De
que forma uma criança negra pode encontrar significado positivo na vida se não
consegue se ver como personagem central no universo literário? Essa é uma
pergunta-chave trazida pela contadora de histórias, pesquisadora e
arte-educadora Kiusam de Oliveira ao pensar seus livros como ferramentas para o
empoderamento de jovens e crianças negras no Brasil.
Essa
missão é desenvolvida pela escritora a partir de uma concepção de infância que
traz raízes e referências africanas, alçando o corpo à categoria de “território
sagrado”. É por meio do resgate da ancestralidade em suas histórias que Kiusam
de Oliveira constrói a ponte de reconexão para a autoestima de jovens e
crianças negras, fonte de respeito e responsabilidade como futuras guardiãs das
tradições na cultura afrobrasileira.
“Ela
[ancestralidde] é capaz de provocar as costuras psíquicas necessárias para que
suas identidades, fragmentadas pelas vivências racistas, sejam reconstruídas de
forma saudável”, defende. A partir dessa ideia Kiusam dá nome à magia presente
naquilo que faz: “Literatura Negra do Encantamento”.
Kiusam
de Oliveira é doutora em Educação e mestre em Psicologia pela USP, especialista
nas temáticas das relações étnico-raciais, contadora de histórias e professora
de danças afro-brasileiras. É autora dos livros "O Mundo no Black-Power de
Tayó", Omo-Oba: Histórias de Princesas, Omo-Oba: Histórias de Príncipes e
O mar que banha a ilha de Goré, obras que fazem sucesso entre as crianças e que
contribuem para o enfrentamento do racismo no Brasil.
“Até
que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o
caçador.” Este provérbio africano, de acordo com Kiusam, define a necessidade
de dar voz a uma narrativa negra historicamente apagada. Nesse sentido, ela é
categórica e tem consciência de seu papel: “É tempo de nós,
‘mulheres-leoas-negras’, contarmos nossas histórias.”
Catraquinha: Como a educação para a
diversidade na infância ajuda a combater o preconceito e o racismo estrutural
no Brasil?
Kiusam de Oliveira:
"Educar para a diversidade tem ligação com a concepção de infância que
temos. Tudo o que conhecemos sobre a infância é fruto de livros e teorias de
pesquisadores estrangeiros como Piaget, Vygostky, Wallon, etc.
Porém,
a infância para os povos indígenas, africanos e afro-brasileiros não tem
ligação com as ‘etapas do desenvolvimento’ propostas por Piaget, por exemplo. Ao
se pensar ‘afrorreferenciadamente’, perceberemos que, na infância das crianças
negras que vivem suas culturas intensamente, elas estão próximas aos adultos,
reproduzindo suas ações de forma muito prazerosa.
Isso
fica muito explícito ao observarmos as crianças negras em movimento no
candomblé, no jongo, no congo, no tambor de crioula. Uma criança ligada ao
lazer e às tarefas coletivas está dando continuidade à ancestralidade de seu
povo, à cosmogonia de seu grupo étnico-cultural preservada através das danças,
das cantigas, das rezas e orikis [orações, em Iorubá], das histórias e itans
[mitos, em Iorubá] que sustentam o seu povo. Portanto, não estão condicionadas
às ações predeterminadas pela faixa etária à qual pertence, um número ‘x’ delas
preestabelecidas para crianças fazerem entre 0 e 1 ano, ou entre quatro e cinco
anos de idade."
Catraquinha: Você poderia explicar
melhor essa concepção de infância?
Kiusam de Oliveira:
"Penso numa infância em que as crianças são consideradas partes
fundamentais de um todo bem maior que elas, já preestabelecido e onde devem
participar de uma gama variada de experiências que as coloquem frente à frente
com novos desafios e situações para que sejam capazes de desenvolver suas
capacidades de protagonizar, de escolher, de opinar, de se emocionar, de
enfrentar problemas e de se solidarizar.
É
nessa perspectiva conceitual que haverá quem pense que tratar de preconceito,
estigma, discriminação e racismo estrutural no Brasil não são assuntos para a
infância, inclusive acrescentando que nenhuma criança é racista.
Haverá
um outro grupo de pessoas que estimularão as crianças a enfrentarem tais
assuntos de frente, porque mesmo acreditando que a criança não seja racista, se
aceita que ela é capaz de reproduzir o racismo que vê, ouve e aprende em casa.
E
uma vez que o racismo é estrutural, isto é, faz parte da construção educativa
desde a infância brasileira, precisa ser desconstruído por pessoas com visões
mais dinâmicas sobre a constituição do país, sem que emitam juízo de valor ou
afirmem que as contribuições dos brancos no Brasil são mais significativas que
as contribuições de negros e indígenas."
Catraquinha: E o que é preciso para
desconstruir essa ideia?
Kiusam de Oliveira:
"A diversidade precisa ser vivenciada e experimentada onde ela se
processa, por meio dos grupos culturais como, por exemplo, as escolas de samba,
os blocos afro-brasileiros e os festivais culturais. ‘Afrorreferenciadamente’
pensando, o processo de aprendizagem se dá de corpo inteiro e não com o cérebro,
tendo a primazia do pensamento em detrimento das outras partes do corpo.
Falo
de um corpo vivido no presente, a partir de princípios ancestrais africanos,
onde ele é considerado um território sagrado, ocupado pelo espírito e onde
ambos rompem tempo e espaço, devendo ser tratados com muito respeito
ritualizado, sempre os exaltando através dos ritos de passagens e das
brincadeiras.
Sendo
assim, acaba sendo por natureza um ‘corpo-resistência’ que se expressa de
várias formas. O corpo precisa estar mergulhado na experiência para ganhar
sentido e significado, pois aqui há uma mudança de paradigma fundamental: não
se trata mais de falar do corpo, mas fazê-lo falar de várias formas, através de
diversas linguagens.
Esse
‘corpo-resistência’, portanto, acaba por estar conectado com a realidade vivida
na coletividade, em seu entorno e, desta forma, é um corpo que está mergulhado
na linguagem e nas informações. Sendo assim, precisa estar preparado para lidar
com qualquer assunto que o atinja diretamente, e as questões raciais fazem
parte da infância.
No
Brasil, as crianças em geral já são capazes de racializar, inclusive, as
brincadeiras das crianças negras, estabelecendo para elas colocações de
subalternidade predeterminadas como bandidos, empregadas domésticas, monstros,
etc."
Catraquinha:
Dentro do contexto que você apresentou, como a literatura infantil e a arte
podem servir como ferramentas para falar sobre representatividade?
"A
literatura infantil e a arte devem caminhar juntas e podem ser vistas como
ferramentas importantes para pensar e construir esse ‘corpo-resistência’.
Escrevo focada no empoderamento das crianças e jovens negros, mas indiretamente
meus textos proporcionam oportunidades para que não negros se vejam no processo
relacional com a diversidade entre as pessoas a partir das diferenças. Proponho
textos capazes de revelar a beleza do povo negro, fortalecendo as
características da criança negra que possui cabelos crespos, nariz largo,
lábios grossos, etc. Isso também revela a possibilidade de brancos refletirem
sobre seus privilégios em sociedades racistas como a nossa, entendendo que há
outros padrões de beleza e que podem ser solidários numa luta que é de todos.
Tenho
chamado o tipo de literatura que produzo de “Literatura Negra do Encantamento”.
Ela está focada na ancestralidade e no fortalecimento das identidades negras. Ela
é capaz de atingir as estruturas psíquicas mais profundas de jovens e crianças
negras, provocando as costuras psíquicas necessárias para que suas identidades,
fragmentadas pelas vivências racistas, sejam reconstruídas de forma saudável.
Tal literatura depende da arte presente nas ilustrações que devem encantar
crianças e jovens negros para que se sintam orgulhosos do que veem e se
reconheçam naquelas imagens.
Esse
tipo de literatura considera as situações de conflitos existentes nos corpos
negros bem como no corpo social, as tensões presentes nas relações
interpessoais, sem perder de vista a necessidade de reencantamento pelo próprio
corpo. Também apresento adultos negros que representam o belo, o positivo, um
padrão de beleza afrocentrado, desvalorizado na sociedade em geral, mas que no
campo da fantasia dos meus livros é extremamente valorizado."
Catraquinha: Um dos empecilhos para a abordagem das
relações étnico-raciais no ensino fundamental é a falta de materiais didáticos
adequados. Nesse sentido, como seus livros ajudam a implementar as leis que
tratam do ensino da história e da cultura afro-brasileira?
"Essa
literatura que menciono parte da consciência da necessidade do empoderamento
pessoal e do resgate da autoestima das crianças e jovens negros ao apresentar
personagens protagonistas negros e negras, fortalecidas diante de situações
tensas que vivem em seus cotidianos, independentemente de suas idades. Também é
uma literatura que pode revisitar o continente africano como o “Berço da
Humanidade”, o apresentando de forma positiva e em suas tradições ancestrais
para que as crianças e jovens negros possam sentir orgulho de suas origens,
compreendendo que a nossa história não começa no tráfico negreiro.
É
assim que a minha produção tem contribuído com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação 9394/96, que regulamenta a educação brasileira e que, em seu artigo
26-A, trata especificamente do ensino da História e Cultura Afro-Brasileiras em
todas as escolas e segmentos do país. Hoje, não se pode dizer que existem
poucos materiais à disposição dos profissionais da educação. O que se torna
necessário é compreender como fazer a análise crítica de todos estes materiais
lúdicos e literários que estão à disposição no mercado e, a partir daqueles
escolhidos por nós, como utilizá-los tirando o melhor proveito de cada um
deles.
Catraquinha:
Seus livros, embora apresentem diferentes temáticas, trazem à tona uma questão
mencionada anteriormente por você e fundamental na construção da identidade de
qualquer povo: a ancestralidade. Nesse sentido, por que resgatar as histórias
africanas ajuda a empoderar crianças negras?"
Kiusam de Oliveira:
Penso ser muito injusto num país de maioria negra continuarmos a ter de pedir
licença para falar o que pensamos. Num país ‘machocêntrico’ como o nosso, os
homens desqualificam as mulheres de várias formas. Esse ‘machocentrismo’
produzido pelo homem branco, católico, de classe média, racista, homofóbico,
misógino, etc., precisou reforçar o tipo feminino carente, dócil, perturbado, inocente,
inábil, incapaz, incompetente, dependente, tipos presentes nos contos de fadas.
Os mitos que constituem a chamada “literatura infantil” são, segundo o
psicólogo Bruno Bettlheim, utilizados como forma de ajudar a criança ‘a
encontrar significado na vida’.
E
aí eu pergunto: dentro desse ponto de vista, de que forma uma criança negra
pode encontrar significado positivo na vida se não consegue se ver como
personagem central no universo literário brasileiro? Que tipo de identidade
está a ser formada na criança negra ao apresentarmos insistentemente contos
como Branca de Neve, Gata Borralheira, Cinderela, João e Maria, Cachinhos
Dourados, Rapunzel, etc.? Eu posso lhes responder: estará sendo formada uma
identidade deteriorada, onde rapidamente a criança negra passará a desejar ser
o que jamais será: uma criança branca.
Catraquinha: Voce tem alguma
experiência pessoal que retrate isso?
Kiusam de Oliveira:
Há dois anos, após uma contação de história em uma faculdade, um menino pediu a
palavra. Ele tinha 10 anos, era negro e vivia num orfanato. Ele disse ‘meu
sonho é ser um príncipe branco com olhos azuis e uma franja loira caindo nos
meus olhos. Se eu rezar bastante vou virar branco?’ Não hesitei em dizer que
jamais se tornaria branco, por mais que rezasse, o que deixou todos os
presentes praticamente imóveis. Ele nos disse publicamente que uma das
educadoras dizia que se ele rezasse muito seus desejos se realizariam.
A
que ponto se chega em nome da moral, dos bons costumes, da religião? E esse é o
tipo de pessoa que costuma dizer, ‘mas eu não fiz por mal’. A minha religião –
o candomblé de ketu – me ensina a dizer a verdade por mais dor que traga a
alguém. Então, para mim, restou de forma didática, tratar a ancestralidade
respeitosamente, porque ela me reconstituiu enquanto pessoa e jovem negra que
já estava destruída pelo racismo vivido no cotidiano pelo meu corpo, aos 11
anos de idade. É a ancestralidade africana que tem reconectado as crianças e
jovens que entram em contato com as histórias que escrevo.
Numa
contação, perguntei às crianças presentes o que era ancestralidade e uma menina
linda de 9 anos me respondeu ‘ancestrais são familiares que viveram um dia, há
muito tempo atrás, séculos mesmo, que morreram e deixaram coisas importantes
para nós continuarmos com suas histórias.’ Quando ela foi aplaudida pelo
público, eu perguntei como ela sabia disso. Ela respondeu que aprendeu comigo,
lendo os meus livros. Foi assim que ela parou de ter medo de fantasmas:
aprendeu que ancestrais são mais poderosos, integrantes da família e que eles a
protegem.
Catraquinha: É
bem mais do que o resgate de histórias, portanto, mas o despertar de uma
responsabilidade em relação à continuidade das tradições de matriz africana...
Kiusam de Oliveira:
É fundamental resgatar as histórias africanas, porque se trata de tesouros
preservados pela oralidade e que são reificadas no cotidiano de diversas
formas, ainda que de formas inconscientes, por nossos corpos. “Até que os leões
tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”. Para
mim, esse provérbio africano diz tudo, com pouquíssimas palavras.
Enquanto
brancos falavam e pesquisavam sobre nós, negros e negras, havia uma história,
uma grande metanarrativa hegemônica que está ao longo dos últimos vinte anos
sendo quebrada e se mostrando inconsistente. É o perigo da história única da
qual nos fala a escritora Chimamanda Ngozi Adiche. Não nos atende.
Pessoas
referem-se às diversas histórias dos heróis do Brasil, por exemplo, sempre
mencionando homens brancos, deixando de lado as mulheres negras heroínas, os
diversos negros e indígenas. Pois bem, nosso tempo é esse: tempo de nós,
‘mulheres-leoas-negras’, contarmos nossas histórias, sob nossas perspectivas
seja no cinema, no teatro, na literatura. Nossas histórias objetivam sempre
desterritorializar o outro branco, para que entendam que estão em
‘solo-pátria-mãe-gentil’ roubado e que isto custou as vidas de milhares de
africanos, afro-brasileiros e indígenas. Justiça para mim, portanto, diz
respeito à redistribuição desse solo, ainda que nesse momento isto seja
possível somente no campo teórico. (Com
informações do Catraquinha).
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Kiusam de Oliveira é autora dos livros "O Mundo no Black-Power de Tayó", 'Omo-Oba: Histórias de Princesas", "Omo-Oba: Histórias de Príncipes" e "O mar que banha a ilha de Goré", obras que fazem sucessos entre as crianças e que contribuem para o enfrentamento do racismo no Brasil. (Foto: Divulgação/ Assessoria). |