vem sendo feita há vários anos por diversas manifestações artísticas (entre a quais o cinema de Glauber Rocha e, principalmente, através dos “baianos” Caetano Veloso e Gilberto Gil, como seus representantes mais famosos). Por esta razão e pelo próprio trabalho do “Rei do Baião” o espetáculo reveste-se de inúmeras significações culturais.

Para uns, a presença de Luiz Gonzaga e sua gente é a descoberta de um dos mais importantes atores de uma cultura realmente popular, não só pela origem de seus elementos constituintes, (ritmo, instrumentos, temas), mas também pelo público a quem basicamente se destina. Para outros, é a oportunidade de ouvir sem problemas preconceituais uma música profundamente enraizada em suas experiências e agora até valorizada intelecto e culturalmente. (Disponível em: https://caetanoendetalle.blogspot.com/2018/11/1972-luiz-gonzaga.html, acesso em 02/07/2023)

 

Como podemos perceber o jornal reconhece o valor cultural da música de Luiz Gonzaga, mas deixa bem claro que até aquele momento o baião foi apenas um estilo musical ouvido pelo ‘povo’, isto é, o artista enquanto não ganhou o direito de se apresentar num teatro frequentado pela intelectualidade e por consumidores da classe média não possuía relevância nem do ponto de vista intelectual ou cultural, pois quem o ouvia era exclusivamente o público para quem a música se dirigia, por meio dos temas abordados e dos instrumentos utilizados nos arranjos.

Mesmo reconhecendo a importância cultural de Luiz Gonzaga e do baião para a cultura musical, o jornal não deixa de sugerir o caráter exótico da arte do “Rei do Baião”. Essa arte precisa, segundo o articulista, ser vista e ouvida porque afinal de contas ela é parte de uma divulgação da cultura nordestina pelos meios intelectuais da Região Sudeste.

Desse modo, percebemos que Luiz Gonzaga foi um artista desbravador. Um homem negro que levou do Cariri cearense para os auditórios das rádios do Rio de Janeiro e São Paulo, para dentro da indústria fonográfica e finalmente para os palcos dos teatros da elite o baião, o forró, a sanfona, o triângulo, a zabumba, o gibão, o chapéu-de-couro, o côco, o xaxado, a embolada, a seca, os retirantes, as festas de São João.

Sem dúvida, esse artista negro foi e continua sendo um dos maiores instrumentistas e músicos brasileiros do século XX. Luiz Gonzaga abrirá os caminhos para que outros artistas nordestinos passem a sonhar em ocupar os espaços da arte restritos a música e a arte feita apenas na Região Sudeste.

Muitos foram os artistas do Nordeste do Brasil que seguiram os passos do Rei do Baião: Marinês, Zequinha Gonzaga, Dominguinhos, João do Vale, Jonas de Andrade.

João Pereira de Andrade tal como como seu mestre Luiz Gonzaga também precisou migrar do Cariri para o sudeste do Brasil. Antes de deixar o sul do Ceará em busca de uma vida melhor em São Paulo viveu primeiramente como agricultor na zona rural do município de Milagres, cidade localizada a 495 km da capital, Fortaleza.

Bilinguim, como era conhecido entre os mais íntimos, veio ao mundo nos fins do ano de 1941, o mês era dezembro, seus pais eram trabalhadores rurais na Sítio Junco, área rural localizada na cidade de Milagres. Na década de 1940, este município do sertão do Cariri, possuía uma população de 21.075 habitantes dos quais apenas 3.225 viviam na zona urbana, isto quer dizer que a maior parte da população de Milagres era composta de trabalhadores rurais, isto é, pessoas que dependiam exclusivamente da terra e dos produtos dela para garantir sua sobrevivência.

Os pais de Bilinguim eram, portanto, trabalhadores da agricultura, viviam de prestar serviços aos latifundiários locais, foi para um desses latifundiários que José Pereira de Andrade trabalhou como vaqueiro e trabalhador alugado antes de imigrar do Ceará para São Paulo nos meados da década de 1960.

A economia de Milagres desde o século XIX, data da fundação do município, tinha como principais bases a agricultura e a criação de gado. Na agricultura destacava-se a produção de algodão, mandioca e cana-de-açúcar. O município de Milagres possuía as melhores áreas agricultáveis do sertão do Cariri, além disso a abundância de fontes de água e a existência do Riacho dos Porcos um dos rios que formam a bacia do Rio Salgado permitia o cultivo de cereais e uma ótima produtividade para os proprietários locais.

No entanto, apesar dessa riqueza do solo e da abundância de água, a concentração de terras nas mãos das poucas famílias abastadas da região inviabilizava uma vida material estável para os trabalhadores locais. Esses trabalhadores viviam sujeitos a morarem de favor nas terras dos latifundiários e se sujeitavam a prestar serviços a estes proprietários para não serem despejados da terra.

Conforme Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães (2019):

 

Compreendemos enfim, ‘o morador de favor’, como aquele indivíduo que com sua família de tempos em tempos, tende a vagar de propriedade em propriedade em busca de ‘recursos produtivos’ e especificamente de um pouso, ‘a casa do morador’ mesmo consciente de poder ser esta, temporária. É um desapropriado da terra. Sendo assim, nessa condição, de morador de favor (de condição ou foreiro), passa a dispor de forma controlada desses recursos, a terra e muitas vezes, os próprios instrumentos de trabalho, como a enxada, a foice, o machado etc., que podem pertencer também ao proprietário. É estabelecido um contrato mesmo implícito, cujas cláusulas são do conhecimento de ambos, e mantido até que essa relação desigual garanta ainda que de forma precária, a própria sobrevivência e a da família do morador, que como um círculo que se reproduz e passa depois a constituir outros núcleos familiares de moradores submetidos à condição original, compreendido muitas vezes como se isso fosse natural. É de favor, por quê, independentemente de qualquer coisa, a manutenção dessa relação depende sempre da benevolência do proprietário. (GUIMARÃES, 2019, p.29).

 

Essa era condição dos milhares de trabalhadores rurais de Milagres desde o século XIX. Conforme a mesma autora que estudou as relações de trabalhado no município, estes moradores de favor ficavam sujeitos economicamente e politicamente aos donos das terras. Ser um morador de favor significava submeter-se aos acordos políticos dos latifundiários com seus aliados no estado do Ceará ou mesmo em nível federal.

O morador de favor não possuía direitos sobre a terra, nem tampouco liberdade de opinião política, para garantir sua sobrevivência e a da sua família trocava ou vendia sua força de trabalho pela permanência na terra de alguém morando provisoriamente, ou em caráter relativamente definitivo, até que um dia o dono da terra se descontentasse com o seu serviço ou passe a nutrir antipatia pelo trabalhador ou alguém de sua família.

Essa também era a condição da família de Bilinguim quando este veio ao mundo em 1941 e sob esta condição que ele crescerá e a se sujeitará enquanto viver em Milagres. Mais tarde essa condição de trabalhador rural que apenas possui sua força de trabalho para vender, trocar ou alugar repercutirá em sua arte.

Como um município de economia agrária e com alta concentração de terras nas mãos dos latifundiários locais, os índices de pobreza e miséria em Milagres sempre foram altíssimos. Nas décadas de 1940 e 1950, quando Bilinguim viveu sua infância e juventude, somava-se a esta pobreza da classe trabalhadora rural o analfabetismo atingia 85,8% dos habitantes do município.

Até princípios da década de 1960 só existia em Milagres duas escolas, uma delas era privada, pertencente a Congregação das Irmãs de Santa Tereza, depois assumida pela Irmãs Filhas de Santana que a transformou em Patronato e Escola Normal Dona Zefinha Gomes, (igualmente privada); a outra era uma escola pública que não chegava a suprir toda a demanda da população por educação, uma vez que 58% dos habitantes de Milagres eram jovens entre 6 e 17anos.

Bilinguim teve o privilégio de aprender a ler e escrever, coisa rara para um filho de trabalhadores rurais no Ceará da década de 1950 e 1960. Frequentou as aulas da escola pública que havia e logo aprendeu o suficiente para ler na cartilha e escrever cartas, não avançou além da 4ª série do ensino primário, mas como sempre fora um menino de rara inteligência soube usufruir do pouco que aprendera na escola para desenvolver outros saberes e assim enriquecer sua arte.

João Pereira de Andrade como foi batizado na igreja de Nossa Senhora dos Milagres pelo padre Joaquim Alves em 20 de janeiro de 1942, começou a trabalhar muito cedo ajudando o pai na lavoura. Era um menino negro que vivia atrás do pai, este era vaqueiro do proprietário das terras do Sítio Junco onde a família de Bilinguim vivia, além de vaqueiro o pai de João Pereira de Andrade cuidava da lavoura e trabalhava alugado.

A vida dos trabalhadores rurais do interior do Nordeste brasileiro se organiza em torno do trato com a terra e daquilo que nela se planta. No Vale do Cariri, sul do estado do Ceará, os principais cultivos eram milho, feijão, mandioca.

O trabalho na terra se dava ao longo do ano. Começava com o desmatamento de uma área de serra ou morro que se pretendia cultivar, pois geralmente as várzeas do vale estavam cultivadas com cana-de-açúcar para serem moídas nos engenhos de rapadura, que no período em que viveu Bilinguim eram particularmente numerosos em Milagres.

Esperando que o ano seguinte seria de boas chuvas, os trabalhadores rurais desbastavam uma área de mata, depois limpavam essa terra desmatada utilizando a técnica da coivara. Após as primeiras chuvas em fevereiro ou março plantavam milho, feijão, jerimum, favas, melancia. Se as chuvas fossem boas poderiam colher as primeiras safras de feijão ainda em abril, no caso de chover ao longo do mês de março e abril teriam oportunidades de plantar cerais para colher no mês de junho.

Junho representava o principal mês da colheita. Era a época de se colher o milho, o feijão, a fava, o arroz. Era um mês de boa fartura, o tempo das festas juninas era celebrado como o período de maior abundância de alimentos para esses trabalhadores, o mês em que se alegravam nos bailes em torno das fogueiras dos seus santos prediletos.

Essas festas, essa fartura, esses bailes, as músicas e danças presentes nas festividades coletivas de junho será rememorada no baião de Luiz Gonzaga e no baião do Jonas de Andrade e do seu Trio Nortista. A vida desses trabalhadores se alegrava quando havia essa relativa fartura, mesmo sabendo que teriam de entregar uma parte do que fora produzido por eles aos donos da terra, ainda assim viam motivos para festejar as boas colheitas, resultado de quando ocorriam boas chuvas nos três primeiros meses do ano.

Inspirado nas bandas cabaçais, nos pifeiros, nos zabumbeiros, nos sanfoneiros que via e ouvia tocar nos bailes do sertão Bilinguim vai acalentar o sonho de ser ele também um artista. A música negra praticada no sertão, no Vale do Cariri cearense será uma das grandes influências sobre a arte de Jonas de Andrade, o nome artístico que mais tarde Bilinguim adotará para assinar seus LP’s.

Ao ouvirmos suas músicas é possível acompanhar além da sanfona, instrumento que adotou para si inspirado no seu mestre, o desbravador Luiz Gonzaga, a brilhante música dos pífanos presente nas suas mais belas canções, a batida forte e intensa da zabumba e o compasso do triângulo marcando magistralmente a raízes ancestrais de sua música.

Pertencente a uma família de trabalhadores rurais negros, Bilinguim se fará um artista negro, tal qual o seu mestre Luiz Gonzaga. No começo dos anos de 1960, ele, o irmão e mais um primo criaram o primeiro grupo de forró, o Trio Graúnas do Cariri que se apresentava nas festas e bailes locais.

Cantando músicas de Luiz Gonzaga o Trio Graúnas do Cariri animava os folguedos e festas em Milagres e municípios próximos. Em 1966, Bilinguim imigrou para São Paulo e lá teve oportunidade de conhecer Luiz Gonzaga e Dominguinhos, foi assim que aconselhado pelo mestre Rei do Baião e pelo instrumentista Dominguinhos que para o seu conjunto musical o nome de Trio Nortista.

Em 1971, o Trio Nortista lançará seu primeiro disco, já com o nove nome, “Encontrei tu.” Desse disco faz parte o baião “Jardim colorido”:

No meu jardim tem uma rosa
Tem uma rosa no meu jardim
No meu jardim tem muitas flores
Foi meu bem que plantou pra mim

Lá tem rosa e açucena
Tem cravo branco e até jasmim
Mas a rosa é a mais linda
É a rainha do jardim

Jardim assim é bom
Jardim cheio de flor
Jardim colorido
Jardim do meu amor.

A letra é de Zé Lagoa, o compositor pernambucano de Macaparana, cujo nome verdadeiro era Rosil Cavalcanti e que foi letrista também de Luiz Gonzaga e Jakson do Pandeiro. A música é de Jonas de Andrade e dos companheiros do Trio Nortista, seu irmão e seu primo.

A música é um baião, e nela ouvimos as influências estéticas e culturais de Jonas de Andrade. Sendo sua maior influência artística o mestre Luiz Gonzaga vamos encontrar ao longo da discografia de Bilinguim uma série de intertextualidades da música dele e do Trio Nortista com a do Rei do Baião.

O baião é um ritmo musical africado com origem no lundu que chegou ao Brasil com a diáspora africana, isto é, homens e mulheres negros traficados para o Brasil trouxeram o ritmo e os instrumentos musicais nele empregados para o nosso país.

Neste texto chamamos de baião lírico as músicas de Jonas de Andrade com o Trio Nortista cujas letras façam referência ao bucolismo sertanejo, ao amor, aos bailes de São João, aos costumes do sertão, ao cotidiano do homem nordestino. Nesse baião lírico predominam os arranjos poéticos do pífano acompanhando a sanfona e com o triângulo marcando o compasso da música e a zabumba percutindo.

Observemos como os músicos do Trio Nortista desenvolvem os arranjos para a letra de Zé Lagoa:


Imagem 2. (FOTO | Criação do autor).


A música principia com um allegro assai, (muito rápido), marcado por cinco notas acima da primeira e da segunda pauta, o compasso é de quatro batidas nas duas claves e os instrumentos executam as notas com brio para que o baião se revele imediatamente como uma música dançante, antes de ouvirmos a voz do intérprete da canção que é o próprio Jonas de Andrade, ouvimos os músicos do Trio Nortista atacarem um côco.

O côco é um dos ritmos musicais que entrará ainda com Luiz Gonzaga na composição do baião. Sua instrumentação é feita com zabumba, triângulo, pandeiro e ganzá. Tais instrumentos serão muito explorados por Jonas de Andrade e seu Trio Nortista nas suas composições. O bater do pé no chão também é um hábito típico dos que cantam e dançam o côco, tal hábito também é perceptível na execução da música Jardim Colorido.

Ao principiar a música com um coco, ouvimos os instrumentos característicos do baião de Gonzagão, isto é, o Trio Nortista manteve aqui os elementos tradicionais da música nordestina, misturando o côco e o xote compôs seu baião lírico.  Ao longo da música o xote é sustentado pelas notas executadas pela sanfona, a zabumba, o triângulo e o gonguê, são estes instrumentos que criam os arranjos magistrais para a canção de Zé Lagoa.

O baião lírico, música cujos temas são as paisagens e costumes do Nordeste, o amor pela cabocla, a morena, a preta sertaneja, os sentimentos de nostalgia pela terra, o povo, os hábitos do passado, será recorrente na discografia de Jonas de Andrade e do Trio Nortista.

Ao longo da carreira artística de Jonas de Andrade foram gravados treze discos, doze ele gravou como o Trio Nortista, o último trabalho gravado dez anos (1994) depois que o trio se desfez, aparece apenas identificado apenas por Bilinguim. Em todos esses álbuns podemos ouvir a presença dos temas do baião lírico.

No primeiro disco “Encontrei tu” de 1971 temos as seguintes músicas cujos temas líricos se sobressaem: Encontrei tu, O cheiro da menininha, Sanfona triste, Não vou chorar, Ingratidão. No álbum de 1972, “Cantinho do amor” a quase totalidade das doze canções que estão no disco falam do amor e de temas nostálgicos. Destaque-se a canção Marieta, um baião lírico que se desenvolve por meio da sanfona, do triângulo, pífanos e ganzá. Já a música Ceará de Iracema é um xote nostálgico que ecoa as saudades do compositor do estado Natal.

O disco “Canta Jonas de Andrade” de 1973 profusamente os temas nostálgicos: as festas de São João, as paisagens do Norte, os tipos do sertão, a fé e a religiosidade do Cariri, principalmente Juazeiro do Norte. Na música Noite de São João, Trio Nortista executa um baião que descreve a fartura do mês de junho no Nordeste: na letra da canção ouvimos falar de milho assado, batata, quentão, feijão, ouvimos falar também da alegria do povo sertanejo pelo bom ano, provavelmente por causa do bom inverno.

Em 1975, Jonas de Andrade e o Trio Nortista gravaram o álbum “Cuidado com a língua” é neste álbum que se encontra o seu maior sucesso a música A velha debaixo da cama. No disco o Trio Nortista desenvolve um outro estilo de baião, estilo este que chamaremos de baião dialógico.

O baião dialógico caracteriza-se pelo evidente intensão de estabelecer um diálogo entre o intérprete da música e o ouvinte, isto é, a letra da canção desenvolverá com aqueles que a escutam uma intencionalidade evidente de se propor um diálogo para que a mensagem se complete.

Nas faixas do álbum “Cuidado com a língua” e “Cipó cheiroso”, ambos de 1975 percebe-se um intenso dialogismo, isto é, os temas procuram transmitir aos ouvidos mensagens que eles terão que completar de acordo com suas vivências pessoais e culturais.

Segundo o linguista Fiorin, um dos mais importantes estudiosos da obra de Mikhail Bakhtin “o dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dos enunciados” (2008, p.19), isto é, em um enunciado “estão presentes ecos e lembranças de outros enunciados, que com ele conta, com ele refuta, confirma, completa, pressupõe e assim por diante”. (p.21).

O dialogismo é fundamento da língua e sua presença se faz sentir em todos os enunciados, isto significa que este dialogismo não está ausente do que chamamos “Baião lírico”, mas por questões reflexivas preferimos salientar sua presença com mais intensidade na modalidade “forró safado” que é um tipo de música cujas letras transparece a intensão de comunicar ao ouvinte uma mensagem de duplo sentido, uma mensagem com evocações e sugestões eróticas.

No “Baião dialógico” o compositor utilizará recursos linguísticos para auxiliar no entendimento da mensagem subliminar proposta pela canção. Encontraremos neste tipo de música o humor, a ironia, a sátira, a cacofonia, as onomatopeias, os cacófatos, todos esses recursos serão utilizados para disseminar a polifonia ao longo da música.

O filósofo russo Bakhtin define o dialogismo como:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. (Apud FIORIN, 2008, p. 18)

Isto que dizer que numa situação comunicacional dialógica o emissor espera sempre pela resposta do receptor, evidentemente que esta é a característica essencial de todo processo comunicativo e o “Baião dialógico” cultivado pelo Trio Nortista nos dois álbuns de 1975, traz como principais motivos condutores essa intencionalidade comunicativa dialógica.

O “forró safado” já era cultivado por Luiz Gonzaga e outros intérpretes e compositores de baião nas décadas de 1950 e 1960. Um exemplo desse tipo de música são as canções ‘Derramaro o gai” (Derramaram o gás), “Xote das meninas,” “Forró desarmado,”. A cantora paraibana Marinês gravou várias músicas no estilo “forró safado”: Estaca nova, Língua do povo, Mulé de um, Negócio grande.

Todas estas músicas pressupõem uma situação comunicativa onde o ouvinte terá que completar a mensagem eximindo o intérprete ou compositor de tê-la dito completa, isto é, a responsabilidade de entender a mensagem de maneira erótica recairá sobre o ouvinte, uma vez que o compositor nunca disse nada diretamente. 

A intencionalidade dialógica pode ser observada na canção “O chevette da menina”:

Coitadinha da Ivete
Facilitou, estragaram seu Chevette
Mas coitadinho da Ivete
Em menos de uma semana estragaram seu Chevette.

Tá com a roda amassada
E a buzina tá quebrada
A carcaça da empenada
Arrancaram a instalação

Tá esquentando a bobina
Tá vazando gasolina
Olhe no chevette da menina
Essa semana todo mundo pôs a mão.

(Trio Nortista)

Temos aí uma clara mensagem de duplo sentido, aí estão em jogo os valores morais da sociedade a qual pertencem os envolvidos nas relações dialógicas. Neste baião da década de 1980 o autor da letra e o compositor da música brincam com a polissemia criando significados novos para as palavras: chevette, roda, buzina, carcaça, instalação, bobina, gasolina, atribuindo a elas uma conotação sexual, prática comum neste tipo de baião.

É uma canção de duplo sentido, portanto. De acordo com Preti o duplo sentido aguça a curiosidade e contribui para:

estabelecer um elo muito direto entre autor e leitor, comprometidos na significação dos vocábulos, dentro de uma tácita e tolerante aceitação da obscenidade disfarçada. (p. 103) Para a compreensão das possíveis intenções do falante em manifestar determinado significado “oculto” é necessário que entre ele e o destinatário haja pressupostos comuns a propósito do conteúdo do enunciado. (PRETI, 1992, p. 107).


O disco “Minha bodega” de 1983 é particularmente rico em músicas no estilo “Baião dialógico,” a canção que dar nome ao álbum de autoria do compositor Alcymar Monteiro possui no refrão os seguintes versos capciosos:


Se você quer tomar um mé
Mé temos, mé temos,
Beba logo essa mé

Observe a cacofonia intencional entre as palavras (forma oral e não culta da palavra mel) e o presente do indicativo do verbo ter (temos). Propositalmente a cacofonia procura dar aos versos uma conotação sexual, pois no interior do Nordeste (meter, meteção, meto, metemos), têm sentido erótico significando o ato sexual, a penetração fálica em outro órgão genital.

A primeira vista esse tipo de música pode parecer grosseira ou imprópria, mas ao analisarmos sua construção linguística e etnográfica percebemos que estas peças são produzidas dentro de um processo de resistência moral e cultural das classes mais baixas contra as imposições moralistas e moralizante do poder constituído, seja esse poder político ou religioso.

A vida em sociedade é tensa e conflituosa e tais tensões e conflitos emergem nas mais diferentes formas de expressão artísticas, nos gestos, na língua, no vestuário. Desse modo, podemos concluir que o “Baião dialógico” de Jonas de Andrade e seu Trio Nortista é uma tática de resistência contra as forças impositivas da moral e da censura que nas décadas de 1970 e 1980 fundamentavam a sociedade brasileira.

As canções de duplo sentido e de conteúdo erótico já eram cantadas na Idade Média europeia, e há relatos de sua presença nos teatros da Grécia Antiga e Roma Antiga. Eram cantadas também no Brasil do século XIX e começo do XX através das letras dos maxixes, das polcas e modinhas. Seu estilo é humorístico e satírico, objetiva quase sempre a expor de forma jocosa um valor moral ou inverter este valor.

O maior sucesso do Trio Nortista é o “Baião dialógico” A velha debaixo da cama. A letra da canção é de Geraldo Nunes, mas foi Jonas de Andrade e o Trio Nortista que criaram a música que acompanha a letra. A velha debaixo da cama é uma espécie de fábula sem moral no final, o compositor cria um encadeamento de frases onde se conta a seguinte história:

A véia debaixo da cama
A véia criava um rato
Na noite que se danava

O rato chiava
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um gato
Na noite que se danava

O rato chiava, o gato miava
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um cachorro
Na noite que se danava

O rato chiava, o gato miava
O cachorro latia
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um macaco
Na noite que se danava

O rato chiava, o gato miava
O cachorro latia, o macaco pulava
E a véia dizia
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um porco
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava
O cachorro latia, o macaco pulava
O porco fuçava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um bode
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia, o
Macaco pulava,
O porco fuçava, o bode berrava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um jumento
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia, o
Macaco pulava,
O porco fuçava, o bode berrava, jumento rinchava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criava um leão
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia, o
Macaco pulava,
O porco fuçava, o bode berrava, jumento rinchava,
Leão
Esturrava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria

A véia debaixo da cama
A véia criou uma cobra
A cobra mordeu o rato, mordeu o gato, mordeu o
Cachorro, mordeu
O macaco, mordeu o porco, mordeu o bode, mordeu o
Jumento,
Mordeu o leão...
"Mordeu a véia!!!... A véia!!!
- E o que que houve com a véia cumpadre?
- A cobra mordeu a véia, e a véia morreu... E é só
Isso... Que
Fica pior pra mim... Tchau gente! Fui!!!

Esta é a letra escrita por Geraldo Nunes, um conto cujos personagens vão se entrelaçando até o desfecho cômico. O estilo adotado é um texto cumulativo, a cada estrofe ou verso se acrescenta novos personagens e novas situações, para chegar-se à conclusão foi preciso trazer para o conto o personagem da serpente, símbolo da traição e do pecado tanto na cultura erudita quanto popular.

A serpente também possui significado fálico, como também vários dos animais enumerados na letra têm atributos masculinos, isto é, a ideia central da canção, posto que aparentemente infantil e ingênua é ainda intencionalmente erótica e conotativamente sexual.

Para acompanhar a letra de A velha debaixo da cama, Jonas de Andrade e o Trio Nortista criaram esta música:


Imagem 3. (FOTO | Criação do autor).


Observemos que a distribuição das notas nas pautas da partitura obedece ao ritmo frenético da música. Logo na abertura os instrumentos imitam uma grande gargalhada que será o leitmotiv que ouviremos pontuando a música, dessa forma sempre que o personagem a Velha introduzir um novo animal debaixo da cama ouviremos essa gargalhada criada pelos instrumentos.

O frenesi da música é magistralmente produzido por meio da instrumentação utilizada por Jonas de Andrade o Trio Nortista que é sanfona, ganzá, pandeiro, triângulo, zabumba, pífanos. O tom humorístico da letra da canção criada por Geraldo Nunes é mantido pela música de Bilinguim.

A Velha debaixo da cama, é um “Baião dialógico”, pois espera que o ouvinte complete a mensagem com suas vivências cotidianas. A música do Trio Nortista se comunica com o ouvinte por meio das notas mais altas na escala:


Imagem 4. (FOTO  | Criação do autor).

A voz de Jonas de Andrade que ouvimos após vinte segundos de abertura nos surpreende por ser a voz dos contadores de história, a voz dos cantadores do Nordeste, não é uma voz grave, não se impõe pelo virtuosismo vocal, destaca-se do meio dos instrumentos por ser crua, voz de vaqueiro aboiador.

Em 1994, o Trio Nortista e Jonas de Andrade gravou seu último dico juntos. O nome do álbum, Doutor cadê o trem, era composto por canções nostálgicas, como a que dar título ao disco, é uma música com letra do próprio Jonas de Andrade onde se pergunta insistentemente ao governador do estado do Ceará ou ao ministro dos transportes cadê o trem de ferro que fazia a viagem do Crato, cidade o Cariri cearense até a capital Fortaleza.

No disco também há o belo baião “Progresso com maldade” onde se questiona a modernização das cidades do sertão nordestino, questiona-se se este progresso é realmente bom para o povo sertanejo e a terra caririense.

Ainda em 1994, Jonas de Andrade gravou seu último LP, O Bilinguim, foi seu último trabalho. Em agosto deste ano visitou sua cidade natal, Milagres, chegou a compor uma música em homenagem ao seu torrão e em março de 1995 faleceu na cidade do Crato, onde fixara residência desde que retornara de São Paulo.

A música nordestina, a música brasileira foi enriquecida pela arte de Jonas de Andrade e o Trio Nortista ao longo das três décadas em que atuaram com seus “Baião lírico” e com seu  “Baião dialógico”, seguindo a trilha aberta por Luiz Gonzaga um dos grandes artistas negros do Brasil no século XX, Jonas de Andrade, ele também um homem negro, um nordestino imigrante, um trabalhador, um artista preto procurou fazer-se como uma voz de resistência cultural num Brasil dominado pelos valores moralistas e moralizantes, pela censura, pelo autoritarismo, pelo preconceito contra a arte e a música que não eram feitas pelos brancos, a arte e a música que não se prestavam a ser consumida pela elite e a classe média alinhada com os valores burgueses cosmopolitas.


Imagem 5. Trio Nortista, Jonas de Andrade no centro ladeado pelos seus companheiros Dandinho e Tiziu. (FOTO | Reprodução | Internet).


REFREÊNCIAS

Todas as letras das músicas de Jonas de Andrade e o Trio Nortista foram transcritas do endereço: https://www.letras.mus.br/trio-nortista/discografia/.

Correio da Manhã. Edição de 12 de março de 1972. Disponível em: https://caetanoendetalle.blogspot.com/2018/11/1972-luiz-gonzaga.html, acesso em 02/07/2023.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

GUIMARÃES: Maria de Lourdes Gonçalves. Os moradores de favor nos sertões, sujeitos da história: reflexões para o ensino, disponível em: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/552890

PRETI, Dino. A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984 (2. ed. LPB, 2010).

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