Pesquisas
recentes coordenadas pelo economista francês Thomas Piketty, referência atual
nos estudos sobre desigualdade, ressuscitaram um velho debate no Brasil: os
avanços sociais e econômicos nos governos de Lula e Dilma Rousseff foram ou não
suficientes para reduzir o fosso entre pobres e ricos?
Segundo
os dados compilados pela equipe de Piketty, a resposta seria não. Entre 2001 e
2015, período analisado pelo World Wealth and Income Database,
instituto codirigido pelo economista, os 10% mais ricos absorveram 60,7% dos
ganhos de renda no Brasil, enquanto os 10% mais pobres abocanharam meros 17,6%.
Para os liberais, as constatações de Piketty desmentem o discurso triunfalista
do PT a respeito do sucesso das medidas de combate às disparidades nos últimos
anos.
Intrigada
com os resultados e incomodada com as críticas “oportunistas” às políticas sociais adotadas nos governos petistas,
Tereza Campello, ex-ministra de Desenvolvimento Social, e um grupo de
especialistas empenharam-se em aprofundar as análises.Em vez de se ater à
ligeira comparação entre as faixas mais altas e mais baixas de renda,
analisaram os efeitos das medidas compensatórias sobre diferentes faixas da
população.
O
estudo “Faces da Desigualdade no Brasil” desmonta a simplificação de
que a falta de mobilidade social quando se compara o topo com a base da
pirâmide prova o fracasso total dos programas de distribuição de renda e de
estímulo ao acesso a bens públicos. O Bolsa Família, os aumentos reais do
salário mínimo, as cotas, o ProUni, além dos investimentos federais em serviços
básicos, provocaram uma mudança estrutural muito mais significativa do que se
imagina.
Em
alguns casos, principalmente no quesito educação, surpreende a velocidade da
transformação. “Existe uma tendência a se
comparar o topo da pirâmide com os demais, como se essa massa de 90% fosse
homogênea. Não é. Há diferenças profundas neste contingente”, afirma
Campello.
“Faces da Desigualdade” baseia-se nos
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE. São, portanto, números
oficiais, à disposição de qualquer interessado. O estudo será apresentado nesta
segunda-feira 27 em um seminário do Conselho Latino Americano de Ciências
Sociais. A íntegra do trabalho está disponível no site do Clacso.
A
abordagem do estudo, diz a ex-ministra, afina-se à concepção dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, uma agenda lançada em 2015 com
17 grandes temas e 169 metas, entre eles a erradicação da pobreza e da fome.
Nesse caso, a recomendação é prestar menos atenção às médias, que não raro
produzem ilusões estatísticas, e se concentrar no propósito de “não deixar ninguém para trás”.
Foi
o que aconteceu no Brasil entre 2002 e 2015, demonstra o levantamento. Quem
tinha “ficado para trás” conseguiu
progredir rapidamente para os padrões históricos do País. Os negros, em
especial, foram os maiores beneficiados. E não se trata aqui de ganhos de renda
com o Bolsa Família, mas de avanços na educação.
Em
2002, último ano do mandato de Fernando Henrique Cardoso, o número de jovens
brancos entre 15 e 17 anos que frequentavam a série escolar compatível com a
idade era quase o dobro daquele de negros na mesma faixa etária: 2,7 milhões
contra 1,5 milhão.
Treze
anos mais tarde, a relação inverteu-se: havia 3,3 milhões de jovens negros na
escola contra o mesmo contingente de 2,7 milhões de brancos. “É um dado contraintuitivo. Quem diria que
hoje há mais negros do que brancos frequentando uma sala de aula na idade certa
nesta faixa etária?”, pergunta a ex-ministra.
A
consequência direta da mudança reflete-se em outro indicador. O ingresso de
negros nas universidades também avançou em maior velocidade do que a média. O
crescimento nesse intervalo de tempo chegou a 268%. O total de universitários
negros passou de 441 mil para 1,6 milhão, enquanto a quantidade de alunos
brancos subiu de 1,8 milhão para 2,3 milhões.
Não
só os jovens ganharam. No período, os chefes de famílias negras que concluíram
o ensino fundamental saltaram de 5,7 milhões para 17,5 milhões. Normalmente,
núcleos familiares mais pobres são comandados por mulheres sozinhas,
desprovidas do apoio de um parceiro para dividir as despesas.
O
aumento da escolaridade teve impacto sobre um outro índice, essencial à
sobrevivência. Entre 2002 e 2015, a taxa de morte de crianças por mil nascidos
vivos despencou 45% na média nacional. No Norte e no Nordeste, a queda foi mais
acentuada: 47% e 53%, respectivamente. “Uma mãe com ensino fundamental completo
é mais importante do que o acesso a médicos na redução da mortalidade infantil”,
explica Campello.
Apesar
de os indicadores de fornecimento de água potável e saneamento continuarem
medievais, os investimentos na ampliação da cobertura tornaram um pouco menos
cruel a realidade de quem vive na pobreza. Entre os 5% mais pobres, ela subiu
de 23,9% para 51,1% da população. A variação de 114% ficou bem acima dos 18% de
avanço na média do País. No total, 22 milhões de famílias brasileiras
conquistaram no século XXI o direito a um serviço básico disseminado pelo resto
do planeta no século XIX.
De
maneira geral, durante as administrações petistas, a renda dos 5% mais pobres
cresceu em uma velocidade quatro vezes maior do que os ganhos dos mais ricos.
Ela cresceu 63,3% na faixa dos 20% mais pobres e se expandiu 37,7% para o total
da população.
“Essa inflexão nos padrões de crescimento de
renda”, anotam os pesquisadores, “foi
resultado de uma opção estratégica de associar o desenvolvimento econômico à
inclusão social. Um conjunto de políticas públicas concorreu para romper com o
histórico processo em que o crescimento era seguido do aumento da desigualdade.”
O
conjunto de políticas sociais e a expansão de investimentos públicos e privados
possibilitaram ao Brasil atingir em 2015 uma marca histórica: a extrema pobreza
reduziu-se a 3% da população. No mesmo ano, a pobreza crônica multidimensional,
que leva em conta não só a renda per capita diária, mas o acesso a serviços
básicos, caiu de 9,8% para 1%.
O
refluxo das conquistas sociais iniciado em 2015, ainda sob a administração de
Dilma Rousseff, e aprofundado após o impeachment, somado às reformas de Michel
Temer que retiram direitos dos trabalhadores e limitam a capacidade de
investimento do Estado, vai erodir em pouco tempo os avanços recentes, avalia a
ex-ministra. “Basta metade das medidas do
governo Temer”, diz, “para destruir
tudo o que foi feito.”
Segundo
Campello, não fosse a crise econômica que convulsionou os países desenvolvidos
em 2008 e atingiu o Brasil no fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, o País
teria um horizonte de ao menos mais uma década para aprofundar os avanços
sociais. “Quando Lula assumiu, havia uma
enorme exclusão. O processo de incorporação dos excluídos, por si, foi capaz de
gerar uma dinâmica econômica favorável.”
As
condições, internas e externas, mudaram radicalmente desde então. O caráter
regressivo do sistema tributário, no qual os mais ricos pagam proporcionalmente
menos do que os mais pobres, inibe os governos de perseguir a justiça social
preconizada pela Constituição de 1988.
Nenhum
candidato comprometido com o crescimento econômico associado à redução da
desigualdade terá sucesso, caso o Brasil realize eleições presidenciais em
2018, se oferecer mais do mesmo. (Com
informações de CartaCapital).