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Karla Alves. ( FOTO | Reprodução). |
Por Karla Alves, Colunista
A pobreza e a criminalização da população negra fazem parte do maior projeto de exclusão já elaborado pelo parlamento brasileiro, arquitetado no período pré-abolicionista e mantido até hoje por adaptações executadas por cada geração para garatia dos privilégios raciais que perduram desde a escravidão.
Neste texto, pretendo relacionar dois fatos já conhecidos da História do Brasil (apenas dois dos tantos) como evidência do que aconteceu com a população negra após o 13 de maio de 1888.
A NEGAÇÃO DO PASSADO PARA A PRIVAÇÃO DO FUTURO
Durante o período escravocrata cada pessoa negra comprada como objeto nos mercados negreiros era obrigada a carregar um nome mercadológico. Quando batizado, lhes era (geralmente) imposto um nome cristão e por sobrenome estas pessoas carregavam o do seu "dono" e "senhor" como forma de ter sua procedência identificada enquanto “propriedade” de alguém.
Essa forma de subtração do nosso passado nos traz como consequência direta para os dias de hoje a inviabilidade de conhecermos nosso lugar e cultura de origem (como uma pessoa cujo sobrenome atesta sua origem japonesa ou francesa, por exemplo). Mas além dessas e de outras formas de nos impedir o acesso ao nosso passado e a nossa cultura de origem, houve um fato alarmante ocorrido no período pós-abolição (1891) conhecido na história como "A queima de arquivos relativos à escravidão" por determinação do então ministro da Fazenda Rui Barbosa, em exercício durante o governo provisório de Deodoro da Fonseca, isto é, de 1889 a 1891.
Esse texto busca, então, mostrar de que maneira essas duas formas de impedimento à fatos concretos do nosso passado incidiu propositadamente para às condições socioeconômicas impostas à população negra na atualidade.
A QUEIMA DE ARQUIVOS PARA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
Em poder das repartições públicas submetidas à autoridade do ministério da Fazenda, esses documentos relativos à escravidão foram incendiados por ordem de Rui Barbosa em despacho datado de 14 de dezembro de 1890 e cumprido por intermédio de circular, datado de 13 DE MAIO de 1891 (três anos após a assinatura da Lei Áurea e dois anos após a Proclamação da República), quando Rui Barbosa já não era mais ministro da Fazenda, cabendo ao seu sucessor Tristão de Alencar Araripe a execução da medida.
O despacho do ministro determinava no primeiro parágrafo que "serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, RELATIVOS AO ELEMENTO SERVIL, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria".
Segundo alguns historiadores esta medida visava proteger recursos do tesouro nacional diante da ameaça e de pedidos dos ex-proprietários de escravizados e seus herdeiros em busca de uma indenização com recursos federais pela perda de sua “mercadoria” com a abolição.
Tal pedido foi indeferido por Rui Barbosa que deu uma resposta definitiva ao dizer que:
“Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de INDENIZAR OS EX-ESCRAVOS, NÃO ONERANDO O TESOURO” (grifo meu)
Essa resposta dada por Rui Barbosa está registrada no Diário Oficial de 12 de novembro de 1890.
Além de evidenciar que (1) a riqueza do Brasil foi construída pela população negra e que portanto, (2) essa população têm direito à indenização, a declaração feita pelo ex ministro nos revela o fato de que os documentos queimados seriam a prova para garantia dessa indenização dos “EX-ESCRAVOS”, algo não consentido pelo governo diante da constatação de que esta indenização viria a onerar o tesouro do país, sobretudo quando levamos em conta que em 07 de novembro de 1831 o ministro da Justiça Diogo Antônio Feijó proibiu o tráfico escravo e declarou livres todos os escravizados vindos de fora do Império, medida que não foi cumprida pelo menos até 1850 e, portanto, quem veio forçado ao Brasil nesse período poderia ser indenizado pelo período de ilegalidade da transação sobre seus corpos, bem como seus herdeiros caso tivessem acesso a documentos que comprovassem a ilegalidade da escravização de um antepassado seu.
Mas com a escravidão em curso até 1888, nomes e sobrenomes continuaram a ser substituídos pelo batismo cristão e pela imposição senhorial como FATO HISTÓRICO. E com a medida pós-abolicionista determinada por Rui Barbosa o acesso a documentos sobre o PROCESSO HISTÓRICO a respeito de escravizados, ingênuos (libertos com antepassado escravo), filhos livres de mulher escravizada (lembrar da lei do ventre livre de 1871) e libertos sexagenários (lembrar da lei dos sexagenários de 1885) nos foi negado, impedindo a justa indenização validada em documentos que poderiam ser usados judicialmente por nós.
Ou seja, nosso passado nos foi negado e a escravidão se tornou um marco temporal (pretensiosamente) estabelecido pelos escravocratas para a história do povo negro no Brasil. E ainda que hoje estejamos cientes de que nossa história não começa aqui, restringiram nossos caminhos dentro da historiografia material para sermos conduzidos até nossa cultura étnica de origem, logo, não só o nosso passado nos foi negado como também a qualidade do nosso presente que deveria ser economicamente bem diferente da atual realidade econômica do povo negro no Brasil (que é maioria nas penitenciárias, ruas e favelas do Brasil) se justamente indenizado fosse.
A miséria imposta como modelo de vida para a população negra foi uma produção da política brasileira que se mantém até hoje às nossas custas.
Os escravocratas (Senhores Parasitas Mendicantes) construíram sua riqueza com a força de trabalho de pessoas negras escravizadas e seus herdeiros se beneficiam até hoje não somente dessa riqueza herdada como também da manobra política e econômica de apagamento e manipulação do nosso passado para consolidação do poder hegemônico nas mãos de um grupo que permanece durante séculos em domínio, administrando todas as instituições sociais, pois, ainda que elejamos pessoas negras para administração de algumas destas instituições, estas precisarão ser adaptadas (ou seja, assimiladas) pelo poder coercitivo de uma cultura colonial criada pelos escravistas e mantidas por seus herdeiros através dessas mesmas instituições. De acordo com essa lógica operacional, estas pessoas negras só estarão “aptas” a assumir cargos administrativos quando comprovarem sua introdução cultural ao poder em comando através dos títulos que atestam a completa adequação à metodologia de persuasão desta cultura. Então mesmo que esta pessoa negra ocupe cargos administrativos e defenda a liberdade do seu povo, a supremacia branca continua veiculada através da introdução metodológica de sua cultura (erudita, eurocêntrica, elitista, patriarcal, etc.). Isso é o racismo estrutural.
Assim, muito do que vemos são pessoas negras conduzindo no presente o futuro projetado por senhores brancos no passado. E nada muda para quem está embaixo sustentando essa estrutura nas costas.
Na ampulheta dessa história, a memória amputada e substituída pelas mãos de senhores escravocratas nos leva a continuar construindo com nossa força de trabalho a realidade que mantém o poder nas mesmas mãos de quem nos roubou nosso passado, de quem nos rouba no presente e quer permanecer no comando de nossas vidas no futuro. É a memória manipulada criando a história idealizada pelos mesmos supremacistas que invadiram e exploraram este país.
Mas como “Exu matou ontem o pássaro com a pedra que só atirou hoje”, eu acredito que a organização do nosso passado por meios que a matéria não pode deter é o caminho para a libertação do nosso presente, para reintegração de posse do nosso ser, para a exigência de indenização e não mais a migalha das reformulações legislativas que, quando nos chega, vem sempre atrasada apenas para evidenciar o tamanho da insuficiência que temos como causa e como consequência de uma supremacia alienadora e predatória.
Quando este dia chegar, (e ele vai chegar) nosso futuro construído com nossa própria força para nos alimentar e fortalecer - ao invés de nos subtrair e nos anular – será de fartura e abundância e não mais sentiremos nas costas o peso de quem carrega o mundo porque não mais estaremos carregando o futuro senhorial em nossas costas.
Que nossa verdadeira história nos sirva para nosso autoreconhecimento, autorrespeito, auto-organização e autogestão tão necessária para o pleno exercício da liberdade.
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