20 de novembro de 2025

Pai Cezar de Oxóssi: terreiros e encruzilhadas no cotidiano do município de Milagres-ce

Figura 1: Babalaô Cezar de Oxóssi (desenho do artista Riverton Élis, 2025).

 

Por César Pereira, Colunista*

I – A presença e a negação do negro no Ceará

Repetindo a luz divina

Com todo o seu esplendor

Dos que vêm de Aruanda

Para tudo iluminar.

Umbanda é paz e amor

É o mundo cheio de luz

É força que nos conduz.

A bandeira nos conduz

Oxóssi cheio de fé

É com seu esplendor

Levamos ao mundo inteiro

A bandeira de Oxalá.

(MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

Maria Aparecida da Silva é uma mulher negra, nasceu no município de Milagres, localizado no sul do Estado do Ceará em 1959, é filha de uma tecelã de redes, esta também mulher negra, ambas descendentes dos pretos e pretas que a partir do século XVIII colonizaram as terras do Cariri, região sul do Estado do Ceará.

Negros e negras que povoaram o sertão e o litoral cearense, e que com o seu trabalho e seu capital cultural criaram a afrocearensidade, produziram bens materiais e imateriais, se fizeram os sujeitos da história, e como observamos acima no ponto de umbanda cantado por Maria Aparecida da Silva trazem na memória os estigmas das suas insurgências contra os poderes que se constituíram para invisibilizar o povo negro e exterminar seus corpos.

Foi como tecelã, isto é fazendo redes de algodão no tear que a mãe de Maria Aparecida da Silva conseguiu comprar um pedaço de terra para a família. Desse modo, na história de vida desta mulher há outra mulher também negra que se movimentou e permitiu que ela igualmente se  movimentasse e por sua vez mobilizasse seus filhos e filhas contra a estrutura racista do estado brasileiro.

Nos conta Maria Aparecida da Silva que seu pai trabalhava como marchante, isto é, era encarregado de abater os animais no açougue municipal. O casal teve catorze filhos, vindo o pai de Aparecida a contrair segundas núpcias após ficar viúvo. Nos informa ela no seu relato que não teve vida fácil, principalmente após a morte da sua mãe que se deu quando ela tinha apenas cinco anos de idade.

A família era pobre e morava na periferia da cidade de Milagres, ainda segundo a narrativa de Maria Aparecida da Silva:

A gente morava na Rua do Bebedouro (hoje José de Alencar), lá tinha um beco que chamava Beco da Bica Velha onde a gente lavava roupa. Aquela rua, eu lembro quando a gente trabalhava na roça, tinha uma casinhas de taipa muito pobre, tinha uns pocinhos d’água, a gente passava os pocinhos, não era muito boa, [a rua]. A roça era longe e a gente passava o dia na roça trabalhando. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

A fala de Maria Aparecida da Silva nos coloca dentro da história de vida das inúmeras famílias negras do Brasil na segunda metade do século XX. Pobreza, marginalização política e econômica, abandono social nas perifeirias das cidades e nas zonas rurais do país.

Maria Aparecida da Silva nos informa que estudou pouco e irregularmente, não chegando a aprender o suficiente para ler e escrever fluentemente. Como precisava trabalhar muito na roça, frequentava a escola com pouca regularidade e além disso as escolas da sua época não acolhiam bem pessoas como ela, menina pobre e negra. Ela nos informa na sua fala que atualmente voltou a estudar no EJA (Educação de Jovens e Adultos) para aprender aquilo que não conseguiu enquanto menina.

Como milhões de mulheres e homens negros do Brasil e milhares de pessoas negras em Milagres, município do Cariri cearense, Maria Aparecida da Silva e seus outros seis irmãos, formavam a massa da população negra brasileira que foi sujeitada ao necropoder.O necropoder é um dispositivo de domínio utilizado pelos estados racistas para deixar morrer aqueles considerados indesejáveis para o modelo de sociedade capitalista e neoliberal criado com o objetivo de preservar os privilégios e o lugar de mando dos brancos.

Segundo o filósofo Achille Mbembe "o necropoder regula a distribuição da morte e torna possível as funções assassinas do Estado”, (2025), isto quer dizer que ao negar às pessoas negras o direito a educação, a moradia, ao trabalho, a formação política, as suas subjetividades o estado promove a morte tanto simbólica quanto física dessa população.

Deixados para morrer na miséria, exterminados pela violência do estado brasileiro, abandonados ao analfabetismo e forçados a prover economicamente a si e suas famílias por meio de trabalhos informais sem nenhuma garantia de estabilidade econômica o homem ou mulher negra brasileira acaba por serem sujeitados à necropolítica.

Diante desse processo de dominação que visa ao extermínio dos corpos e apagamento das subjetividades negras, mulheres como Maria Aparecida da Silva transformam a si mesmo, suas falas, seu cotidiano e memórias em resistências ao necropoder.

Ao se declarar como médium e pessoa feita na Umbanda religião de base africana, Maria Aparecida da Silva afirma sua existência e resiste ao processo histórico de apagamento de sua ancestriladade que vem sendo perpetrado no Ceará e no Brasil nos últimos séculos.

Vejamos agora como a historiografia cearense ao longo do século XX produziu uma longa narrativa cujo principal objetivo foi negar a existência e a presença de pessoas negras e a sua cultura material e imaterial no estado.

Historiadores, artistas e intelectuais cearenses se empenharam e muitos deles ainda se empenham no presente, em afirmar que a escravidão no Ceará foi branda, que a mão-de-obra utilizada nas lavouras, na pecuária, no serviço doméstico, nos trabalhos urbanos foi praticamente insignificante na Província do Ceará.

Insistem em declarar que o escravizado era tratado como amigo da família, espécie de agregado dos senhores brancos com quem trocava favores. Além disso, procurando manter indissolúvel os pactos narcísicos da branquitude cearense esses intelectuais sugerem que a elite branca do Ceará teria sido sempre avessa a escravização do negro, tendo sido esse o principal motivo que levou os homens da terra a se engajarem na luta em favor da emancipação dos escravizados até consegui-la efetivar em 25 de março de 1884.

Conforme Girão, 1984, p.63 “Não era pois, o Ceará campo favorável à planta azeviche das Guinés. Desde cedo, mostrou-se o cearense paladino da luta contra a exploração do homem pelo homem, como berta de carga”. Com esse argumento Raimundo Girão inicia o capítulo Os pródromos do seu livro A abolição no Ceará.

A obra desse historiador é sobretudo um projeto de construção de aplogias da ação “redentora” dos brancos cearenses que se levantaram contra a mancha da escravidão que maculava a imagem do Ceará e do Império do Brasil perante as nações civilizadas do mundo. Em nenhum momento o livro de Raimundo Girão pretende ou procura reconhecer e tornar visível o protagonismo das pessoas negras na luta contra a escravidão.

No capítulo 3 do mesmo livro intitulado O negro no Ceará, Girão utiliza dados estatísticos, números dos censos e matrículas de escravizados do Ceará no século XIX, bem como notas e anotações de governantes, padres e viajantes que passaram pelo Ceará durante o período colonial para sustentar o argumento do fracassado projeto de escravização do negro no Ceará, e assim comprovar a tese alimentada pelos intelectuais cearenses em geral e do Instituto do Ceará em particular de que não há negros, nem tampouco cultura material e imaterial de base africana no Ceará.

Esta obra de Raimundo Girão escrita na década de 1950 ignora completamente a existência de pessoas negras com suas subjetividades, práxis políticas, trabalho produtivo ou como sujeito histórico no Ceará. É um estudo sobre o negro, mas sem a presença do negro, escrito na mesma época em que a família de Maria Aparecida da Silva e outros milhões de pretos e pretas como vimos acima, resistiam para continuar existindo em nosso estado.

Os argumentos utilizados pelo historiador Raimundo Girão não eram novos nos meios intelectuais brancos de nosso estado, o que ele faz no seu livro é vestir a ideologia de branqueamento do cearense com as roupagens do histicismo ressentido que ele emula da obra de Gilberto Freyre.

Transferir a responsabilidade pelos ganhos na luta contra a escravidão no Ceará e em seguida negar a existência de pessoas negras no estado foi uma das principais estratégias utilizadas pela branquitude cearense para continuar mantendo seu lugar de poder por meio dos pactos narcísicos estabelecidos ainda nas últmas décadas da escravidão.

Retirar da população negra qualquer responsabilidade política na conquista de direitos civis, econômicos e sociais para si mesmo no Brasil foi uma das principais estratégias utilizadas pela elite para manter o povo negro sujeitado e incapacitado de assimir protagonismo político e social no país.

As narrativas construídas pela historiografia educaram a população negra a aceitar passivamente o discurso do paternalismo branco. Os negros foram sendo ensinados a reconhecer apenas nos brancos seus heróis nas lutas contra a escravidão, nas lutas por direitos políticos e econômicos. Tais narrativas criaram o branco bondoso que reconhecia a injustiça contra o negro que via o sofrimento do negro, e no seu humanismo branco se revoltava e se entregava à luta contra a expoliação do ser negro.

Esse método de apagar e invisibilizar o negro foi aplicado com relativa eficácia no Ceará, a utilidade desse discurso é tão vasta que ao longo de quase um século e meio a inexistência de negros no estado não foi questionada, precisou que o movimento negro começasse a se insurgir contra esse dogma lá nas décadas de 1980 e 1990 para que os intelectuais cearenses começassem a questionar sua validade.

Em 2022 o censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) registrou a presença de 71,5% de cearenses autodeclarados negros. Esses dados do último censo do Brasil mostram que a populção do Estado do Ceará é majoritariamnete afrodescente. No primeiro censo demográfico do Brasil realizado em 1872 a quantidade de pessoas negras no Ceará foi de 56% entre pretos e pardos livres e escravizados.

Estes números demonstram que os argumentos utilizados pelos intelectuais brancos quando afirmam a inexistência de pessoas negras e elementos culturais materiais e imateriais no Ceará de base africana não se sustentam, pois com uma presensa tão massiva de homens e mulheres negras no nosso estado é impossível que não tenhamos uma história e uma cultura negra no Ceará.

No Cariri, região do sul cearense, a presença negra também foi negada no discurso dos historiadores:

Gardner, em 1838, ainda dizia sobre a Vila do Crato, “que toda a populção da vila chega a dois mil habitantes, na maioria todos índios ou mestiços que deles descendem. Os habitantes mais respeitáveis são brasileiros, em maioria negociantes; mas como ganham a vida as raças mais pobres é coisa que não entendo”. Aquele viajante europeu não fez referência a escravos negros quando de sua passagem pelo Ceará. Isso pode bem demonstrar que a população de cor não destacava nem etinicamente nem economicamente. (OLIVEIRA, 1979, disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1979/1979-OrigensEscravidaoCeara.pdf).

Pedro Alberto de Oliveira escreveu isto no seu artigo Origens da escravidão no Ceará, onde mais uma vez observamos a tentativa de excluir o negro de ter tido qualquer importância decisiva na história do Ceará.

Ao conjecturar que a ausência de uma referência feita por George Gardner sobre a presença negra na Vila do Crato na região do Cariri significava o pouco ou nenhum legado deste para a formação do povo e da cultura bem como para a economia da região ou do próprio estado, o historiador está procurando mais uma vez apagar a presença negra no espaço cearense e principalmente sustentar o mestiçamento do Ceará.

A ideologia da mestiçagem é utilizada pela branquitude como um instrumento de dominação política e econômica no Brasil. Suas origens estão provavelmente nos fins do século XIX, quando os intelectuais republicanos e liberais progressistas procuraram criar um mito fundador para o Brasil. Ela se aprofundou e se estruturou como a conhecemos hoje a partir da década de 1930 com a sociologia e a historiografia de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Oliveira Vianna.

Muitos artistas e toda uma classe de intelectuais abraçaram a ideologia da mestiçagem estruturada a partir do mito da democracia racial de Gilberto Freyre. Com efeito, este sociólogo ao longo de sua trajetória intelectual em vários momentos sustentou que o Brasil gozava de um lugar de privilégio em relação às outras nações onde havia conflitos raciais:

Numas dessas ocasiões Freyre diz:

...tudo o que o Brasil precisa é importar algumas das novas instituições liberais europeias. Os realistas, contudo, pensam que o Brasil, estimulado pela Europa liberal e pelos Estados Unidos, deve desenvolver suas próprias instituições democráticas ou estilos. Uma delas deve ser uma democracia racial que nem a Europa nem os Estados Unidos estavam então preparados para aceitar. (FREYRE, 1949).

A elite branca brasileira utiliza o argumento da democracia racial, a ideologia do Brasil mestiço sempre que se sente ameaçada e precisa manter suas posições de mando. Nesses momentos saca esses discursos e passa a veiculá-los na mídia e na escola, procurando convencer a população negra que não há motivo para lutas raciais no país, pois não há desigualdade entre brancos e negros, todos sendo em alguma medida também mestiços, isto é, não havendo no Brasil nem negros puros, nem tampouco brancos puros.

Com essa falácia invisibilizam a população negra e suas lutas, enquanto permanecem racializando o Outro (o negro) e se impõem como os únicos detentores de cultura e subjetividade, como os únicos capazes de uma práxis política, de uma fazer estético e de efetivadores de uma produtividade econômica racional. Ao negro cabe apenas a sujeição e os não-lugares da sociedade brasileira. Não têm história, não têm memória, não têm ancestralidade, não têm religião e nem mesmo existência.

II – As resistências

Figura 2: Altar de Umbanda (imagem da Internet).

Começamos esse ensaio com uma narrativa de Maria Aparecida da Silva. Esta narrativa nos conduziu a refletir sobre a ação destrutiva da necropolítica e dos pactos narcísicos da branquitude sobre os corpos e subjetividades negras. No entanto, mesmo sendo deixado para morrer, o negro jamais se deixou resumir às instâncias de um ser-para-a-morte.

Percebemos essa resistência negra ao necropoder quando nas suas falas Maria Aparecida da Silva nos conta da sua mãe tecelã que tecendo redes comprou um terreno para os filhos e o marido, percebemos ainda essas resistências quando ela nos fala que aos 65 anos voltou a estudar para aprender aquilo que não pode fazer quando era criança.

Como pessoa negra Maria Aparecida da Silva não permitiu que seu corpo fosse eliminado pelo estado, pois criou para si e para o povo negro, (filhos de sangue e filhos de terreiro) uma estratégia de autodefesa.No ponto de Umbanda que trancrevemos na abertura do artigo podemos observar como ela faz uso desses instrumentos de resistência contra a práxis necropolítica.

As religiões de base africana se constituíram ao longo da história dos pretos e pretas do Brasil como um lugar de resistência, pois ao se encontrarem nos terreiros para fazerem suas devoções aos caboclos e orixás esses homens e mulheres criam entre si uma rede de empatia e estratégias que lhes permite se manterem vivos enquanto enfrentam o necropoder cujo principal objetivo é eliminá-los enquanto corpos e sujeitos.

Sabemos que as religiões de base africana sofreram e ainda sofrem perseguições e ataques racistas no Brasil. Foram proibidas durante boa parte de nossa história, pois o Cristianismo procurou se impor como a única religião em nosso país. Assim, o monoteísmo cristão foi se estabelecendo como verdade absoluta e incontestável, sendo os praticantes de outras religões não monoteístas perseguidos de forma ostensiva.

Religiões como Umbanda, Jurema Sagrada, Catimbó, Candomblé, Quimbanda e outras de bases africanas, ou afro-indígenas não são aceitas pelos grupos da religião predomintante no Brasil, este grupo desfere ataques vilipendiosos contra os povos de terreiro, demonizando os caboclos, os santos e os orixás, destruíndo e invadindo locais de culto, desferem igualmente ataques contra os hábitos e as vestimentas do povo de terreiro, as autoridades públicas geralmente se omitem ou se recusam a atuar contra a intolerância e o racismo religioso.

Em 2022 o censo demográfico do IBGE divilgou que 1% da população brasileira se autodeclarou praticante das religiões de matriz africana, isto significa, segundo os mesmos dados que em torno de 1,8 milhões de brasileiros pertencem a algum terreiro. Os resultados obtidos mostram que entre 2010, data do último censo houve um crescimento sigficativo no número de praticantes dessas religiões no país, indo de 0,3% na última década para 1% na atualidade.

Todavia esse crescimento não significou que houve mudanças na forma como o grupo religioso predominante no Brasil (o Cristianismo) trata os povos de terreiro. Cresceram nos últimos dez anos as violências físicas e psíquicas contra os praticantes de religiões de base africana. Enquanto o fervor cristão aumenta pelo país afora as pessoas que não se alinham às práticas religiosas monoteístas dessa vertente religiosa são perseguidas e violentadas, e essa violência se torna mais ostensiva e impune nas cidades pequenas onde há pouca ou nenhuma vontade dos poderes públicos em punir ou combater o racismo religioso.

Em Milagres, município caririense cuja população autodeclarada negra é de 73,9%, a cidade onde nasceu e onde vive Maria Aparecida da Silva o censo de 2022 informa que há apenas 0,6% de pessoas praticantes das religiões de base africana Umbanda e Candomblé, enquanto 97,21% se autodeclara cristãos, isto é, católicos e evangélicos. Por meio dos dados coletados e pela fala do povo de terreiro de Milagres pudemos perceber que ser praticante de uma religião de base africana em Milagres não é coisa fácil.

Em 2023 entrevistamos o estudante Felipe M., 17 anos, praticante da religião Umbanda, em sua fala o adolescente relata o seguinte:

Faz dois meses, na noite de gira, a gira já tinha tinha começado, estava terminando, veio um homem, armado, tinha um revólver e mandou que todo mundo do terreiro parasse com aquela macumba. Falou da calçada e nós dentro de casa ouvindo ele falar. Ameaçou, disse eu vou passar fogo nos feticeiro e macumbeiro aí dentro. Chamamos a polícia, sabe que horas a polícia chegou? Era mais de meia-noite e todo mundo com medo. Quando a polícia chegou ele já não estava mais na porta e aí nós saímos de dentro da casa. (FELIPE M., 2023)

Esse tipo de perseguição e repressão às religiões de base africana não é incomum no Brasil. Refletimos na primeira parte deste trabalho como a existência do negro e de sua cultura material e imaterial foi negada no Ceará. Observamos como os intelectuais cearenses construíram toda uma prática discursiva para invisibilizar e apagar a presença e até mesmo a existência do povo negro cearense. Uma das práticas da cultura negra que foi negada sua existência no Ceará foi a das religiões de matriz africana.

O racismo religioso no Ceará estigmatizou e estigmatiza os praticantes das religiões de base africana. O professor Reginaldo Ferreira Domingos se dedicou durante o seu doutorado a pesquisar a existências dessas religiões e as perseguições que seus praticantes sofrem na região do Cariri cearense.

Ele afirma que há na região desde longa data perseguições sistemáticas às pessoas que não seguem o Cristianismo. Esta intolerância tem raízes profundas tanto na história do Ceará, quanto na própria história caririense. Ao Povo dos Santos cabe a função de permanecer escondido ou praticando sua religião de forma discreta ou as escondidas, violentando a si mesmo para não sofrer racismo religioso.

Reginaldo Ferreira Domingos traz no seu artigo Narrativas necessárias: no Cariri cearense tem população e religiosidade negra e racismo religioso, sim senhor, toda uma genealogia da presença das religiões de base africana na região sul cearense e apresenta casos de pessoas que sofreram perseguição religiosa por parte da polícia e da população das cidades caririenses.

Um desses casos é do Mestre Elias, sacerdote de religião de matriz africana que nos anos de 1980 foi preso e humilhado publicamente nas ruas de Juazeiro do Norte. Segundo os relatos o Mestre Elias foi preso e conduzido a delegacia onde o torturaram fisicamente, depois a polícia saiu com ele pelas ruas São Pedro, Padre Cícero, até a Praça Almirante Alexandrino, sempre castigando-o com lapadas e a população lançando lixo sobre o sacerdote.

O pesquisador Djailson Ricardo Malheiros no seu livro Geotecnopsicosfera da Territorialidade Sagrada do Cariri Cearense Narrativas do Fenômeno Místico das Benzas nos conta que uma das estratégias do povo negro de terreiro para não sofrer perseguições nem tampouco racismo religioso em seus núcleos familiares ou cidades pequenas do Cariri é de tempos em tempos viajar até Crato ou Juazeiro do Norte para fazer suas obrigações religiosas sigilosamente.

Em algumas cidades da região, principalmente as menores, quando alguém pretende frequentar os terreiros precisam se deslocar para os lugares que tem maior expressividade e aceitação – citamos aqui as cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha. Porém, parte dessas pessoas ao retornar às suas cidades de origem negam a participação em religiões de matriz afro, chegando a frequentar as celebrações católicas, como exemplo do mecanismo de negação. (MALHEIROS, p. 47, 2022)

O que podemos perceber através dessas reflexões que estamos fazendo é que as formas de extermínio da pessoa negra são múltiplas e sofisticadas no Brasil. Há a narrativa historiográfica que elimina o sujeito histórico negro, há a necropolítica que abandona o negro para morrer, os pactos narcísicos da branquitude que racializam o negro forja mitos de democracia racial e micigenação e há também o racismo religioso que desfere ataques às subjetividades e ao universo simbólico do povo preto.

É contra todo esse aparato racista que Maria Aparecida da Silva se insurgirá em Milagres. Sua ação política se impôs no passado e se impõem no presente contra esse jogo de poder que age de forma discricionária contra sua existência negra, dos seus filhos de sangue e seus filhos de santo, como também contra a existância das pessoas negras deste município.

III - Pai Cezar de Oxóssi e o Espiritismo de Umbanda em Milagres

Figura 3: Homenagem ao baba Pai Cezar de Oxossi na bibliotaca da EEMTI Dona Antônia Lindalva de Morais. (Imagem do autor).

A relação de Maria Aparecida da Silva com a Umbanda começou na década de 1970, nessa época ela noivou e casou-se com o babalorixá José Cezar da Silva, sacerdote do Centro Espírita de Umbanda São Jorge Guerreiro. Este terreiro foi o primeiro oficialmente reconhecido em Milagres, isto é, possuía alvará e registro na Federação Espírita Cearense de Umbanda, que lhe garantia relativa segurança contra as perseguições e a intolerância religiosa no município.

O baba Cezar de Oxossi, também conhecido na cidade de Milagres pela alcunha de Poncho, um homem negro iniciado na religião de base africana pelos mestres de Umbanda de Fortaleza, especialmente Dona Júlia Barbosa Condante (Mãe Júlia) de quem herdou a Linha de Oxóssi, isto é de São Jorge Guerreiro, foi um líder espiritual e um negro resistente neste município do sertão do Cariri cearense por meio século, isto é, desde a década de 1960, quando ainda militava na cladestinidade como sacerdote de terreiro até o ano de 2012 quando veio a óbito em plena suas atividades religiosas.

Vamos acompanhar a história do baba Cezar de Oxóssi através da fala de Maria Aparecida da Silva sua filha de terreiro, companheira e também ela própria sacerdotisa e sua sucessora nas obrigações com os santos e caboclos do terreiro.

Relata-nos Maria Aparecida da Silva que conheceu José Cezar da Silva na casa dos seus pais, sendo eles ainda parentes em terceiros grau. Ela era adolescente e observava aquele negro que conduzia o andor de Nossa Senhora pela Rua do Velame (hoje Avenida Santana), ela, as irmãs e outras pessoas o acompanhavam na missão de peregrinar pelas ruas de Milagres com a imagem da santa.

Diz ela:

Cezar andava com uma santa, andava com Nossa Senhora de Fátima num andor, nós acompanhava ele, só que ele, nós tudo moçota, tinha uma irmã minha que namorava com ele, aí pronto como nós andava com ele depois de um tempo, eu ajudava meu pai no açougue, aí eu ia ajudar ele, meu pai. Aí quando foi pra eu casar com Cezar, eu tinha 16 anos. Eu ia pro açougue, quando eu ia pra rua ele vinha, eu ia e ele vinha, eu pensei, esse homem aí tá querendo alguma coisa comigo, ele passava e conversava, e quando deu fé nós fumo pra uma renovção, aí lá na renovação eu tava com um lenço e ele tava com um colar, então ele joga o colar pra mim e eu dou o lenço pra ele e por aí começou. (...) Eu fiquei louca, louca por Cezar e aí quando foi com seis meses nós casamos. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

O casamento foi celebrado na igreja católica em 1975, já nessa ocasião Pai Cezar de Oxóssi mantinha um terreiro, pois sua mediunidade se manifestara quando ele tinha apenas treze anos de idade. Maria Aparecida da Silva nos relata que também suspeitava da sua própria mediunidade, mas somente quando estreitou laços com o babalorixá conseguiu compreender o que se passava com ela:

  ...aí nós vinha pra casa dele toda noite, aí nós descobrimos que ele tinha um terreiro, meu irmão vinha pra casa dele, só que eu vinha, eu já era média (médium), eu já tinha desenvolvido, ele não sabia que eu era média (sic), aí pronto nós casamos e continuamos trabalhando. Ele baixou os espíritos com 13 anos, ele recebeu os espíritos Rei Sebastião e Rei Salomão. A mãe dele pensou que ele bebia, mas ele não bebia ele tava era curando o povo, fazendo o bem pras pessoas, eu sei que ele era um médio (sic) de nascença, muito bom, não era dessas pessoas de sair publicando, era bom, era muito combinado comigo. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

O terreiro é um lugar, um espaço de vivência do sagrado, é aí que a relação com o divino, que a proximidade com a trancendência se faz mais intensa. Também é um lugar de cura e encontros. No terreiro o povo negro reencontra sua ancestralidade e através dela se conecta novamente com o mundo que o colonialismo procurou destruir.

Como lugar de cura o terreiro desempenhou importante papel social e de saúde pública no decorrer da história do Brasil. Como vimos o estado brasileiro fundamentado em bases racistas e abandona a população negra para morrer. Esta práxis necropolítica do estado se intensificou após a abolição da escravidão, estamos afirmando que a república brasileira com seu objetivo explícito de branqueamento do país e posteriormente com a adoção da ideologia da micigenação e da democracia racial desenvolveu toda uma sofisticada tecnologia de morte contra a população negra brasileira.

Essa tecnologia necropolítica atuou diretamente produzindo o descaso com relação a saúde da população preta. Deixar o povo negro morrer era na opinião das lideranças políticas e dos intelectuais a serviço dos institutos de saúde a melhor forma de civilizar o Brasil.

          Conforme Araújo e Ribeiro, 2025:

No início do século XX, a eugenia era uma ferramenta de controle populacional para a garantia da seleção social, representando a superioridade racial e o orgulho da identidade nacional, promovendo intervenções na vida social, no corpo e na reprodução humana, como a segregação racial, a eutanásia e o racismo genético, com o apoio de médicos, intelectuais, autoridades públicas, entre outros. A eugenia no Brasil foi incorporada em diferentes projetos científicos e políticos de seleção social e reforma nacional, num processo que culminou em sua institucionalização, com medidas como a criação de barreiras legais que impediam imigrantes indesejáveis (negros, asiáticos, árabes) ou a esterilização em massa das mulheres negras e de pessoas com transtornos mentais. Estes dois últimos pontos não foram definidos por leis, mas se estabeleceram no cotidiano das discussões e das práticas dos eugenistas. (dispobível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/4DxhHhSCnQPymsh3VXzSHbF/?format=html&lang=pt).

Diante dessa política de morte contra o povo negro os terreiros se tornarão importantes lugares de cura e promoção da saúde física e mental dos pretos e pretas, mas não somente desses, também pessoas não racializadas, mas deixadas na miséria farão uso desses espaços de cura para si e seus filhos.

Nesse contexto o pai de santo e a mãe de santo serão elevados a posição de agentes promotores da saúde da população em geral e do povo negro em particular, uma vez que este grupo racializado é quem mais sofre a violência dentro do sistema de saúde, principalmente a violência promovida pelo racismo institucional.

Assim, quando Maria Aparecida da Silva nos relata que o baba Cezar de Oxóssi “tava era curando o povo, fazendo o bem pras pessoas” ela quer dizer que ele atuava diretamente na promoção da saúde da população negra de Milagres e do Cariri, pois eram estas pessoas que não possuíam assistência médica nem tampouco serviço de saúde a sua disposição.

O Terreiro de Poncho (isto é, o gongá de Pai de Cezar de Oxóssi), é descrito pelos seus frequentadores (filhos do terreiro, ou pessoas em busca de curas e orações), como um espaço privilegiado em Milagres onde era possível encontar refrigério para as dores do corpo e da alma. O babalorixá transformou sua casa, o quintal e o entorno de seu terreiro num centro de cura e tratamento de males.

Maria Aparecida da Silva nos relata alguns episódios de curas realizadas por intermédio de Pai Cezar de Oxóssi:

Vinha gente de fora quando era pra curar, veio da Bahia, veio de São de Paulo, vinha de todo lugar, chegou uma vez meia-noite, da Bahia, pelada que nem uma criança, aí foi que enrolaram ela num lençol e levaram, aí a mulher ficou boazinha, ela ficou boazinha que não queria nem ir embora, queria ficar com nós. (...) veio da Bahia, chegou num carro, de madrugada, nós tinha botado o tambor lá no quintal, antes dela chegar enrolaram ela num lençol, ela vinha se rasgando, era uma mulher alta, bem forte, aí quando chegaram ele [Pai Cezar de Oxóssi] mandou ela descer:

— Mande descer ela — ele disse.

— Deus me livre — o povo disse.

— Desça!

Aí ele ficou assim em pé, quando eles desceram que ela viu ele assim em pé ela caiu, caiu que ficou assim de joelhos, aí foi quando ela arriou, e arriou ele começou a tratar dela, ficou uma semana mais nós. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

Outra cura é relatada assim:

Ele era aqui de Milagres, mas tinha ido para a Casa Branca de Recife, lá trabalha com essas coisas, lá é um centro, levaram ele lá e não atenderam porque era semana santa. Então ia deixar o homem louco? Aí disseram ‘eu conheço uma pessoa que reza, Cezar, chamavam de Poncho. Trouxeram, a gente tinha um congá (sic), nosso congá era ali onde eu moro, funcionava direto, era um congá aberto. Ele vestiu uma capa bonita, vermelha, [Cezar], ele tinha tudo de santo. Trouxeram ele num carro, [o homem], aí quando o homem entrou ele caiu. Ficou bom e você conhece ele hoje.

[...]

E tem mais, trouxeram da Vila Padre Cícero, dois. Doido, doido, doido. Eles chegaram amarrados, aí ele curou e ficou sendo o médio (sic) deles, eles ficaram amigos, chamavam a gente direto pra almoçar lá. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

Percebemos através dos relatos de Maria Aparecida da Silva a importância do Centro Espírita de Umbanda São Jorge Guerreiro liderado por Pai Cezar de Oxóssi no acolhimento das pessoas que estavam completamente desassistidas pelas autoridades de saúde pública tanto em Milagres quanto no Cariri e até mesmo em outros estados.

O sacerdócio de José Cezar da Silva era exercido intrinsecamente ligado às práticas curativas, isto é, diante da carência da população sem assistência contra as enfermidades físicas e psicológicas, o babalorixá assumiu papéis sociais distintos, fazendo-se médico, conselheiro, rezador, benzedor, e assim transformando o seu terreiro em território de cura.

 Sem a devida atenção nos equipamentos de saúde pública as pessoas negras vítimas do racismo institucional e as pessoas pobres lançadas na miséria pela má distribuição de renda no país buscam terapias de curas nos cultos religiosos dos terreiros de Umbanda e Candomblé, pois estes lugares sempre ofereceram acolhimento e a escuta atenciosa dos doentes deixados para morrer pelo estado brasileiro.

Pessoas cujos corpos não são vistos, nem tampouco encontram tratamento para suas doenças nos sistemas de saúde convencionais chegam aos terreiros a procura de atenção e auxílio, pois seus males físicos, morais e espirituais são simplesmente negados ou nem sequer percebidos pela sociedade racista.

O terreiro de Pai Cezar de Oxóssi desempenhou papel de imensa relevância na cidade de Milagres ao longo da segunda metade do século XX, pois garantiu às pessoas que o procuravam, sendo adeptas ou não da Umbanda acolhimento e tratamento. Muitas vidas foram salvas pelo babalorixá, no seu território de cura, o Terreiro de Poncho desempenhou papel político e social sem precedentes no município, salvou vidas e se impôs como lugar de resistência contra as tecnologias de morte do estado brasileiro racista.

Além de território de cura o terreiro é também o lugar de encontro, nesse espaço o povo negro se reconecta com a sua ancestralidade, aciona as suas raízes culturais de base africana, aquelas matrizes que foram sendo dispersadas pelo mundo através da diáspora africana. Dentro dos terreiros observamos emergir os elementos culturais africanos que no cotidiano das relações sociais do Brasil não estão suficientemente claros.

A linguagem dos terreiros é bem própria desse espaço, no seu interior escutamos palavras e frases pronunciadas nas línguas africanas, pontos e invocações que repetem falas e vozes afrodiaspóricas. Há também a forma de organização do lugar, a localização dos objetos, a ornamentação da sala, do quarto, a preparação do alimento. Tudo difere das nossas práticas cotidianas.

Os gestos também são singulares, há toda uma construção de significados para cada gesto de mãos e pés. O movimento do corpo durante as giras e transes obdece a uma simbologia própria. O fogo e a água ganham novos significados, a música e as bebidas são ressignificadas, os terreiros produzem uma semântica própria, e é por meio desta semântica que não segue a lógica imposta pelo colonizador que eles se tornam espaços de resistências e subjetivação do povo negro.

Como lugar de resistência e enfrentamento contra o extermínio dos corpos e sujeição dos pretos e pretas os terreiros são territórios libertários, isto explica o porquê da perseguição empreendida pelos poderes constituídos contra estes espaços. Os repetidos ataques e depredações desses lugares é uma das estratégias repressoras do racismo contra a negritude e suas lutas libertárias.

Sabendo que dentro de um terreiro homens e mulheres negros encontram acolhimento e assim ressignificam suas próprias existências o necropoder reage criando tecnologias de repressão aos territórios libertários dos pretos. Impor seu modo de pensar, agir e sentir foi uma das técnicas de sujeição utilizada pelos brancos para escravizar e marginalizar o povo negro ao longo da história.

Foi como território libertário que o Centro Espírita de Umbanda São Jorge Guerreiro se afirmou em Milagres durante décadas, sob a liderança sacerdotal de Pai Cezar de Oxóssi, o terreiro se tornou uma tecnologia visível de resistância ao racismo e principalmnete ao racismo religioso.

Acompanhando as narrativas de Maria Aparecida da Silva, (esta liderança negra de Milagres me fascina), pois com o seu esposo José Cezar da Silva garantiram o funcionamento de um terreiro de Umbanda aberto, quer dizer, um território de resistência antirracista que se impunha contra uma cidade cuja minoria branca marginalizava e ainda  marginaliza a maioria negra.

Maioria negra esta que foi drasticamente segregada na periferia da cidade de Milagres aonde foi dexada para morrer sem escolas, saneamento básico, coleta de lixo, assistência médica, emprego e renda, cultura e lazer. Estigmatizado e segregado o povo negro de Milagres foi empurrado para os bairros Francisca do Socorro, Habitat, Viver Bem, Padre Cícero, onde impera o abandono e a carência de políticas que lhes garanta uma vida tranquila e saudável.

Há ainda aqueles que moram na zona rural do município, nesses locais distantes da sede municipal pretos e pretas vivem em condições de vida precária. Geralmente são moradores de favor (GUIMARÃES, 2019), ou trabalhadores e trabalhadoras rurais donos de pequenos lotes de terra improdutivos, pois não têm nenhuma assistência governamental para torná-los produtivos.

Nessas localidades rurais o acesso aos serviços públicos é bastante limitada, isto é, as escolas que existem nas proximidades são de qualidade duvidosa, os atendimentos de saúde chegam de forma e insuficiente e irregular. A renda dessas famílias é baixa, sobrevivendo com menos de um salário mínimo por mês.

A história de Milagres é a história da violência contra a população negra e contra o povo indígena. Os pretos e pretas foram escravizados no município até 18 de dezembro de 1886, os indígenas tiveram suas terras invadidas e seu extermínio decretado em 28 de abril de 1867. Ao longo do século XX as pessoas indígenas do município se esconderam e deixaram de assumir sua própria existência para sobreviver numa cidade que os violenta em seus símbolos oficiais, bandeira e hino.

A populção negra que sempre foi maioria em Milagres resistiu ao seu extermínio e apagamento utilizando múltiplas estratégias de lutas: os Pretinhos de Congos, os Penitentes da Cruz das Almas, a Banda Cabaçal, os Terreiros de Umbanda e Candomblé, os Rezadores e Rezadeiras, Benzedeiras, Parteiras, a Contação de Histórias, a Poesia de Cordel, a Pega do Boi no Mato, as Cantorias, o artesanato em barro, tecido, madeira, pedra, suas devoções religiosas.

Essas resistências acima permitiram sua sobrevivência, pois ao criarem a arte e o simbólico impediam que os brancos os dessubjetivasse para assim realizar a sujeição plena do negro aos dispositivos de racialidade.

Para sobreviverem materialmente os pretos e pretas de Milagres trabalharam nos engenhos de rapadura, nas casas de farinha, nas feiras livres, usavam a terra para cultivar algodão, cana-de-açúcar, mandioca, milho, feijão. Trabalharam como tecelãs, costureiras e lavadeiras, venderam ainda que informalmente sua força de trabalho para garantir o sustento seus e de suas famílias e assim manter seus corpos vivos perpetuando suas resistências.

Nossa entrevistada conta que o terreiro de Pai Cezar de Oxóssi se garantia contra as perseguições religiosas busacando a proteção dos alvarás de funcionamento e se associando as federações de Umbanda do Ceará. Nos conta também que o baba Cezar de Oxóssi não se intimidava com a possibilidade de sofrer racismo religioso ao expor-se publicamente como pai de santo e ao convocar seus filhos de terreiro a participarem de eventos públicos que celebravam os santos e caboclos do seu gongá.

Maria Aparecida da Silva relata que uma das festas mais bonitas do terreiro era a procissão de São Jorge Guerreiro que percorria as principais ruas de Milagres:

No dia 23 de abril nós fazia a procissão de São Jorge, nós fazia o andor dele e andava nas ruas, nas ruas de Milagres. Todos os santos, nós fazia a procissão deles, todo mundo, era tambor em cima de carro, todo mundo de farda, era mais ou menos uma vinte médio (sic). Botava o São Jorge em cima do andor e andava com São Jorge Guerreiro, atrás vinha os médio. Tinha um carro com os santo, tinha um carro com os tambor e outro carro com os médios (sic) cantando. Cantava os pontos de São Jorge Guerreiro, o ponto de Iemanjá, o hino da Umbanda, tinha o hino da Umbanda. Muito lindo. (MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

Desafiando o racismo religioso e a estigmatização do povo de terreiro como adoradores de demônios Pai Cezar de Oxóssi e sua companheira Maria Aparecida da Silva ocupavam o território negro das ruas da sede municipal de Milagres etransformavam elas em espaço de resistência antirracista. Ao exporem diante da população branca e cristã seus santos, caboclos e orixás afirmavam publicamente suas existências, a permanência de seus corpos, identidades, ancestralidades e principalmente de suas subjetividades.

Desfilar em carro aberto pelos espaços semânticos da branquitude de Milagres com as entidades do terreiro era uma demonstração da agência do povo negro do município, uma ação política que constrangia os brancos a não esquecerem que o município de Milagres era território negro, uma espacialidade que abrigava uma maioria de pessoas negras.

A presença do povo dos santos na procissão vestindo suas indumentárias religiosas conforme o relato acima, mostra o quanto Pai Cezar de Oxóssi se preocupava com a formalidade do rito para assim evitar violências racistas e riscos desnecessários ao seus filhos e filhas de terreiro. Apropriando-se das práticas culturais dos dominantes ele impunha a presença negra física e simbólica nas ruas do centro de Milagres.

A narradora nos diz que além das vestes e dos santos eles levavam na procissão os instrumentos do terreiro e seguiam o cortejo cantando os hinos e pontos da Umbanda. Um desses hinos já transcrevemos na abertura deste trabalho, trata-se de um canto em louvor da Umbanda, nele Maria Aparecida da Silva defende a sua religião, a Umbanda ‘como paz e amor, mundo cheio de luz, badeira que conduz ao bem’. Neste hino percebemos como ela procura se opor aos argumentos falaciosos que demonizam as religiões de base africana, o hino que era cantado segundo ela durante a procissão acima descrita preocupa-se em esclarescer os preconceituosos e racistas, é uma espécie de pedagogia antirracista cujo objetivo é ensinar que a Umbanda não é nada daquilo do que dela se diz ou já se disse ao longo da história.

A ação política de Pai Cezar de Oxóssi e seus filhos e filhas de santo no Centro Espírita de Umdanda São Jorge Gurreiro e nas ruas de Milagres faz parte daquilo que Nilma Lino Gomes chamou de movimento negro educador:

Como muito do que sabemos e do tem sido desvelado sobre o papel da negra e do negro no Brasil, as estratégias de conhecimento desenvolvida pela população negra, os conhecimentos sobre relações raciais e as questões da diáspora africana, que hoje fazem parte das preocupações teóricas das diversas disciplinas das ciências humanas e sociais, só passaram a receber o devido valor epistemológico e político devido à forte atuação do movimento negro. (GOMES, 2016).

Ao se mobilizar através da espacialidade de Milagres com seus santos e povo de terreiro o baba Cezar de Oxóssi construiu uma pedagogia sobre o papel do negro e da negra na sociedade brasileira, isto que dizer que ele e seu povo mobilizaram saberes e subjetividades que a minoria branca desconhecia, criaram conhecimentos e provomeram uma ação política afrocentrada que obstaculizou a efetivação necropolítica, pois enquanto o estado se empenhava em deixar morrer a população negra Pai Cezar de Oxóssi agia pedagogicamente através de seu movimento  o Espiritismo de Umbanda para educar.

Educar a população branca que ignorava a presença negra em Milagres, que desconhecia a existência das subjetividades negras, educar para que ela viesse a reconhecer o valor epistemológico do conhecimento político, medicinal, social e cultural produzido por ele por seu povo negro no terreiro e fora dele.

IV - Considerações que não são finais

Defuma com as ervas da Jurema

Defuma com arruda e guiné

Alecrim, bejoim e alfazema

Vamos defumar filhos de fé

Vamos cruzar nosso terreiro

Vamos cruzar nosso congá

Vamos cruzas as nossas vidas

Com a fé de Oxalá.

(MARIA APARECIDA DA SILVA, 2025)

Pensar sobre a população negra e suas territorialidades físicas e simbólicas é refletir sobre suas resistências contra o extermínio de seus corpos e apagamento de sua história. Acompanhamos ao longo deste trabalho a trajetória de duas lideranças negras de Milagres, a senhora Maria Aparecida da Silva, mãe de terreiro que através de suas falas e memórias nos deu a conhecer as insurgências do negro José Cezar da Silva, pai de terreiro.

Esses dois sujeitos históricos através sua agência negra promoveram na região Cariri, sul do estado do Ceará um conjunto de práticas insurgentes cujo objetivo foi e ainda é o enfretamento contra o racismo sistêmico que fundamenta o estado brasileiro nas bases da necropolítica.

Ao afirmarem sua presença social, cultural e política bem como a do seu povo de terreiro no sertão cearense essas duas lideranças negras desmontaram a falácia da não existência de negros no Ceará, ensinaram através de suas mobilizações que a cultura e a história do nosso estado se assentam em bases africanas.

Maria Aparecida da Silva e José Cezar da Silva, umbandistas e lideranças negras, promoveram através do seu trabalho e da presença de seus corpos a existência de outros corpos e subjetividades negras.

Celebrando a Jurema, no ponto acima a nossa entrevistada volta a celebrar as vidas negras, a sua fala nos remete mais uma vez ao mundo africano do qual somos originários, “Vamos cruzar as nossas vidas com a fé de Oxalá”, isto é, precisamos voltar ao nosso território ancestral, aquele lugar onde os saberes e as vivências negras eram reconhecidos como formas legítimas de conhecimento e geradores de integração social, política e econômica.

Acreditamos que o trabalho realizado por Pai Cezar de Oxóssi e Mãe Cida em Milagres é de fundamental importância para nos insurgirmos contra as estruturas racistas do estado brasileiro e nos levantarmos contra todo tipo de sujeição e violência que se abate sobre os nossos corpos negros como também contra a supressão de nossas subjetividades.

Referências

ARAÚJO Ivison Luan Ferreira, RIBEIRO Luiz Paulo. A saúde da população negra e as políticas no século XX: é nas encruzilhadas que encontramos resistências, emancipações e mortes, disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/4DxhHhSCnQPymsh3VXzSHbF/?format=pdf&lang=pt.

DOMINGOS, Reginaldo Ferreira. Narrativas necessárias: no Cariri cearense tem população e religiosidade negra e racismo religioso, sim senhor, Gráfica e Editora IMPRECE, Fortaleza, 2023.

FREYRE, Gilberto. Brazil, racial amalgamation and problems, In Opera Mundi, 2010.

GIRÃO, Raimundo. A abolição no Ceará, Fortaleza, Secretaria de Educação e Desporto, Fortaleza, 1984.

GOMES, Nilma Lino. Movimento negro educador, Editora Vozes, Petrópolis, 2017.

MBEMBE, Achille, Necropolítica, São Paulo, Nº 1 Edições, 2025.

OLIVEIRA, Pedro Alberto de. As origens da escravidão no Ceará, Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, 1979.

Figura 4: Pai Cezar de Oxossi nas dependências da Escola Antenor Ferreira Lins onde trabalhou como servidor público. (Imagem gentilmente cedida pela família do babalaô).

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