![]() |
| (FOTO | Reprodução). |
“A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.” Beatriz Nascimento
Maria
Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju, Sergipe, em 17 de julho de 1942. Oitava
filha do casal formado por Rubina Pereira do Nascimento e Francisco Xavier do
Nascimento, teve nove irmãos. Assim como milhares de famílias nordestinas da
época, em 1949, Nascimento migrou para a região Sudeste, mais precisamente para
o Cordovil, bairro do subúrbio carioca.
Em
1969, aos 28 anos de idade, Beatriz Nascimento é aprovada para o vestibular do
curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), graduação
que conclui em 1971. No mesmo período, fez estágio em pesquisa no Arquivo
Nacional, sob orientação do historiador José Honório Rodrigues. Tempos depois,
torna-se professora da rede estadual fluminense.
Ao
longo de sua trajetória, a historiadora sergipana sempre aliou a militância com
a vida acadêmica. Ao lado de pesquisadores e pesquisadoras negras, fundou o
Grupo de Trabalho André Rebouças na Universidade Federal Fluminense (UFF). Na
mesma instituição, em 1981, concluiu o curso de pós-graduação Latu Sensu em
História do Brasil. Entre os anos finais da década de 1970 e o início dos anos
1980, foi presença constante na retomada dos movimentos sociais negros
organizados, mantendo vínculo inclusive com o Movimento Negro Contra a
Discriminação Racial (MNUCDR, nome mais tarde reduzido para MNU), fundado em
1978.
Enquanto
pesquisadora, Beatriz Nascimento debruçou-se durante duas décadas ao estudo das
formações dos quilombos no Brasil. Nos dizeres do antropólogo Alex Ratts (2006,
p. 54), autor de sua biografia intelectual, Beatriz pensava os territórios de
resistência de escravizados e seus descendentes de maneira científica, mas
também a partir de sua trajetória pessoal e do seu ativismo político
antirracista. Nesse sentido, Nascimento era propositiva ao defender o
reconhecimento e a titulação das terras quilombolas, o que viria a acontecer a
partir de 1995:
Que os movimentos negros apurem onde existem terras ocupadas por comunidades negras, e providenciem por meios legais a aplicação do usucapião evitando os problemas de usurpação das terras. Luta pela defesa dos posseiros, na sua maioria negros e mestiços, com a aplicação das leis desprezadas pelo próprio Estado (1983, apud RATTS, 2007, p. 54).
Embora
seja seguramente uma das maiores estudiosas do país a respeito do tema, Beatriz
Nascimento é mais conhecida pelo documentário Ôrí, palavra em yorubá com o significado
de “cabeça”, que para os candomblecistas relaciona-se à mente, à inteligência,
à alma. Lançado em 1989 e dirigido pela cineasta Raquel Gerber, a partir dos
textos e da narração de Nascimento, Ôrí recupera os percursos dos movimentos
negros que emergiram no Brasil entre 1977 e 1988, entrelaçados pela diáspora
africana, tendo os quilombos como fio condutor. Sobre o filme, a historiadora
pontuou:
O processo de Ôrí é uma recriação de identidade nacional através do Movimento Negro da década de 1970. Nós, na década de 70, éramos mudos. E os outros eram surdos. A partir de 70, começa a falar sociologicamente. E esta lógica estava embutida no processo da própria História do Brasil (1989, apud RATTS, 2007, p. 64).
Ao
tomar a palavra, conforme apontado no excerto acima, Beatriz Nascimento exerceu
papel fundamental nas reflexões e ações referentes à denúncia e ao combate ao
racismo “virulento” e, ao mesmo tempo, “tolerante” de uma sociedade entorpecida
pelo mito da democracia racial, que impunha aos sujeitos negros condições
desfavoráveis de vida e maiores dificuldades de acesso aos bens públicos. A
partir disso, Nascimento definia a existência negra como uma história marcada
por “quase quinhentos anos de resistência à dor, ao sofrimento físico e moral,
à sensação de não existir” (1976, apud RATTS, 2007, p. 39).
O
pensamento de Beatriz Nascimento também foi fundamental para o entendimento das
práticas discriminatórias que pesavam sobre os corpos das mulheres negras,
sendo um dos expoentes do que hoje é conhecido como feminismo negro. Nos anos
1980, chamou atenção para a condição de subalternidade a que a maioria das
afro-brasileiras estavam imersas no mercado de trabalho. A pensadora nordestina
afirmava que tal fato decorria dos resquícios da escravidão e das barreiras
construídas pela sociedade brasileira para assegurar a ausência de mobilidade
social por parte desse grupo. Nos dizeres da ativista do Movimento Negro, “se a
mulher negra hoje permanece ocupando empregos similares aos que ocupava na
sociedade colonial, é tanto devido ao fato de ser uma mulher da raça negra,
como por terem sido escravos seus antepassados” (1976, apud RATTS, 2007, p.
104).
Tal
fato ainda não foi explorado por pesquisadores: Beatriz Nascimento também
dissertou sobre os impactos do racismo na educação. Seus apontamentos partem da
experiência enquanto estudante negra, como também de estudos e observações de
campo. A teórica sergipana pontuou sobre a violência contra os corpos negros
nos espaços escolares e a solidão das crianças nas instituições de ensino. A
esse respeito, ela escreveu:
Acho que muita criança negra tem esse mesmo problema [da solidão] e é por isso que não estuda, muitas vezes não passa de ano, tem dificuldade na escola por causa de um certo tipo de isolamento que não é facilmente perceptível. É aquela mecânica da educação que não tem nada a ver com esses grupos de educação familiar, a mecânica da leitura, onde você não sabe quem é, porque não está nos livros (1982, apud RATTS, 2007, p. 49).
Nesse
trânsito entre História, ativismo e educação, Beatriz Nascimento ainda
percorreu o caminho das letras, tendo se dedicado também à escrita de poemas.
No âmbito acadêmico, sua última parada foi na faculdade de Comunicação Social
da (UFRJ), onde deu início ao curso de mestrado, sob a orientação do
comunicólogo Muniz Sodré. A dissertação não pôde ser defendida, pois ela teve
sua vida ceifada pelo companheiro de uma amiga, que em 28 de janeiro de 1995
disparou cinco tiros à queima-roupa contra Beatriz.
Passados
25 anos da morte de Beatriz Nascimento, em grande medida, sua produção tem sido
lembrada em congressos e seminários justamente por pesquisadores e
pesquisadoras afro-brasileiros. Por outro lado, Beatriz Nascimento ainda é uma
voz silenciada em planos de ensino de cursos de graduação e pós-graduação em
História, o que nos leva a afirmar que a autora tem sido alvo de contínuos
processos de apagamento e invisibilidade, algo recorrente nos percursos das
intelectuais negras.
No
momento em que as grandes editoras e veículos da mídia hegemônica têm voltado a
atenção para as pensadoras afrodescendentes, espera-se que, em breve, Maria
Beatriz do Nascimento esteja nesses espaços, pois em razão de seu legado e de
sua trajetória, é nesses lugares que ela deve e merece estar.
A
filósofa e ativista negra Angela Davis refere-se a Lélia Gonzalez e a Beatriz
Nascimento como "fundadoras" ao declarar que "o feminismo negro
nasce no Brasil". E acrescenta:
Dentro de um ecossistema feminista internacionalista, precisamos enfatizar que nós, que moramos no norte global, temos muito o que aprender com os movimentos gerados no sul, especialmente com as tradições do feminismo negro no Brasil.
E
destacou o peso dado às tradições religiosas afro-brasileiras:
O feminismo negro nasce no Brasil. O Brasil é um país no qual, no contexto do candomblé, a liderança de mulheres negras mais velhas é levada a sério, é respeitada.*
*
apud André Santana, disponível em : https://noticias.uol.com.br/colunas/andre-santana/2023/07/15/na-bahia-o-abolicionismo-de-angela-davis-conhece-a-prisao-injusta-de-oxala.htm
PUBLICAÇÕES
Livros
Todas
[as] distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento. Organização
de RATTS, Alex Ratts e Bethânia Gomes. Salvador: Editora Ogum’s Toques Negros,
2015.
Beatriz
Nascimento - quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição.
São Paulo: União dos Coletivos Pan-africanistas, 2018.
Uma
história feita por mãos negras. Organização de Alex Ratts. Rio de Janeiro: Ed.
Zahar, 2021.
Artigos
O
movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo. In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional Nº 25, p. 261- 267, Rio de Janeiro,1997.
Texto
e Narração de Ori. In: GERBER, Raquel (Dir.) Ori. São Paulo, Angra Filmes. 90
min, 1989.
LOPES,
Helena Theodoro; SIQUEIRA, José Jorge & NASCIMENTO, Maria Beatriz. Negro e
cultura no Brasil: pequena enciclopédia da cultura brasileira. Rio de Janeiro,
UNIBRADE/UNESCO, 140p, 1987.
O
conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: Afrodiáspora, n. 6-7,
p. 41-49, 1985
Kilombo
e memória comunitária – um estudo de caso. In: Estudos Afro-Asiáticos 6-7, p.
259-265, Rio de janeiro, 1982.
Sistemas
sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas.
Relatório narrativo final (mimeo), 1981.
O
Quilombo do Jabaquara. In: Revista de Cultura Vozes 3, p. 176-178, 1979.
Nossa
democracia racial. In: Revista IstoÉ. 23/11/1977, p. 48-49, 1977.
Culturalismo
e contracultura. In: Cadernos de Formação sobre a Contribuição do Negro na
Formação Social Brasileira. Niterói, ICHF-UFF, p. 02-06, 1976.
Negro
e racismo. In: Revista de Cultura Vozes. v. 68 n. 7, p. 65-68, 1974.
Por
uma história do homem negro. In: Revista de Cultura Vozes, v. 68, n. 1, p.
41-45, 1974.
FONTES DE CONSULTA
Ôrí.
Direção de Raquel Gerber. Brasil: Estelar Produções Cinematográficas e
Culturais, 1989, vídeo (131 min), colorido. Relançado em 2009, em formato
digital. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aUWlgzqKD7E Acesso: 12
dez. 2020.
PINN,
Maria Lídia de Godoy. Beatriz Nascimento e a invisibilidade negra na
historiografia brasileira: mecanismos de anulação e silenciamentos das práticas
acadêmica intelectual. In: Aedos, v. 11, n. 25, p. 140-156, dez. 2019.
Disponível em: https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/96888 Aceso: 12 dez.
2020.
RATTS,
Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Instituto Kuanza, 2007.
REIS,
Rodrigo Ferreira dos. Ôrí e memória: o pensamento de Beatriz Nascimento.
Sankofa: Revista de História da África e dos Estudos da Diáspora, ano XIII, n.
XXIII, p. 9-24, abril/2020. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/169143/160374>. Acesso: 12 dez. 2020.
____
Publicado originalmente no Lieterafro e replicado no Blog Negro Nicolau.

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!