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| Figura 1: Babalaô Cezar de Oxóssi (desenho do artista Riverton Élis, 2025). |
Por César Pereira, Colunista*
I – A presença e a negação do negro no
Ceará
Repetindo
a luz divina
Com
todo o seu esplendor
Dos
que vêm de Aruanda
Para
tudo iluminar.
Umbanda
é paz e amor
É o
mundo cheio de luz
É
força que nos conduz.
A
bandeira nos conduz
Oxóssi
cheio de fé
É
com seu esplendor
Levamos
ao mundo inteiro
A
bandeira de Oxalá.
(MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
Maria
Aparecida da Silva é uma mulher negra, nasceu no município de Milagres,
localizado no sul do Estado do Ceará em 1959, é filha de uma tecelã de redes,
esta também mulher negra, ambas descendentes dos pretos e pretas que a partir
do século XVIII colonizaram as terras do Cariri, região sul do Estado do Ceará.
Negros
e negras que povoaram o sertão e o litoral cearense, e que com o seu trabalho e
seu capital cultural criaram a afrocearensidade, produziram bens materiais e
imateriais, se fizeram os sujeitos da história, e como observamos acima no
ponto de umbanda cantado por Maria Aparecida da Silva trazem na memória os
estigmas das suas insurgências contra os poderes que se constituíram para
invisibilizar o povo negro e exterminar seus corpos.
Foi
como tecelã, isto é fazendo redes de algodão no tear que a mãe de Maria Aparecida
da Silva conseguiu comprar um pedaço de terra para a família. Desse modo, na
história de vida desta mulher há outra mulher também negra que se movimentou e
permitiu que ela igualmente se
movimentasse e por sua vez mobilizasse seus filhos e filhas contra a
estrutura racista do estado brasileiro.
Nos
conta Maria Aparecida da Silva que seu pai trabalhava como marchante, isto é,
era encarregado de abater os animais no açougue municipal. O casal teve catorze
filhos, vindo o pai de Aparecida a contrair segundas núpcias após ficar viúvo.
Nos informa ela no seu relato que não teve vida fácil, principalmente após a
morte da sua mãe que se deu quando ela tinha apenas cinco anos de idade.
A
família era pobre e morava na periferia da cidade de Milagres, ainda segundo a
narrativa de Maria Aparecida da Silva:
A gente morava na Rua do Bebedouro (hoje José de Alencar), lá tinha um beco que chamava Beco da Bica Velha onde a gente lavava roupa. Aquela rua, eu lembro quando a gente trabalhava na roça, tinha uma casinhas de taipa muito pobre, tinha uns pocinhos d’água, a gente passava os pocinhos, não era muito boa, [a rua]. A roça era longe e a gente passava o dia na roça trabalhando. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
A
fala de Maria Aparecida da Silva nos coloca dentro da história de vida das
inúmeras famílias negras do Brasil na segunda metade do século XX. Pobreza,
marginalização política e econômica, abandono social nas perifeirias das
cidades e nas zonas rurais do país.
Maria
Aparecida da Silva nos informa que estudou pouco e irregularmente, não chegando
a aprender o suficiente para ler e escrever fluentemente. Como precisava
trabalhar muito na roça, frequentava a escola com pouca regularidade e além
disso as escolas da sua época não acolhiam bem pessoas como ela, menina pobre e
negra. Ela nos informa na sua fala que atualmente voltou a estudar no EJA
(Educação de Jovens e Adultos) para aprender aquilo que não conseguiu enquanto
menina.
Como
milhões de mulheres e homens negros do Brasil e milhares de pessoas negras em Milagres,
município do Cariri cearense, Maria Aparecida da Silva e seus outros seis
irmãos, formavam a massa da população negra brasileira que foi sujeitada ao
necropoder.O necropoder é um dispositivo de domínio utilizado pelos estados
racistas para deixar morrer aqueles considerados indesejáveis para o modelo de
sociedade capitalista e neoliberal criado com o objetivo de preservar os
privilégios e o lugar de mando dos brancos.
Segundo
o filósofo Achille Mbembe "o necropoder regula a distribuição da morte e
torna possível as funções assassinas do Estado”, (2025), isto quer dizer que ao
negar às pessoas negras o direito a educação, a moradia, ao trabalho, a
formação política, as suas subjetividades o estado promove a morte tanto
simbólica quanto física dessa população.
Deixados
para morrer na miséria, exterminados pela violência do estado brasileiro,
abandonados ao analfabetismo e forçados a prover economicamente a si e suas
famílias por meio de trabalhos informais sem nenhuma garantia de estabilidade
econômica o homem ou mulher negra brasileira acaba por serem sujeitados à
necropolítica.
Diante
desse processo de dominação que visa ao extermínio dos corpos e apagamento das
subjetividades negras, mulheres como Maria Aparecida da Silva transformam a si
mesmo, suas falas, seu cotidiano e memórias em resistências ao necropoder.
Ao
se declarar como médium e pessoa feita na Umbanda religião de base africana,
Maria Aparecida da Silva afirma sua existência e resiste ao processo histórico
de apagamento de sua ancestriladade que vem sendo perpetrado no Ceará e no
Brasil nos últimos séculos.
Vejamos
agora como a historiografia cearense ao longo do século XX produziu uma longa
narrativa cujo principal objetivo foi negar a existência e a presença de
pessoas negras e a sua cultura material e imaterial no estado.
Historiadores,
artistas e intelectuais cearenses se empenharam e muitos deles ainda se
empenham no presente, em afirmar que a escravidão no Ceará foi branda, que a
mão-de-obra utilizada nas lavouras, na pecuária, no serviço doméstico, nos
trabalhos urbanos foi praticamente insignificante na Província do Ceará.
Insistem
em declarar que o escravizado era tratado como amigo da família, espécie de
agregado dos senhores brancos com quem trocava favores. Além disso, procurando
manter indissolúvel os pactos narcísicos da branquitude cearense esses
intelectuais sugerem que a elite branca do Ceará teria sido sempre avessa a
escravização do negro, tendo sido esse o principal motivo que levou os homens
da terra a se engajarem na luta em favor da emancipação dos escravizados até
consegui-la efetivar em 25 de março de 1884.
Conforme
Girão, 1984, p.63 “Não era pois, o Ceará campo favorável à planta azeviche das
Guinés. Desde cedo, mostrou-se o cearense paladino da luta contra a exploração
do homem pelo homem, como berta de carga”. Com esse argumento Raimundo Girão
inicia o capítulo Os pródromos do seu livro A abolição no Ceará.
A
obra desse historiador é sobretudo um projeto de construção de aplogias da ação
“redentora” dos brancos cearenses que se levantaram contra a mancha da
escravidão que maculava a imagem do Ceará e do Império do Brasil perante as
nações civilizadas do mundo. Em nenhum momento o livro de Raimundo Girão
pretende ou procura reconhecer e tornar visível o protagonismo das pessoas
negras na luta contra a escravidão.
No
capítulo 3 do mesmo livro intitulado O negro no Ceará, Girão utiliza dados
estatísticos, números dos censos e matrículas de escravizados do Ceará no
século XIX, bem como notas e anotações de governantes, padres e viajantes que
passaram pelo Ceará durante o período colonial para sustentar o argumento do
fracassado projeto de escravização do negro no Ceará, e assim comprovar a tese
alimentada pelos intelectuais cearenses em geral e do Instituto do Ceará em
particular de que não há negros, nem tampouco cultura material e imaterial de
base africana no Ceará.
Esta
obra de Raimundo Girão escrita na década de 1950 ignora completamente a
existência de pessoas negras com suas subjetividades, práxis políticas,
trabalho produtivo ou como sujeito histórico no Ceará. É um estudo sobre o negro,
mas sem a presença do negro, escrito na mesma época em que a família de Maria
Aparecida da Silva e outros milhões de pretos e pretas como vimos acima,
resistiam para continuar existindo em nosso estado.
Os
argumentos utilizados pelo historiador Raimundo Girão não eram novos nos meios
intelectuais brancos de nosso estado, o que ele faz no seu livro é vestir a
ideologia de branqueamento do cearense com as roupagens do histicismo
ressentido que ele emula da obra de Gilberto Freyre.
Transferir
a responsabilidade pelos ganhos na luta contra a escravidão no Ceará e em
seguida negar a existência de pessoas negras no estado foi uma das principais
estratégias utilizadas pela branquitude cearense para continuar mantendo seu
lugar de poder por meio dos pactos narcísicos estabelecidos ainda nas últmas
décadas da escravidão.
Retirar
da população negra qualquer responsabilidade política na conquista de direitos
civis, econômicos e sociais para si mesmo no Brasil foi uma das principais
estratégias utilizadas pela elite para manter o povo negro sujeitado e
incapacitado de assimir protagonismo político e social no país.
As
narrativas construídas pela historiografia educaram a população negra a aceitar
passivamente o discurso do paternalismo branco. Os negros foram sendo ensinados
a reconhecer apenas nos brancos seus heróis nas lutas contra a escravidão, nas
lutas por direitos políticos e econômicos. Tais narrativas criaram o branco
bondoso que reconhecia a injustiça contra o negro que via o sofrimento do
negro, e no seu humanismo branco se revoltava e se entregava à luta contra a
expoliação do ser negro.
Esse
método de apagar e invisibilizar o negro foi aplicado com relativa eficácia no
Ceará, a utilidade desse discurso é tão vasta que ao longo de quase um século e
meio a inexistência de negros no estado não foi questionada, precisou que o
movimento negro começasse a se insurgir contra esse dogma lá nas décadas de
1980 e 1990 para que os intelectuais cearenses começassem a questionar sua
validade.
Em
2022 o censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas) registrou a presença de 71,5% de cearenses autodeclarados negros.
Esses dados do último censo do Brasil mostram que a populção do Estado do Ceará
é majoritariamnete afrodescente. No primeiro censo demográfico do Brasil
realizado em 1872 a quantidade de pessoas negras no Ceará foi de 56% entre
pretos e pardos livres e escravizados.
Estes
números demonstram que os argumentos utilizados pelos intelectuais brancos
quando afirmam a inexistência de pessoas negras e elementos culturais materiais
e imateriais no Ceará de base africana não se sustentam, pois com uma presensa
tão massiva de homens e mulheres negras no nosso estado é impossível que não
tenhamos uma história e uma cultura negra no Ceará.
No
Cariri, região do sul cearense, a presença negra também foi negada no discurso
dos historiadores:
Gardner, em 1838, ainda dizia sobre a Vila do Crato, “que toda a populção da vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles descendem. Os habitantes mais respeitáveis são brasileiros, em maioria negociantes; mas como ganham a vida as raças mais pobres é coisa que não entendo”. Aquele viajante europeu não fez referência a escravos negros quando de sua passagem pelo Ceará. Isso pode bem demonstrar que a população de cor não destacava nem etinicamente nem economicamente. (OLIVEIRA, 1979, disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1979/1979-OrigensEscravidaoCeara.pdf).
Pedro
Alberto de Oliveira escreveu isto no seu artigo Origens da escravidão no Ceará,
onde mais uma vez observamos a tentativa de excluir o negro de ter tido
qualquer importância decisiva na história do Ceará.
Ao
conjecturar que a ausência de uma referência feita por George Gardner sobre a
presença negra na Vila do Crato na região do Cariri significava o pouco ou
nenhum legado deste para a formação do povo e da cultura bem como para a
economia da região ou do próprio estado, o historiador está procurando mais uma
vez apagar a presença negra no espaço cearense e principalmente sustentar o
mestiçamento do Ceará.
A
ideologia da mestiçagem é utilizada pela branquitude como um instrumento de
dominação política e econômica no Brasil. Suas origens estão provavelmente nos
fins do século XIX, quando os intelectuais republicanos e liberais
progressistas procuraram criar um mito fundador para o Brasil. Ela se
aprofundou e se estruturou como a conhecemos hoje a partir da década de 1930
com a sociologia e a historiografia de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Júnior, Oliveira Vianna.
Muitos
artistas e toda uma classe de intelectuais abraçaram a ideologia da mestiçagem
estruturada a partir do mito da democracia racial de Gilberto Freyre. Com
efeito, este sociólogo ao longo de sua trajetória intelectual em vários
momentos sustentou que o Brasil gozava de um lugar de privilégio em relação às
outras nações onde havia conflitos raciais:
Numas
dessas ocasiões Freyre diz:
...tudo o que o Brasil precisa é importar algumas das novas instituições liberais europeias. Os realistas, contudo, pensam que o Brasil, estimulado pela Europa liberal e pelos Estados Unidos, deve desenvolver suas próprias instituições democráticas ou estilos. Uma delas deve ser uma democracia racial que nem a Europa nem os Estados Unidos estavam então preparados para aceitar. (FREYRE, 1949).
A
elite branca brasileira utiliza o argumento da democracia racial, a ideologia
do Brasil mestiço sempre que se sente ameaçada e precisa manter suas posições
de mando. Nesses momentos saca esses discursos e passa a veiculá-los na mídia e
na escola, procurando convencer a população negra que não há motivo para lutas
raciais no país, pois não há desigualdade entre brancos e negros, todos sendo
em alguma medida também mestiços, isto é, não havendo no Brasil nem negros
puros, nem tampouco brancos puros.
Com
essa falácia invisibilizam a população negra e suas lutas, enquanto permanecem
racializando o Outro (o negro) e se impõem como os únicos detentores de cultura
e subjetividade, como os únicos capazes de uma práxis política, de uma fazer
estético e de efetivadores de uma produtividade econômica racional. Ao negro
cabe apenas a sujeição e os não-lugares da sociedade brasileira. Não têm
história, não têm memória, não têm ancestralidade, não têm religião e nem mesmo
existência.
II – As resistências
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| Figura 2: Altar de Umbanda (imagem da Internet). |
Começamos esse
ensaio com uma narrativa de Maria Aparecida da Silva. Esta narrativa nos
conduziu a refletir sobre a ação destrutiva da necropolítica e dos pactos
narcísicos da branquitude sobre os corpos e subjetividades negras. No entanto,
mesmo sendo deixado para morrer, o negro jamais se deixou resumir às instâncias
de um ser-para-a-morte.
Percebemos essa resistência negra ao necropoder quando nas suas falas Maria Aparecida da Silva nos conta da sua mãe tecelã que tecendo redes comprou um terreno para os filhos e o marido, percebemos ainda essas resistências quando ela nos fala que aos 65 anos voltou a estudar para aprender aquilo que não pode fazer quando era criança.
Como pessoa negra Maria Aparecida da Silva não permitiu que seu corpo fosse eliminado pelo estado, pois criou para si e para o povo negro, (filhos de sangue e filhos de terreiro) uma estratégia de autodefesa.No ponto de Umbanda que trancrevemos na abertura do artigo podemos observar como ela faz uso desses instrumentos de resistência contra a práxis necropolítica.
As religiões de base africana se constituíram ao longo da história dos pretos e pretas do Brasil como um lugar de resistência, pois ao se encontrarem nos terreiros para fazerem suas devoções aos caboclos e orixás esses homens e mulheres criam entre si uma rede de empatia e estratégias que lhes permite se manterem vivos enquanto enfrentam o necropoder cujo principal objetivo é eliminá-los enquanto corpos e sujeitos.
Sabemos
que as religiões de base africana sofreram e ainda sofrem perseguições e
ataques racistas no Brasil. Foram proibidas durante boa parte de nossa
história, pois o Cristianismo procurou se impor como a única religião em nosso
país. Assim, o monoteísmo cristão foi se estabelecendo como verdade absoluta e
incontestável, sendo os praticantes de outras religões não monoteístas
perseguidos de forma ostensiva.
Religiões
como Umbanda, Jurema Sagrada, Catimbó, Candomblé, Quimbanda e outras de bases
africanas, ou afro-indígenas não são aceitas pelos grupos da religião
predomintante no Brasil, este grupo desfere ataques vilipendiosos contra os
povos de terreiro, demonizando os caboclos, os santos e os orixás, destruíndo e
invadindo locais de culto, desferem igualmente ataques contra os hábitos e as
vestimentas do povo de terreiro, as autoridades públicas geralmente se omitem
ou se recusam a atuar contra a intolerância e o racismo religioso.
Em
2022 o censo demográfico do IBGE divilgou que 1% da população brasileira se
autodeclarou praticante das religiões de matriz africana, isto significa,
segundo os mesmos dados que em torno de 1,8 milhões de brasileiros pertencem a
algum terreiro. Os resultados obtidos mostram que entre 2010, data do último censo
houve um crescimento sigficativo no número de praticantes dessas religiões no
país, indo de 0,3% na última década para 1% na atualidade.
Todavia
esse crescimento não significou que houve mudanças na forma como o grupo
religioso predominante no Brasil (o Cristianismo) trata os povos de terreiro.
Cresceram nos últimos dez anos as violências físicas e psíquicas contra os
praticantes de religiões de base africana. Enquanto o fervor cristão aumenta
pelo país afora as pessoas que não se alinham às práticas religiosas
monoteístas dessa vertente religiosa são perseguidas e violentadas, e essa
violência se torna mais ostensiva e impune nas cidades pequenas onde há pouca
ou nenhuma vontade dos poderes públicos em punir ou combater o racismo
religioso.
Em
Milagres, município caririense cuja população autodeclarada negra é de 73,9%, a
cidade onde nasceu e onde vive Maria Aparecida da Silva o censo de 2022 informa
que há apenas 0,6% de pessoas praticantes das religiões de base africana
Umbanda e Candomblé, enquanto 97,21% se autodeclara cristãos, isto é, católicos
e evangélicos. Por meio dos dados coletados e pela fala do povo de terreiro de
Milagres pudemos perceber que ser praticante de uma religião de base africana
em Milagres não é coisa fácil.
Em
2023 entrevistamos o estudante Felipe M., 17 anos, praticante da religião
Umbanda, em sua fala o adolescente relata o seguinte:
Faz dois meses, na noite de gira, a gira já tinha tinha começado, estava terminando, veio um homem, armado, tinha um revólver e mandou que todo mundo do terreiro parasse com aquela macumba. Falou da calçada e nós dentro de casa ouvindo ele falar. Ameaçou, disse eu vou passar fogo nos feticeiro e macumbeiro aí dentro. Chamamos a polícia, sabe que horas a polícia chegou? Era mais de meia-noite e todo mundo com medo. Quando a polícia chegou ele já não estava mais na porta e aí nós saímos de dentro da casa. (FELIPE M., 2023)
Esse
tipo de perseguição e repressão às religiões de base africana não é incomum no
Brasil. Refletimos na primeira parte deste trabalho como a existência do negro
e de sua cultura material e imaterial foi negada no Ceará. Observamos como os
intelectuais cearenses construíram toda uma prática discursiva para
invisibilizar e apagar a presença e até mesmo a existência do povo negro cearense.
Uma das práticas da cultura negra que foi negada sua existência no Ceará foi a
das religiões de matriz africana.
O
racismo religioso no Ceará estigmatizou e estigmatiza os praticantes das
religiões de base africana. O professor Reginaldo Ferreira Domingos se dedicou
durante o seu doutorado a pesquisar a existências dessas religiões e as
perseguições que seus praticantes sofrem na região do Cariri cearense.
Ele
afirma que há na região desde longa data perseguições sistemáticas às pessoas
que não seguem o Cristianismo. Esta intolerância tem raízes profundas tanto na
história do Ceará, quanto na própria história caririense. Ao Povo dos Santos
cabe a função de permanecer escondido ou praticando sua religião de forma
discreta ou as escondidas, violentando a si mesmo para não sofrer racismo
religioso.
Reginaldo
Ferreira Domingos traz no seu artigo Narrativas necessárias: no Cariri cearense
tem população e religiosidade negra e racismo religioso, sim senhor, toda uma
genealogia da presença das religiões de base africana na região sul cearense e
apresenta casos de pessoas que sofreram perseguição religiosa por parte da
polícia e da população das cidades caririenses.
Um
desses casos é do Mestre Elias, sacerdote de religião de matriz africana que
nos anos de 1980 foi preso e humilhado publicamente nas ruas de Juazeiro do
Norte. Segundo os relatos o Mestre Elias foi preso e conduzido a delegacia onde
o torturaram fisicamente, depois a polícia saiu com ele pelas ruas São Pedro,
Padre Cícero, até a Praça Almirante Alexandrino, sempre castigando-o com
lapadas e a população lançando lixo sobre o sacerdote.
O
pesquisador Djailson Ricardo Malheiros no seu livro Geotecnopsicosfera da
Territorialidade Sagrada do Cariri Cearense Narrativas do Fenômeno Místico das
Benzas nos conta que uma das estratégias do povo negro de terreiro para não
sofrer perseguições nem tampouco racismo religioso em seus núcleos familiares
ou cidades pequenas do Cariri é de tempos em tempos viajar até Crato ou
Juazeiro do Norte para fazer suas obrigações religiosas sigilosamente.
Em algumas cidades da região, principalmente as menores, quando alguém pretende frequentar os terreiros precisam se deslocar para os lugares que tem maior expressividade e aceitação – citamos aqui as cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha. Porém, parte dessas pessoas ao retornar às suas cidades de origem negam a participação em religiões de matriz afro, chegando a frequentar as celebrações católicas, como exemplo do mecanismo de negação. (MALHEIROS, p. 47, 2022)
O
que podemos perceber através dessas reflexões que estamos fazendo é que as
formas de extermínio da pessoa negra são múltiplas e sofisticadas no Brasil. Há
a narrativa historiográfica que elimina o sujeito histórico negro, há a
necropolítica que abandona o negro para morrer, os pactos narcísicos da
branquitude que racializam o negro forja mitos de democracia racial e
micigenação e há também o racismo religioso que desfere ataques às
subjetividades e ao universo simbólico do povo preto.
É
contra todo esse aparato racista que Maria Aparecida da Silva se insurgirá em
Milagres. Sua ação política se impôs no passado e se impõem no presente contra
esse jogo de poder que age de forma discricionária contra sua existência negra,
dos seus filhos de sangue e seus filhos de santo, como também contra a
existância das pessoas negras deste município.
III - Pai Cezar de Oxóssi e o Espiritismo de Umbanda em Milagres
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| Figura 3: Homenagem ao baba Pai Cezar de Oxossi na bibliotaca da EEMTI Dona Antônia Lindalva de Morais. (Imagem do autor). |
O
baba Cezar de Oxossi, também conhecido na cidade de Milagres pela alcunha de
Poncho, um homem negro iniciado na religião de base africana pelos mestres de
Umbanda de Fortaleza, especialmente Dona Júlia Barbosa Condante (Mãe Júlia) de
quem herdou a Linha de Oxóssi, isto é de São Jorge Guerreiro, foi um líder
espiritual e um negro resistente neste município do sertão do Cariri cearense
por meio século, isto é, desde a década de 1960, quando ainda militava na
cladestinidade como sacerdote de terreiro até o ano de 2012 quando veio a óbito
em plena suas atividades religiosas.
Vamos
acompanhar a história do baba Cezar de Oxóssi através da fala de Maria
Aparecida da Silva sua filha de terreiro, companheira e também ela própria
sacerdotisa e sua sucessora nas obrigações com os santos e caboclos do
terreiro.
Relata-nos
Maria Aparecida da Silva que conheceu José Cezar da Silva na casa dos seus
pais, sendo eles ainda parentes em terceiros grau. Ela era adolescente e
observava aquele negro que conduzia o andor de Nossa Senhora pela Rua do Velame
(hoje Avenida Santana), ela, as irmãs e outras pessoas o acompanhavam na missão
de peregrinar pelas ruas de Milagres com a imagem da santa.
Diz
ela:
Cezar andava com uma santa, andava com Nossa Senhora de Fátima num andor, nós acompanhava ele, só que ele, nós tudo moçota, tinha uma irmã minha que namorava com ele, aí pronto como nós andava com ele depois de um tempo, eu ajudava meu pai no açougue, aí eu ia ajudar ele, meu pai. Aí quando foi pra eu casar com Cezar, eu tinha 16 anos. Eu ia pro açougue, quando eu ia pra rua ele vinha, eu ia e ele vinha, eu pensei, esse homem aí tá querendo alguma coisa comigo, ele passava e conversava, e quando deu fé nós fumo pra uma renovção, aí lá na renovação eu tava com um lenço e ele tava com um colar, então ele joga o colar pra mim e eu dou o lenço pra ele e por aí começou. (...) Eu fiquei louca, louca por Cezar e aí quando foi com seis meses nós casamos. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
O casamento foi celebrado na igreja
católica em 1975, já nessa ocasião Pai Cezar de Oxóssi mantinha um terreiro,
pois sua mediunidade se manifestara quando ele tinha apenas treze anos de
idade. Maria Aparecida da Silva nos relata que também suspeitava da sua própria
mediunidade, mas somente quando estreitou laços com o babalorixá conseguiu
compreender o que se passava com ela:
...aí nós vinha pra casa dele toda noite, aí nós descobrimos que ele tinha um terreiro, meu irmão vinha pra casa dele, só que eu vinha, eu já era média (médium), eu já tinha desenvolvido, ele não sabia que eu era média (sic), aí pronto nós casamos e continuamos trabalhando. Ele baixou os espíritos com 13 anos, ele recebeu os espíritos Rei Sebastião e Rei Salomão. A mãe dele pensou que ele bebia, mas ele não bebia ele tava era curando o povo, fazendo o bem pras pessoas, eu sei que ele era um médio (sic) de nascença, muito bom, não era dessas pessoas de sair publicando, era bom, era muito combinado comigo. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
O terreiro é um lugar, um espaço de
vivência do sagrado, é aí que a relação com o divino, que a proximidade com a
trancendência se faz mais intensa. Também é um lugar de cura e encontros. No
terreiro o povo negro reencontra sua ancestralidade e através dela se conecta
novamente com o mundo que o colonialismo procurou destruir.
Como lugar de cura o terreiro
desempenhou importante papel social e de saúde pública no decorrer da história
do Brasil. Como vimos o estado brasileiro fundamentado em bases racistas e
abandona a população negra para morrer. Esta práxis necropolítica do estado se
intensificou após a abolição da escravidão, estamos afirmando que a república
brasileira com seu objetivo explícito de branqueamento do país e posteriormente
com a adoção da ideologia da micigenação e da democracia racial desenvolveu
toda uma sofisticada tecnologia de morte contra a população negra brasileira.
Essa tecnologia necropolítica atuou
diretamente produzindo o descaso com relação a saúde da população preta. Deixar
o povo negro morrer era na opinião das lideranças políticas e dos intelectuais
a serviço dos institutos de saúde a melhor forma de civilizar o Brasil.
Conforme Araújo e Ribeiro, 2025:
No início do século XX, a eugenia era uma ferramenta de controle populacional para a garantia da seleção social, representando a superioridade racial e o orgulho da identidade nacional, promovendo intervenções na vida social, no corpo e na reprodução humana, como a segregação racial, a eutanásia e o racismo genético, com o apoio de médicos, intelectuais, autoridades públicas, entre outros. A eugenia no Brasil foi incorporada em diferentes projetos científicos e políticos de seleção social e reforma nacional, num processo que culminou em sua institucionalização, com medidas como a criação de barreiras legais que impediam imigrantes indesejáveis (negros, asiáticos, árabes) ou a esterilização em massa das mulheres negras e de pessoas com transtornos mentais. Estes dois últimos pontos não foram definidos por leis, mas se estabeleceram no cotidiano das discussões e das práticas dos eugenistas. (dispobível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/4DxhHhSCnQPymsh3VXzSHbF/?format=html&lang=pt).
Diante
dessa política de morte contra o povo negro os terreiros se tornarão
importantes lugares de cura e promoção da saúde física e mental dos pretos e
pretas, mas não somente desses, também pessoas não racializadas, mas deixadas
na miséria farão uso desses espaços de cura para si e seus filhos.
Nesse
contexto o pai de santo e a mãe de santo serão elevados a posição de agentes
promotores da saúde da população em geral e do povo negro em particular, uma
vez que este grupo racializado é quem mais sofre a violência dentro do sistema
de saúde, principalmente a violência promovida pelo racismo institucional.
Assim,
quando Maria Aparecida da Silva nos relata que o baba Cezar de Oxóssi “tava era
curando o povo, fazendo o bem pras pessoas” ela quer dizer que ele atuava
diretamente na promoção da saúde da população negra de Milagres e do Cariri,
pois eram estas pessoas que não possuíam assistência médica nem tampouco
serviço de saúde a sua disposição.
O
Terreiro de Poncho (isto é, o gongá de Pai de Cezar de Oxóssi), é descrito
pelos seus frequentadores (filhos do terreiro, ou pessoas em busca de curas e
orações), como um espaço privilegiado em Milagres onde era possível encontar
refrigério para as dores do corpo e da alma. O babalorixá transformou sua casa,
o quintal e o entorno de seu terreiro num centro de cura e tratamento de males.
Maria
Aparecida da Silva nos relata alguns episódios de curas realizadas por
intermédio de Pai Cezar de Oxóssi:
Vinha gente de fora quando era pra curar, veio da Bahia, veio de São de Paulo, vinha de todo lugar, chegou uma vez meia-noite, da Bahia, pelada que nem uma criança, aí foi que enrolaram ela num lençol e levaram, aí a mulher ficou boazinha, ela ficou boazinha que não queria nem ir embora, queria ficar com nós. (...) veio da Bahia, chegou num carro, de madrugada, nós tinha botado o tambor lá no quintal, antes dela chegar enrolaram ela num lençol, ela vinha se rasgando, era uma mulher alta, bem forte, aí quando chegaram ele [Pai Cezar de Oxóssi] mandou ela descer:
— Mande descer ela — ele disse.
— Deus me livre — o povo disse.
— Desça!
Aí ele ficou assim em pé, quando eles desceram que ela viu ele assim em pé ela caiu, caiu que ficou assim de joelhos, aí foi quando ela arriou, e arriou ele começou a tratar dela, ficou uma semana mais nós. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
Outra
cura é relatada assim:
Ele era aqui de Milagres, mas tinha ido para a Casa Branca de Recife, lá trabalha com essas coisas, lá é um centro, levaram ele lá e não atenderam porque era semana santa. Então ia deixar o homem louco? Aí disseram ‘eu conheço uma pessoa que reza, Cezar, chamavam de Poncho. Trouxeram, a gente tinha um congá (sic), nosso congá era ali onde eu moro, funcionava direto, era um congá aberto. Ele vestiu uma capa bonita, vermelha, [Cezar], ele tinha tudo de santo. Trouxeram ele num carro, [o homem], aí quando o homem entrou ele caiu. Ficou bom e você conhece ele hoje.
[...]
E tem mais, trouxeram da Vila Padre Cícero, dois. Doido, doido, doido. Eles chegaram amarrados, aí ele curou e ficou sendo o médio (sic) deles, eles ficaram amigos, chamavam a gente direto pra almoçar lá. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
Percebemos através dos relatos de
Maria Aparecida da Silva a importância do Centro Espírita de Umbanda São Jorge
Guerreiro liderado por Pai Cezar de Oxóssi no acolhimento das pessoas que
estavam completamente desassistidas pelas autoridades de saúde pública tanto em
Milagres quanto no Cariri e até mesmo em outros estados.
O
sacerdócio de José Cezar da Silva era exercido intrinsecamente ligado às
práticas curativas, isto é, diante da carência da população sem assistência
contra as enfermidades físicas e psicológicas, o babalorixá assumiu papéis
sociais distintos, fazendo-se médico, conselheiro, rezador, benzedor, e assim
transformando o seu terreiro em território de cura.
Sem a devida atenção nos equipamentos de saúde
pública as pessoas negras vítimas do racismo institucional e as pessoas pobres
lançadas na miséria pela má distribuição de renda no país buscam terapias de
curas nos cultos religiosos dos terreiros de Umbanda e Candomblé, pois estes
lugares sempre ofereceram acolhimento e a escuta atenciosa dos doentes deixados
para morrer pelo estado brasileiro.
Pessoas
cujos corpos não são vistos, nem tampouco encontram tratamento para suas
doenças nos sistemas de saúde convencionais chegam aos terreiros a procura de
atenção e auxílio, pois seus males físicos, morais e espirituais são
simplesmente negados ou nem sequer percebidos pela sociedade racista.
O
terreiro de Pai Cezar de Oxóssi desempenhou papel de imensa relevância na
cidade de Milagres ao longo da segunda metade do século XX, pois garantiu às
pessoas que o procuravam, sendo adeptas ou não da Umbanda acolhimento e
tratamento. Muitas vidas foram salvas pelo babalorixá, no seu território de
cura, o Terreiro de Poncho desempenhou papel político e social sem precedentes
no município, salvou vidas e se impôs como lugar de resistência contra as
tecnologias de morte do estado brasileiro racista.
Além
de território de cura o terreiro é também o lugar de encontro, nesse espaço o
povo negro se reconecta com a sua ancestralidade, aciona as suas raízes
culturais de base africana, aquelas matrizes que foram sendo dispersadas pelo
mundo através da diáspora africana. Dentro dos terreiros observamos emergir os
elementos culturais africanos que no cotidiano das relações sociais do Brasil
não estão suficientemente claros.
A
linguagem dos terreiros é bem própria desse espaço, no seu interior escutamos
palavras e frases pronunciadas nas línguas africanas, pontos e invocações que
repetem falas e vozes afrodiaspóricas. Há também a forma de organização do
lugar, a localização dos objetos, a ornamentação da sala, do quarto, a
preparação do alimento. Tudo difere das nossas práticas cotidianas.
Os
gestos também são singulares, há toda uma construção de significados para cada
gesto de mãos e pés. O movimento do corpo durante as giras e transes obdece a
uma simbologia própria. O fogo e a água ganham novos significados, a música e
as bebidas são ressignificadas, os terreiros produzem uma semântica própria, e
é por meio desta semântica que não segue a lógica imposta pelo colonizador que
eles se tornam espaços de resistências e subjetivação do povo negro.
Como
lugar de resistência e enfrentamento contra o extermínio dos corpos e sujeição
dos pretos e pretas os terreiros são territórios libertários, isto explica o
porquê da perseguição empreendida pelos poderes constituídos contra estes
espaços. Os repetidos ataques e depredações desses lugares é uma das
estratégias repressoras do racismo contra a negritude e suas lutas libertárias.
Sabendo
que dentro de um terreiro homens e mulheres negros encontram acolhimento e
assim ressignificam suas próprias existências o necropoder reage criando
tecnologias de repressão aos territórios libertários dos pretos. Impor seu modo
de pensar, agir e sentir foi uma das técnicas de sujeição utilizada pelos
brancos para escravizar e marginalizar o povo negro ao longo da história.
Foi
como território libertário que o Centro Espírita de Umbanda São Jorge Guerreiro
se afirmou em Milagres durante décadas, sob a liderança sacerdotal de Pai Cezar
de Oxóssi, o terreiro se tornou uma tecnologia visível de resistância ao
racismo e principalmnete ao racismo religioso.
Acompanhando
as narrativas de Maria Aparecida da Silva, (esta liderança negra de Milagres me
fascina), pois com o seu esposo José Cezar da Silva garantiram o funcionamento
de um terreiro de Umbanda aberto, quer dizer, um território de resistência
antirracista que se impunha contra uma cidade cuja minoria branca marginalizava
e ainda marginaliza a maioria negra.
Maioria
negra esta que foi drasticamente segregada na periferia da cidade de Milagres
aonde foi dexada para morrer sem escolas, saneamento básico, coleta de lixo,
assistência médica, emprego e renda, cultura e lazer. Estigmatizado e segregado
o povo negro de Milagres foi empurrado para os bairros Francisca do Socorro,
Habitat, Viver Bem, Padre Cícero, onde impera o abandono e a carência de
políticas que lhes garanta uma vida tranquila e saudável.
Há
ainda aqueles que moram na zona rural do município, nesses locais distantes da
sede municipal pretos e pretas vivem em condições de vida precária. Geralmente
são moradores de favor (GUIMARÃES, 2019), ou trabalhadores e trabalhadoras
rurais donos de pequenos lotes de terra improdutivos, pois não têm nenhuma
assistência governamental para torná-los produtivos.
Nessas
localidades rurais o acesso aos serviços públicos é bastante limitada, isto é,
as escolas que existem nas proximidades são de qualidade duvidosa, os
atendimentos de saúde chegam de forma e insuficiente e irregular. A renda
dessas famílias é baixa, sobrevivendo com menos de um salário mínimo por mês.
A
história de Milagres é a história da violência contra a população negra e
contra o povo indígena. Os pretos e pretas foram escravizados no município até
18 de dezembro de 1886, os indígenas tiveram suas terras invadidas e seu
extermínio decretado em 28 de abril de 1867. Ao longo do século XX as pessoas
indígenas do município se esconderam e deixaram de assumir sua própria
existência para sobreviver numa cidade que os violenta em seus símbolos
oficiais, bandeira e hino.
A
populção negra que sempre foi maioria em Milagres resistiu ao seu extermínio e
apagamento utilizando múltiplas estratégias de lutas: os Pretinhos de Congos,
os Penitentes da Cruz das Almas, a Banda Cabaçal, os Terreiros de Umbanda e
Candomblé, os Rezadores e Rezadeiras, Benzedeiras, Parteiras, a Contação de
Histórias, a Poesia de Cordel, a Pega do Boi no Mato, as Cantorias, o
artesanato em barro, tecido, madeira, pedra, suas devoções religiosas.
Essas
resistências acima permitiram sua sobrevivência, pois ao criarem a arte e o
simbólico impediam que os brancos os dessubjetivasse para assim realizar a
sujeição plena do negro aos dispositivos de racialidade.
Para
sobreviverem materialmente os pretos e pretas de Milagres trabalharam nos
engenhos de rapadura, nas casas de farinha, nas feiras livres, usavam a terra
para cultivar algodão, cana-de-açúcar, mandioca, milho, feijão. Trabalharam
como tecelãs, costureiras e lavadeiras, venderam ainda que informalmente sua
força de trabalho para garantir o sustento seus e de suas famílias e assim
manter seus corpos vivos perpetuando suas resistências.
Nossa
entrevistada conta que o terreiro de Pai Cezar de Oxóssi se garantia contra as
perseguições religiosas busacando a proteção dos alvarás de funcionamento e se
associando as federações de Umbanda do Ceará. Nos conta também que o baba Cezar
de Oxóssi não se intimidava com a possibilidade de sofrer racismo religioso ao
expor-se publicamente como pai de santo e ao convocar seus filhos de terreiro a
participarem de eventos públicos que celebravam os santos e caboclos do seu
gongá.
Maria
Aparecida da Silva relata que uma das festas mais bonitas do terreiro era a
procissão de São Jorge Guerreiro que percorria as principais ruas de Milagres:
No dia 23 de abril nós fazia a procissão de São Jorge, nós fazia o andor dele e andava nas ruas, nas ruas de Milagres. Todos os santos, nós fazia a procissão deles, todo mundo, era tambor em cima de carro, todo mundo de farda, era mais ou menos uma vinte médio (sic). Botava o São Jorge em cima do andor e andava com São Jorge Guerreiro, atrás vinha os médio. Tinha um carro com os santo, tinha um carro com os tambor e outro carro com os médios (sic) cantando. Cantava os pontos de São Jorge Guerreiro, o ponto de Iemanjá, o hino da Umbanda, tinha o hino da Umbanda. Muito lindo. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
Desafiando
o racismo religioso e a estigmatização do povo de terreiro como adoradores de
demônios Pai Cezar de Oxóssi e sua companheira Maria Aparecida da Silva
ocupavam o território negro das ruas da sede municipal de Milagres
etransformavam elas em espaço de resistência antirracista. Ao exporem diante da
população branca e cristã seus santos, caboclos e orixás afirmavam publicamente
suas existências, a permanência de seus corpos, identidades, ancestralidades e
principalmente de suas subjetividades.
Desfilar
em carro aberto pelos espaços semânticos da branquitude de Milagres com as
entidades do terreiro era uma demonstração da agência do povo negro do
município, uma ação política que constrangia os brancos a não esquecerem que o
município de Milagres era território negro, uma espacialidade que abrigava uma
maioria de pessoas negras.
A
presença do povo dos santos na procissão vestindo suas indumentárias religiosas
conforme o relato acima, mostra o quanto Pai Cezar de Oxóssi se preocupava com
a formalidade do rito para assim evitar violências racistas e riscos
desnecessários ao seus filhos e filhas de terreiro. Apropriando-se das práticas
culturais dos dominantes ele impunha a presença negra física e simbólica nas
ruas do centro de Milagres.
A
narradora nos diz que além das vestes e dos santos eles levavam na procissão os
instrumentos do terreiro e seguiam o cortejo cantando os hinos e pontos da
Umbanda. Um desses hinos já transcrevemos na abertura deste trabalho, trata-se
de um canto em louvor da Umbanda, nele Maria Aparecida da Silva defende a sua
religião, a Umbanda ‘como paz e amor, mundo cheio de luz, badeira que conduz ao
bem’. Neste hino percebemos como ela procura se opor aos argumentos falaciosos
que demonizam as religiões de base africana, o hino que era cantado segundo ela
durante a procissão acima descrita preocupa-se em esclarescer os
preconceituosos e racistas, é uma espécie de pedagogia antirracista cujo
objetivo é ensinar que a Umbanda não é nada daquilo do que dela se diz ou já se
disse ao longo da história.
A
ação política de Pai Cezar de Oxóssi e seus filhos e filhas de santo no Centro
Espírita de Umdanda São Jorge Gurreiro e nas ruas de Milagres faz parte daquilo
que Nilma Lino Gomes chamou de movimento negro educador:
Como muito do que sabemos e do tem sido desvelado sobre o papel da negra e do negro no Brasil, as estratégias de conhecimento desenvolvida pela população negra, os conhecimentos sobre relações raciais e as questões da diáspora africana, que hoje fazem parte das preocupações teóricas das diversas disciplinas das ciências humanas e sociais, só passaram a receber o devido valor epistemológico e político devido à forte atuação do movimento negro. (GOMES, 2016).
Ao
se mobilizar através da espacialidade de Milagres com seus santos e povo de
terreiro o baba Cezar de Oxóssi construiu uma pedagogia sobre o papel do negro
e da negra na sociedade brasileira, isto que dizer que ele e seu povo
mobilizaram saberes e subjetividades que a minoria branca desconhecia, criaram
conhecimentos e provomeram uma ação política afrocentrada que obstaculizou a
efetivação necropolítica, pois enquanto o estado se empenhava em deixar morrer
a população negra Pai Cezar de Oxóssi agia pedagogicamente através de seu
movimento o Espiritismo de Umbanda para
educar.
Educar
a população branca que ignorava a presença negra em Milagres, que desconhecia a
existência das subjetividades negras, educar para que ela viesse a reconhecer o
valor epistemológico do conhecimento político, medicinal, social e cultural
produzido por ele por seu povo negro no terreiro e fora dele.
IV - Considerações que não são finais
Defuma com as ervas da Jurema
Defuma com arruda e guiné
Alecrim, bejoim e alfazema
Vamos defumar filhos de fé
Vamos cruzar nosso terreiro
Vamos cruzar nosso congá
Vamos cruzas as nossas vidas
Com a fé de Oxalá.
(MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)
Pensar
sobre a população negra e suas territorialidades físicas e simbólicas é
refletir sobre suas resistências contra o extermínio de seus corpos e
apagamento de sua história. Acompanhamos ao longo deste trabalho a trajetória
de duas lideranças negras de Milagres, a senhora Maria Aparecida da Silva, mãe
de terreiro que através de suas falas e memórias nos deu a conhecer as
insurgências do negro José Cezar da Silva, pai de terreiro.
Esses
dois sujeitos históricos através sua agência negra promoveram na região Cariri,
sul do estado do Ceará um conjunto de práticas insurgentes cujo objetivo foi e
ainda é o enfretamento contra o racismo sistêmico que fundamenta o estado
brasileiro nas bases da necropolítica.
Ao
afirmarem sua presença social, cultural e política bem como a do seu povo de
terreiro no sertão cearense essas duas lideranças negras desmontaram a falácia
da não existência de negros no Ceará, ensinaram através de suas mobilizações
que a cultura e a história do nosso estado se assentam em bases africanas.
Maria
Aparecida da Silva e José Cezar da Silva, umbandistas e lideranças negras,
promoveram através do seu trabalho e da presença de seus corpos a existência de
outros corpos e subjetividades negras.
Celebrando
a Jurema, no ponto acima a nossa entrevistada volta a celebrar as vidas negras,
a sua fala nos remete mais uma vez ao mundo africano do qual somos originários,
“Vamos cruzar as nossas vidas com a fé de Oxalá”, isto é, precisamos voltar ao
nosso território ancestral, aquele lugar onde os saberes e as vivências negras
eram reconhecidos como formas legítimas de conhecimento e geradores de
integração social, política e econômica.
Acreditamos que o trabalho realizado por
Pai Cezar de Oxóssi e Mãe Cida em Milagres é de fundamental importância para
nos insurgirmos contra as estruturas racistas do estado brasileiro e nos
levantarmos contra todo tipo de sujeição e violência que se abate sobre os
nossos corpos negros como também contra a supressão de nossas subjetividades.
Referências
ARAÚJO
Ivison Luan Ferreira, RIBEIRO Luiz Paulo. A saúde da população negra e as
políticas no século XX: é nas encruzilhadas que encontramos resistências,
emancipações e mortes, disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/4DxhHhSCnQPymsh3VXzSHbF/?format=pdf&lang=pt.
DOMINGOS,
Reginaldo Ferreira. Narrativas necessárias: no Cariri cearense tem população e
religiosidade negra e racismo religioso, sim senhor, Gráfica e Editora IMPRECE,
Fortaleza, 2023.
FREYRE, Gilberto. Brazil, racial amalgamation and
problems, In Opera Mundi, 2010.
GIRÃO,
Raimundo. A abolição no Ceará, Fortaleza, Secretaria de Educação e Desporto,
Fortaleza, 1984.
GOMES,
Nilma Lino. Movimento negro educador, Editora Vozes, Petrópolis, 2017.
MBEMBE,
Achille, Necropolítica, São Paulo, Nº 1 Edições, 2025.
OLIVEIRA,
Pedro Alberto de. As origens da escravidão no Ceará, Revista do Instituto do
Ceará, Fortaleza, 1979.
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| Figura 4: Pai Cezar de Oxossi nas dependências da Escola Antenor Ferreira Lins onde trabalhou como servidor público. (Imagem gentilmente cedida pela família do babalaô). |




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