A Vila de Nossa Senhora dos Milagres e a última aldeia indígena do Ceará

 

Dona Dionínia Severo, uma das últimas descedentes dos Kariri-Xocó de Milagres, detentora de prodigiosa memória que guarda a história e a cultura do seu povo. (FOTO/ Carlos César).

(Aldeia da Serra da Cachorra Morta, 1842-1867).

Por Carlos César Pereira de Sousa*

Em 1859 o naturalista Francisco Freire Alemão, o geólogo Guilherme Capanema, o poeta e etnólogo Gonçalves Dias e mais um grupo de astrônomos, botânicos, mineralogistas, zoólogos, geógrafos e etnólogos percorreram a região do Cariri fazendo importantes estudos científicos sobre as riquezas naturais, minerais e sobre as potencialidades agrícolas do sertão do Ceará. E chegaram a Milagres em meados desse ano.

Apelidada de Comissão das Borboletas, pelos seus detratores na imprensa do Rio de Janeiro, o nome oficial da expedição dado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das províncias do Norte, ela foi responsável por apresentar a Província do Ceará ao Império do Brasil, pois naquela época conhecia-se pouco quem eram os cearenses. Os resultados das pesquisas da comissão foram registrados principalmente por Francisco Freire Alemão no seu Diário de Viagem, publicado somente no século XX. E é nesse diário que o cotidiano da cidade de Milagres do final da década de 1850 emerge.

Percorrendo o Vale do Riacho dos Porcos naquele ano de 1859, os membros da Comissão Científica hospedaram-se na casa do Sr. Franklin de Lima, proprietário de terras em Milagres e Jardim, isto é, no entorno da Chapada do Araripe. Freire Alemão informa que Gonçalves Dias estava particularmente interessado em saber sobre os indígenas da região e logo a conversa recaiu sobre esse assunto e lhes informaram o seguinte sobre a presença destes índios no vale: “Ontem a noite em casa do Sr. Franklin de Lima, disse o Sr. Franklin que um resto de tribo que hoje reduzida a uns 50 ou 60 existe ali por Milagres, pertenceu a uma nação que habitava por Piancó, Brejo Verde e Pajeú de Flores”.

Esse resto de tribo a qual o latifundiário Franklin de Lima refere-se são os Kariri-Xocó, índios aldeados no começo de século XIX pelo Frei Vital de Frascarollo na área fronteiriça dos sertões do Ceará, Paraíba e Pernambuco. Durante a década de 1830 com a dissolução do aldeamento criado pelo frei, os índios ficaram dispersos pela Chapada do Araripe, entre a Vila de Jardim e a Povoação de Milagres. Viveriam por mais de uma década perseguidos pelos proprietários rurais da região e caindo nas emboscadas de seus perseguidores.

Finalmente em 1842 foi feito um plano para aldeá-los. O governo da Província do Ceará e o Ministério da Justiça solicitaram das câmaras municipais de Crato e Jardim, relatórios sobre a presença indígena na região. As informações dão conta que havia ainda cerca de 160 indivíduos que viviam pelas matas do Cariri, sobrevivendo de roubos de gado e ataque às roças dos proprietários rurais. Para criar esse aldeamento as autoridades do Ceará decidiram encaminhar para um local determinado pelo governo todos os índios que estivessem “soltos” pelo Cariri. E assim foi feito. Xocós e Umães foram os dois principais grupos reunidos, ambos descendiam da grande nação Kariri que aos poucos estava sendo levada a extinção pelos colonizadores do sertão e do Cariri.

O local escolhido pelo governo cearense para instalar a aldeia foi uma área de terras dentro da Freguesia de Nossa Senhora dos Milagres que havia sido criada por decreto provincial nesse mesmo ano de 1842. As terras da Serra do Ouricuri (Chamadas na época de Serra do Sobradinho entre Cuncas e Milagres) estendendo-se até os altos da Serra do Salgadinho (nas divisas do Ceará com a Paraíba) e áreas dos pés e sopés dessas serras (Barreiros, Pilões, Olho d’Água do Poço, Jitó, Macacos) foram definidas como terras indígenas. Nascia assim a Aldeia da Serra da Cachorra Morta, considerada na época a última aldeia indígena do Ceará.

A Aldeia da Serra da Cachorra Morta já nasceu sob as disputas dos fazendeiros de Milagres pelas terras consideradas indígenas. Ao longo da década de 1850 enquanto os proprietários de terras do Vale do Riacho dos Porcos procuravam avançar sobre as terras dos índios aldeados, os indígenas procuravam reagir para manter o pouco que lhes restava. Começou a se popularizar em Milagres inúmeras falas que procuravam destruir a imagem do índio aldeado nas proximidades do município. Os senhores ricos da região ajudados pelos boatos começaram a amedrontar a população criando na mentalidade popular a falsa ideia de que aqueles índios eram perigosos, pois segundo afirmavam, eles sequestravam crianças, estupravam mulheres, roubavam cavalos e gado e que eram índios canibais comedores de carne humana. Foi nessa época que a lenda de Sousa Presa, o fundador de Milagres que teria caído nas garras dos “terríveis” Tapuias, a lenda foi criada e se difundiu na oralidade do povo ao longo da segunda metade do século XIX.

Recorte do Mapa da Província do Ceará de 1861, feito por Pedro Thebérge, médico que visitou Milagres e a Aldeia da Serra da Cachorra Morta, observe no detalhe a região da Aldeia. (FOTO/ Mapoteca da Biblioteca Nacional).

Perseguidos, os índios se dirigiram à Câmara de Milagres para pedir proteção. Informado dos distúrbios na região, o governo do Ceará nomeou em 1856 um guardião para os índios. A missão de guardar os direitos dos indígenas da Aldeia da Serra da Cachorra Morta ficou nas mãos do Sr. Manoel José de Sousa, que tinha uma propriedade no Sítio Santo Antônio em Milagres e assumiu o trabalho mediante uma pensão anual.

Mesmo assim as coisas não melhoraram para os índios. Em 1860 voltaram a reclamar para os vereadores de Milagres, dos fazendeiros da região que estavam colocando gado para pastar nas suas roças. Mas o pior aconteceu em 1862, quando uma epidemia de cólera se abateu sobre Milagres e dezenas de índios aldeados morreram inclusive o próprio Manoel José de Sousa. O médico Pedro Theberge que esteve em Milagres nessa época para atender os índios e ver as condições de higiene da cidade onde a população estava morrendo as centenas, relatou que a situação dos aldeados era desesperadora.

Em 1865 a Câmara de Milagres aprovou uma postura municipal para coibir o avanço dos fazendeiros sobre as terras da Aldeia da Serra da Cachorra Morta, nessa postura estipulava-se uma multa para o fazendeiro que soltasse seu gado na área indígena. Isso de nada valeu, pois o proprietário José Inácio da Silva mandou soltar o gado nas roças dos índios. Denunciado pelo diretor dos índios Manoel José de Sousa Filho (filho do anterior), o latifundiário José Inácio da Silva que era do Cuncas, procurou o juiz de Direito de Milagres, Joaquim do Couto Cartaxo e não só teve a multa perdoada como nada sofreu pela desobediência a lei municipal.

Os índios se reuniram em grupos de cerca de 80 indivíduos e vieram para sede do município pedir as autoridades de Milagres as necessárias providências. Fizeram um protesto contra os desmandos nas suas terras. A tensão tomou conta da Vila de Nossa Senhora dos Milagres (criada em 1846), pois a população convencida da suposta selvageria dos índios acreditava que eles estavam se preparando para atacar a cidade. Tal notícia do ataque era apenas mais uma ação da campanha difamatória local contra os indígenas aldeados, ele nunca foi de fato planejado, como relatou o diretor da aldeia. No entanto para se proteger e proteger suas roças os índios começaram a atacar o gado que estavam soltando nas suas terras.

Aliando-se ao delegado de Milagres, que era Jesus da Conceição Cunha, o fazendeiro José Inácio da Silva conseguiu reunir uma tropa de 72 jagunços e no dia 28 de abril de 1867, atacou de surpresa a Aldeia da Serra da Cachorra Morta. Foi um verdadeiro massacre. Aproveitando-se da ausência dos homens que tinham saído para uma caçada, os jagunços mataram crianças e mulheres, estupraram outras e conseguiram aprisionar o índio Mariano, que tinha sido deixado pelos outros para cuidar da comunidade. Levaram Mariano como prisioneiro para um local próximo da aldeia e o amarram esperando que seus companheiros viessem resgatá-lo.

Quando os outros indígenas se aproximavam para resgatar Mariano, eles eram imediatamente emboscados e executados pelos jagunços. Ao fim do ataque perpetrado pelo fazendeiro José Inácio de Sousa com a conivência das autoridades de Milagres, dezenas de índios tinham sido mortos e os sobreviventes tinham se dispersado nas matas da região. Nos dias que se seguiram o terror tomou conta da vila e os jagunços continuaram suas perseguições aos foragidos. Esse episódio lamentável da história de Milagres ficou conhecido na imprensa da época como Massacre da Serra da Cachorra Morta.

O juiz de Milagres e o delegado foram questionados pelas autoridades cearenses sobre o fato, mas alegaram que desconheciam o ataque, teria sido o mesmo, planejado pelos fazendeiros. O juiz Joaquim do Couto Cartaxo alegou que na ocasião estava gozando de férias na cidade do Crato, mas iria apurar o caso. Escreveu um longo relatório ao governo do Ceará, mas o caso foi logo esquecido, pois as autoridades cearenses logo informaram ao Ministério da Justiça do Império que não havia mais índios no Ceará.

O que aconteceu aos sobreviventes do massacre? Notícias da década de 1870 informam que muitos deles voltaram para as terras da aldeia e reconstruíram suas casas e refizeram suas plantações, mas as implacáveis perseguições continuaram, e em 1881 um grupo de 29 índios de Milagres, foi levado até a capital do Ceará para pedir proteção ao presidente da província (o governador), mas este não só não os escutou como mandou embarcá-los para a cidade de Aracati onde segundo a nota publicada no jornal O Cearense foram aldeados com outros índios da região. Aqueles índios que ficaram no Vale do Riacho dos Porcos perderam suas terras definitivamente na década de 1880 e acabaram sendo obrigados a se integrarem ao trabalho nas propriedades rurais locais.

Os descendentes desses últimos Kariris-Xocós do Ceará ainda estão entre nós. Para escapar as perseguições esses indígenas milagrenses esconderam suas identidades, mas podemos vê-los no cotidiano da cidade, nas áreas rurais do município. Os traços físicos, os hábitos, a cultura e a história dos Xocós fazem parte de Milagres, é a história de Milagres. Estamos precisando fazer um trabalho de emergência étnica no município. Em 2010 somente 3 pessoas se autodeclararam indígenas na cidade, isto mostra o quanto permanece aberta a ferida do Massacre da Serra da Cachorra Morta.

Dona Dionísia Severo, senhora de 87 anos que vive na comunidade Pau-dos-Ferros, é uma dessas descendentes dos índios Xocós de Milagres que se autodeclara indígena. Detentora de vastíssimos conhecimentos sobre ervas, sobre a mata, sobre a cultura do seu povo, ela é a memória viva da história indígena de Milagres. É uma das figuras mais impressionantes da cidade, sua história e sua vida são relatos maravilhosos sobre o destino de um povo que tentou se manter vivo, que procurou dar continuidade ao seu protagonismo na história do município de Milagres, mas que teve sua cultura e sua memória negadas pela população local, um povo que até agora permanece esquecido e vilipendiado pela sociedade de nossa querida cidade de Milagres.

Dona Dionísia e sua família no terreiro de sua residência,  seus saberes indígenas são parte do tesouro do Xocós ainda muito um Milagres.
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* Mestrando em História pela URCA e professor da E.E.M. Dona Antônia Lindalva de Morais (Brejo Santo, CE).

Um comentário:

  1. Minha familia paterna descende dos indigenas viviam em Riachão( jardim-mirim hoje) e gostei muito de encontrar esse post e saber da parenta Dionísia Severo... gostaria em contatar o responsavel pela pagina se for possível meu zap é 014997067587 gratidão🙏

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