Em
23 de setembro de 1870, 12 anos antes de sua morte, em São Paulo, Luiz Gama
legava como herança para o seu único filho, Benedito Graco Pinto da Gama,
conselhos e exemplos de vida de um homem que fez de sua existência na terra uma
luta constante e incansável pela abolição da escravidão e pelo fim da monarquia
no Brasil. No século XIX, ser negro não era necessariamente sinônimo de ser
escravo. Havia africanos livres que vieram para terras brasileiras por conta do
comércio transatlântico e aqui viviam, alguns aqui nasciam e permaneciam livres
e outros tantos que conseguiram comprar a própria liberdade e até mesmo provar
na Justiça que eram livres. Luiz Gama, paradoxalmente, viveu essas duas
realidades.
No
rol dos brasileiros esquecidos, negligenciados pela historiografia, despontou,
durante muitos anos, Luiz Gama. Graças, no entanto, ao esforço de intelectuais,
pesquisadores e instituições, felizmente esse cenário vem mudando nos últimos
anos.
Luiz
Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia, em 21 de julho de 1830, filho
de uma negra livre, Luíza Mahin, e de um fidalgo branco de origem portuguesa
(cujo nome jamais citou). Gama veio ao mundo na condição de negro livre. Sua
mãe, segundo ele mesmo conta, participou da Revolta dos Malês, em 1835, a maior
rebelião de escravos do Brasil, e da Sabinada, em 1837, que proclamou a
República Bahiense, era uma verdadeira revolucionária. Devido à participação
nessas revoltas, Luiza teve que fugir para o Rio de Janeiro, deixando Gama aos
cuidados do pai e sem qualquer informação posterior sobre ela. Por um ano, Luiz
Gama viveu sob os cuidados do pai, que o vendeu quando contava dez anos de
idade, na condição de escravo, segundo consta, para pagar dívidas de jogo. Foi
assim que, da noite para o dia, um ser humano livre e dono de si, tornou-se uma
“peça”, um escravo. Daí iniciou a trajetória de superação que faria de Luiz
Gama um exemplo para negros e brancos na sua luta obstinada pelo fim da
escravidão.
Na
condição de escravo, Gama fora contrabandeado para o Rio de Janeiro onde foi
vendido ao negociante, contrabandista e alferes, Antônio Pereira Cardoso e
levado para ser revendido em São Paulo. O fato de ser baiano fazia de Gama um
escravo indesejado onde quer que fosse colocado à venda. A história de revoltas
de escravos na Bahia dava aos negros vindos de lá o título de revoltosos e
insubordinados. Foi assim que, não conseguindo vender a criança e outro escravo
também baiano a nenhum fazendeiro no estado de São Paulo, restou a Antônio
Cardoso levá-los para a sua própria fazenda. O jovem Luiz aprendeu a trabalhar
como copeiro e sapateiro, a lavar e consertar roupas.
Aos
dezoito anos de idade, Luiz Gama aprendeu a ler e escrever com a ajuda do jovem
Antônio Rodrigues do Prado Júnior, que se hospedava na casa de seu senhor.
Nessa idade, Gama conseguiu “secretamente”, segundo ele, as provas de sua
liberdade. Foge da casa do seu dono e ingressa na Marinha de Guerra, na qual
serviu por 6 anos, alcançando a patente de cabo-de-esquadra. Após ato de
insubordinação a um oficial, nas suas palavras, insolente, Gama ficou 39 dias
preso, sendo expulso em seguida daquela força. Em 1856, torna-se amanuense da Secretaria de Polícia da Província de São
Paulo. Gama frequentou, por algum tempo, como ouvinte, a Faculdade de Direito
de São Paulo, onde sofreu preconceito e repulsa de professores e estudantes, à
época todos brancos e quase sempre de origem aristocrática. Sem diploma de
bacharel em Direito, torna-se um rábula
e liberta, pela via judicial, mais de 500 escravos do cativeiro. Um
feito sem igual na história mundial da advocacia Quando não conseguia libertar
um escravo nos tribunais, comprava a alforria com dinheiro arrecadado por ele
mesmo através de esmolas, às vezes com a ajuda dos irmãos da Maçonaria ou dos
membros do Círculo Operário Italiano.
Poeta,
Luiz Gama lança, em 1859, o livro Primeiras
Trovas Burlescas, conjunto de poemas líricos e de crítica social e
política. A partir da década de 1860, passou a contribuir ativamente em vários
jornais da imprensa paulista, entre eles o Diabo
coxo (1864-1865) e Cabrião
(1866-1865), primeiros periódicos ilustrados de São Paulo, os quais ele ajudou
a fundar. Durante sua vida, sempre utilizou da imprensa em prol da causa
abolicionista e republicana.
O
prestígio de Gama, amealhado por conta das suas sucessivas vitórias nos
tribunais na libertação de cativos, muitos escravizados ilegalmente,
ultrapassou as fronteiras de São Paulo atraindo escravos de outras províncias.
Nesse período, ele ganhou o epíteto “O
terror dos fazendeiros”. Junto ao título de libertador vieram as ameaças de
morte por parte daqueles que se sentiam incomodados com a ação de Gama. Foram
essas ameaças que o levaram a escrever a carta- herança a seu filho em 1870.
Na
esfera política, a luta de Gama caracterizou-se pela defesa de uma república
brasileira, os “Estados Unidos do Brasil”.
Fez parte da Convenção de Itú em que fora criado o Partido Republicano Paulista
(PRP). Consciente de que naquele espaço dominado por fazendeiros e senhores de
escravos suas ideias abolicionistas não encontrariam apoio, passou a
denunciá-los e condená-los de todas as formas. Apesar das decepções com o PRP,
Gama continuou fiel às ideias republicanas.
Com
o passar dos anos, o vigor mental do revolucionário abolicionista permanecia
irretocável, todavia o seu corpo não mais respondia com tanta vontade. Em 1882,
o diabetes já dificultava sua locomoção. Na manhã de 24 de agosto daquele mesmo
ano, Gama perdeu a fala e, mesmo diante dos esforços de mais de vinte médicos,
faleceu naquela mesma tarde, aos 52 anos de idade.
Nunca
antes tinha se visto tamanha quantidade de pessoas em um cortejo fúnebre na
cidade de São Paulo. As ruas foram enfeitadas como nas mais importantes datas
festivas do ano e o comércio cerrou as portas em sinal de luto. Brancos,
negros, pobres e ricos, anônimos e figuras ilustres, muitos foram aqueles que
acompanharam o féretro de Luiz Gama. Entre paradas e discursos, o povo conduziu
o corpo do herói abolicionista por mais de três horas, de sua casa, onde esteve
sendo velado, até o Cemitério da Consolação. Sobre o seu caixão, juraram todos
manter viva a luta em favor da abolição da escravidão e pelo fim da monarquia.
Luiz
Gama legou à causa antiescravagista o Centro Abolicionista, com forte
participação de seu amigo Antônio Bento, que tinha como presidente Alcides
Lima. Alguns dias antes de sua morte, foi publicado o primeiro jornal do
Centro, o Ça Ira, em 19 de agosto de
1882. No jornal, um artigo de Raul Pompéia tinha como subtítulo a frase de
Gama: Perante o Direito, é justificável o crime de homicídio perpetrado pelo
escravo na pessoa do senhor.
Sob
a inspiração e influência de Luiz Gama, seu amigo, o advogado e maçom Antonio
Bento de Souza e Castro organizou os Caifazes, movimento radical de
libertação de escravos, que organizava fugas coletivas de escravos das fazendas
e os encaminhava para o quilombo do Jabaquara, nas cercanias da cidade de
Santos.
Luiz
Gama, poeta, jornalista e advogado, defensor dos oprimidos, pobre por opção, é
o patrono da cadeira nº 15 da Academia Paulista de Letras.