Não
é só uma questão de pele. É um processo de autoafirmação que implica
consciência e descolonização.
Eugenia
Anna dos Santos, Mãe Aninha Obá Biyi, fundadora do Axé Opô Afonjá, declarou
certa vez que queria seus netos com anel de doutor no dedo e aos pés de Xangô.
Desde sua morte, em 1938, o povo negro continua a enfrentar inúmeros desafios,
principalmente o de sobreviver. Nascida em 1869, Mãe Aninha escapou da
escravidão, mas viu de perto o sofrimento, a perseguição, a exclusão. Não
sucumbiu porque encontrou no candomblé o espaço e o tempo da resistência.
A
ialorixá sabia que o acesso à educação não era prerrogativa de negros e negras,
mas vislumbrava um novo horizonte caso seus descendentes frequentassem a escola
e, quem sabe, a universidade. Um sonho distante para quem viveu durante e após
a escravidão. Algo improvável, uma vez que a legislação vigente por um bom
período do Império vetava a admissão de negros nas escolas públicas.
A
educação como vetor de ascensão social para a população negra era exceção. Vez
ou outra um menino bastardo, fruto da violência do senhor sobre a escrava, era
mandado a um seminário. Alguns “filhos do pecado” tiveram oportunidades, até
estudaram em universidades conceituadas.
Existem
ainda leigos e autodidatas que traziam um conhecimento pouco valorizado, mas
que foram peças-chave na construção deste País. Há nomes que figuram como
referências no Direito, Medicina, Engenharia, Literatura. Negros que
colaboraram na luta pela abolição e influenciaram nos destinos do Brasil.
As
estratégias de resistência nos quilombos e nos terreiros eram outras. Não
incluíam uma instrução formal, não passavam pelas universidades, não contavam
com a imprensa para propagar seus ideais. Era preciso sobreviver.
O
candomblé, por exemplo, além de recuperar a família, a tribo e a organização
social africana, perdidas no processo da diáspora, possibilitava ao negro a
construção de uma identidade que remetia a sua origem.
Contudo,
num ambiente hostil, em meio à escravidão, submetidos à colonização, sendo
privados de seus nomes, de seus parentes, de suas referências, não restava
outra alternativa a não ser aquela de se adequar para sobreviver.
Num
primeiro momento, para estar inserido na sociedade, na qual os brancos eram os
senhores, ou seja, a classe dominante que determinava o modo e, muitas vezes, o
tempo de vida do contingente negro, era preciso se submeter à conversão ao
catolicismo. Essa conversão era uma condição para a existência e mobilidade
social de negros e negras.
Corpos
e mentes colonizados ultrapassaram o período escravista. A condição de escravo,
além de real e concreta por quase quatro séculos, é até hoje uma triste herança
histórica e segue a determinar os lugares sociais de metade da população
brasileira.
É
quase um pacto que por vezes alguns movimentos, nem sempre organizados, tentam
romper. Foram muitos ao longo do século XX, mas alguns dados de memória
coletiva da minha geração, que viveu boa parte de sua infância nos anos 1980 e
frequentou a universidade entre meados dos anos 1990 e 2000, me provocam a
pensar neste velho desafio do povo negro: a ascensão social.
Lanço
meu olhar sobre negros e negras que tiveram acesso à universidade antes das
cotas e das facilidades criadas pelos programas sociais dos últimos anos. Que
em sua maioria estudaram em instituições particulares, trabalhavam de dia e
estudavam à noite, moravam longe, não tinham carro nem dinheiro sobrando.
Estes,
cujas mães eram empregadas domésticas e os pais, quando existiam, exerciam
algum tipo de trabalho braçal, constituem um grupo que rompeu com um ciclo,
mudando a história de suas famílias e da geração seguinte.
Educação,
artes, literatura, história, filosofia, antropologia, religião, sociologia,
direito, política são algumas das áreas nas quais se destacaram esses negros
que hoje estão com anel de doutor no dedo. Netos e netas de Mãe Aninha e Mãe
Senhora, de Mãe Menininha e Procópio de Ogunjá, filhos dessa diáspora africana
que, embora plena em consciência e negritude, em certos momentos ainda sofre os
efeitos da colonização.
É
compreensível, mas devemos lutar para desconstruir esse conceito que nos impele
à autodestruição e nos faz enxergar irmãos e irmãs como rivais.
Aqui,
falo de gente negra que subiu um degrau a mais, mas fez questão de reforçar
seus traços e sua identidade cultural. Falo daqueles que recusaram o branqueamento,
daqueles que têm consciência e percebem que o acesso a bens de consumo não
altera sua condição de classe.
Conhecemos
bem a fragilidade dos movimentos de afirmação racial e vemos territórios de
resistência, como terreiros de candomblé e escolas de samba, passar por
processos de esvaziamento de significados, tornando-se espaços sem origem, sem
cor.
Na
verdade, é a branquitude percebendo e aproveitando-se de nossas fragilidades,
impondo-se com a mesma sutileza do branqueamento, que transforma a ascensão
social numa possibilidade que se processa individualmente, por esforço e
mérito.
Esse
é um bom exemplo de como se efetua o mito da democracia racial, que, entre
tantas fantasias, cria a ideia de que não existe racismo no Brasil,
desagregando o grupo étnico e impossibilitando que este aja em conjunto.
Para
usar um conceito marxista, o contingente negro não constitui uma classe social,
portanto não somos agentes capazes de interferir no processo histórico. Por
consequência, nossos problemas deixam de ser coletivos e se tornam individuais.
Paramos de ser colaboradores e passamos a ser concorrentes. A quem essa postura
serve?
Um
grande nome dessa geração é a filósofa Djamila Ribeiro, uma das principais
expoentes do feminismo negro. Ganhou projeção, brilhou, atraiu olhares (e não
só de admiração). Nela e em tantos outros se realiza o velho desejo de Mãe
Aninha, mas como pesa esse anel.
A
ascensão social de negros e negras vem acompanhada de desconfiança, juízo de
valor e muitos adjetivos. A culpa pode levar a um autoboicote, à interrupção de
projetos profissionais e acadêmicos, à rejeição de convites.
Volto
a dizer: nossa afirmação coletiva ainda é frágil. Por isso devemos estar
atentos e não permitir que a colonização limite nossos corpos e mentes. O lugar
de fala deve ser respeitado, o debate tem que ser produtivo e a crítica só vale
se for honesta e construtiva. Empatia, afeto, generosidade são legados da nossa
ancestralidade e é nossa obrigação cultivá-los.
A
máxima “eu não tenho culpa” tem ilustrado meus momentos de realização e
felicidade. Cabe a todos e todas de minha geração, a cada um dos meus irmãos e
irmãs: aos de fé, aos de axé, aos de cor.
Não
somos inimigos, ainda que tenhamos divergências. Somos pares. Nosso inimigo é o
racismo, o sistema, a estrutura que nos impede de entrar mesmo quando somos os
donos da grife. (Por Pai Rodney, da CartaCapital).
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Nicolau Neto, professor, blogueiro e ativista das causas negras durante Formação sobre Ensino de História e Cultura Afro-indígena cearense realizado pela Crede 18 em agosto de 2015. (Foto: Lucélia Muniz). |