Mestre Cicinho e os direitos humanos

 

(FOTO | Reprodução).


Por Karla Alves, Colunista

O artigo 1° da declaração universal dos direitos humanos diz que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos". O Reisado Manoel Messias lembrou-se de incluir mulher e criança para que ali se lembrassem que humanidade não se restringe ao homem.

Sim, nascemos livres. Até nos tornarmos sujeitos sociais submetidos às categorias raciais que divide verticalmente a espécie humana. Essa verticalização diz respeito à escala econômica e ao tratamento destinado a quem ocupa cada nível, do mais baixo ao mais alto lugar nessa escala.

As manifestações culturais negras não alcançaram o mesmo tratamento destinado às manifestações culturais "eruditas", herança dos colonizadores. Mesmo após tantos anos da assinatura da lei Áurea e mesmo após a teórica descriminalização de certas práticas culturais negras (como a capoeira) há uma enorme discrepância entre os investimentos destinados a produção e propagação de uma e outra manifestação cultural, incidindo diretamente nas relações raciais estabelecidas com base valorariva onde poucos (brancos e eruditos) gozam de tantos recursos e tantos (negros da cultura "popular") disputam entre si o pouco recurso que lhes é destinado para manter viva sua tradição. No campo da miséria, se a disputa é por migalha a desavença vira regra. Migalha não mata fome e fome leva ao desespero.

Quanto vale um e outro mestre da cultura popular e erudita? Como dispõem de sua liberdade num e noutro campo de atuação onde se manifesta sua tradição cultural? Porque um tem mais direitos que deveres enquanto o outro cumpre tantos deveres para ter o direito de gritar que tem direitos? Por esse fenômeno social racializado e valorativo, direito se torna privilégio. E aqui o acúmulo de privilégios é traduzido como dignidade. Então quem é verdadeiramente o humano levado em conta na declaração UNIVERSAL dos direitos humanos? O Homem eleito como padrão universal de humanidade? Então eu não sou humana?

O Reisado Manoel Messias lembrou de incluir mulher e criança nessa manifestação cultural de tradição africana que é o Reisado. E no dia de Reis seu rei foi assassinado cumprindo seu ofício, cuidando do seu reinado numa das periferias de Juazeiro, seu principal campo de atuação. Isso é tão triste quanto revoltante. Um pai, marido, avô, trabalhador e Mestre da tradição cultural negra teve sua vida interrompida pela violência institucionalmente incentivada nas periferias do Brasil. A gestão cultural é o principal setor de incentivo dessa violência, embora figure como a salvadora. Nada de novo se pudermos analisar tal fenômeno através da nossa História.

O intelectual negro brasileiro Abdias Nascimento já nos alertava sobre as motivações dos funcionários da corte portuguesa no Brasil colônia que permitiam às celebrações culturais de origem africana:

"Para o governo (...) o batuque é um ato que, uma vez por semana, força todos os negros - automaticamente e sem conhecimento consciente - a renovar aqueles sentimentos de aversão mútua que eles tem por concedido desde o nascimento (...) Esses sentimentos de hostilidade mútua podem ser vistos como a mais poderosa garantia que as maiores cidades do Brasil desfrutam. Suponha que um dia as várias nações africanas esquecessem sua tradição de ódio, inculcado de uma para outra. Suponha que (...) se tornassem amigos e irmãos: o resultado seria uma espantosa e inelutável ameaça ao Brasil, que terminaria com a desolação do país inteiro". (Extraído do livro O genocídio do negro brasileiro de Abdias Nascimento).

Portanto, podemos ver que não havia benevolência ou tolerância do governo brasileiro ao permitirem e até incentivarem os folguedos da população negra escravizada. No entanto, a historia escrita por eles nos fazem vê-los como benevolentes e até salvadores a exemplo da pricesa Isabel, criando e dando manutenção ao mito do "Senhor Benevolente" e ao mito da democracia racial brasileira. Muito diferente nos atesta a escrita de um negro intelectual como Abdias ao nos apresentar tal documento que revela as intenções por trás das concessões dos Senhores, que visavam estabelecer a discórdia entre os povos negros através das diferenças étnicas que cada nação negra trouxera em seu corpo, mente e coração.

De lá pra cá a síndrome senhorial se adaptou ao mercado e garante cargos com altas remunerações em instituições culturais para os herdeiros da pele e cultura branca traduzida por "erudita", enquanto mantém a disputa e a discórdia entre os que se matam tentando manifestar sua herança cultural traduzida por "popular". Desde a tentativa de criminalização de um dos entremeios do Reisado (os cão), aos miseráveis cachês destinados aos grupos de tradição, a seletiva "preferência" por alguns grupos em detrimento de outros e a forçosa higienização e padronização desses "preferidos" para figurarem como modelo representativo da tradição, muitos outros mecanismos são utilizados pela política de gerenciamento cultural como forma de promover a manutenção da disputa e da discórdia entre brincantes da tradição. E enquanto nos matamos uns aos outros aqui em baixo, os de cima sobem cada vez mais. Nada de novo, como podemos ver.

A apropriação de nossas mentes e corpos continua nos colocando à serviço de um projeto de nação que promove o genocídio da população negra e desolado (leia-se: sem aspectos de servidão) ficaria este país se a população negra unir-se em irmandade (veja o exemplo do Caldeirão da Santa Cruz). Nosso amor e união por e para nós é o maior ato de rebeldia contra esse sistema genocida. Os Senhores e as Sinhás ainda são os mesmos que continuam se passando por benevolentes, salvadores e generosos nos servindo cafezinho enquanto roubam nosso ouro e ainda por cima exigindo nossa gratidão quando, na verdade, são eles que muito têm a nos agradecer.

Nós negras e negros ainda somos maioria populacional nesse país erguido sobre a exploração do corpo e da mente negra. Precisamos construir pontes de amor e solidariedade mútua sobre a lama de discórdia que os governantes nos destinaram.

O corpo negro ainda é aquele que tomba pro branco dançar, aplaudir e cantar engordando seu saldo bancário nas sombras da exploração enquanto nos matamos para ter direito a luz do sol e ao pão.

Descanse, Mestre Cicinho. Que seu espírito alcance a paz. Que essa paz se propague na mente dos que aqui ficam. Ainda lutamos pelo reconhecimento de nossa humanidade, dos nossos direitos e por justiça social.

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