Há cinco anos, a Câmara dos Deputados dava início à votação do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, por meio de um arranjo parlamentar que a levou à destituição da mandatária do cargo: 367 parlamentares votaram a favor do impedimento. Um deles, Jair Messias Bolsonaro, até então do Partido Social Cristão (PSC-RJ), dedicou seu voto à memória do torturador do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, e a um Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.
Cinco
anos após o fato político, o Brasil de Fato publica uma série de reportagens
acerca do tema, abordando o contexto da época e seus desdobramentos até os dias
de hoje. Veja, na coluna à direita, as reportagens já publicadas.
Com
os olhos passando do presente ao passado, se nota que o discurso, que chocou a
tantos naquele 17 de abril de 2016, bem como a construção do impeachment, não
surgiu do nada, mas foi um capítulo de uma rachadura exposta desde pelo menos
três anos antes, mais especificamente, a partir junho de 2013.
Do
MPL ao MBL
O
movimento das Jornadas de Junho começou como um protesto legítimo com pauta e
atores bastante delineados: contra o aumento da tarifa de ônibus e o Movimento
Passe Livre (MPL). Em alguns dias, de alguns milhares de pessoas na capital
paulista, após forte repressão policial, os protestos passaram a ocorrer aos
milhões de participantes por diversas cidades pelo país. Resultado: a pauta
definida em torno de uma demanda específica por determinado movimento foi por água
abaixo. Havia muita gente ali, mas pouca definição de seus motivos, com a pauta
contrária ao aumento da passagem deslocada para um segundo plano.
“Teve
um momento em que os protestos cresceram bastante. As duas últimas
manifestações antes da revogação do aumento da tarifa foram muito grandes,
centenas de milhares de pessoas, de não ver nem começo nem fim da manifestação,
indo em múltiplas direções. E, nesse momento em que a manifestação cresce a
esse nível, é evidente que a coesão entre os posicionamentos políticos de quem
está ali se perde em algum nível”, afirma Gabriela Dantas, militante do MPL e
que esteve presente nas manifestações de 2013.
Neste
mesmo momento, as demandas começaram a ir em outras direções, mais dispersas,
como de equipamentos públicos “padrão Fifa”. Ao mesmo tempo, surgiram grupos
ligados à direita, como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e Revoltados
Online, todos que, posteriormente, vieram a apoiar o impeachment de Rousseff.
“É
evidente que setores mais próximos das elites, mais à direita, vão tentar
buscar usar também esses instrumentos e recursos [das manifestações], com a
diferença de que eles estavam do lado dominante e a gente não estava. Então,
eles tinham toda uma estrutura para fazer isso com financiamento de grandes
empresas que não é a mesma estrutura de um movimento social horizontal e
autônomo, como o MPL", explica Dantas.
Naquele
momento, pesquisas indicavam que a popularidade da presidente petista, que
havia atingido um recorde de 79% em março daquele ano, após as manifestações,
caira para 31%. Em agosto de 2015, desceu a 8% e a crise aumentou.
“Crise de hegemonia”
De
certa maneira, essa explosão das ruas levou a uma reconfiguração das forças
políticas, tanto na rua, quanto as partidárias, no Congresso Nacional. Para
Tathiana Chicarino, cientista política e professora da Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), “tem uma fragmentação dos grupos
que de alguma maneira apoiaram e votaram nos governos do PT”, afirma Chicarino.
“A coalizão do governo petista sofreu abalos muito graves em decorrência das
Jornadas de Junho.”
Um
ano depois, os mesmos setores que surfaram a onda das Jornadas de Junho não
aceitaram o resultado das eleições presidenciais de 2014, que elegeu novamente
Rousseff.
“Em
2014, tivemos uma eleição super difícil, com discurso de ódio já aparecendo
ali. No dia seguinte já começa a ter o MBL, Revoltados Online e Vem Pra Rua
chamando para o impeachment da Dilma. O resultado das eleições não foi
suficiente para abafar toda essa contestação que tinham ali, uma contestação
golpista. Houve um golpe parlamentar na medida em que se sequestrou a soberania
popular que vem através do voto, e o crime de responsabilidade foi construído”,
argumenta Chicarino.
Da direita à extrema-direita
De
acordo com a pesquisadora, 2013 revela dois aspectos da direita que foram se
exacerbando até desembocarem na emergência de uma extrema-direita. Um é o
aspecto contrário às políticas afirmativas construídas pelos governos petistas,
como a implementação de cotas raciais nas universidades e o Programa Bolsa
Família. Do outro lado, um aspecto contrário às questões de raça, gênero e
sexualidade que começaram a ser levantadas justamente neste período.
Esses
aspectos vão aglutinar dois setores da direita: os conservadores e os liberais,
proporcionando a ascensão da extrema-direita, e que é extrema porque está fora
do que seria condizente com uma disputa democrática, explica a docente. “Tem
uma direita que sempre existiu no Brasil, no Congresso Nacional”, como é o
exemplo mesmo de Jair Bolsonaro, “mas que por conta do processo de
redemocratização nunca tiveram protagonismo”.
Com
a fissura aberta pelo tamanho da obscuridade que alcançou as Jornadas de Junho,
o PT atacado nas ruas e no Congresso Nacional e a ascensão de uma direita
autoritária, o campo ficou exposto. De lá pra cá, passando pelas eleições
presidenciais de 2014 e o impeachment de 2016, o slogan “Meu partido é o
Brasil” transformado pela equipe de Jair Bolsonaro em “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos”, em uma simbologia que pode ser interpretada como a
supressão dos partidos políticos, instrumentos intrínsecos ao jogo democrático,
e a ausência de diferenças. “Ali já havia um pouco desse germe de contestar a
própria democracia.”
Ausência de tradição democrática
Especialistas
apontam que junho de 2013 pode ser lido como um dos fatores para a ascensão da
extrema-direita, mas não somente o único. Soma-se, ao contrário, a esta conta a
ausência de tradição democrática no Brasil, que reflete na forma como as normas
são ou deixam de ser aplicadas. Afinal, uma democracia é formada por normas,
regras e pessoas, na linha de estudo da professora Chicarino.
“A
gente não podia ter aceitado determinadas coisas como sociedade, por exemplo, o
voto do Bolsonaro durante o impeachment. Isso não poderia ter sido aceito,
porque é uma afronta à democracia, como instituição e valor. Isso foi
aparecendo e sendo legitimado”, afirma a docente e relaciona o episódio ao viés
autoritário do histórico brasileiro, visto que o país passou a maior parte de
sua história fora da democracia, que permeia as instituições.
A
professora afirma que no Brasil se vive em uma estrutura pendular: ora mais
democracia, ora mais autoritarismo. “Mas de fato o que a gente pensa de uma
democracia instrumental, que é de ter normas e instituições, e substantiva,
forte em relação a valores, a gente nunca teve no Brasil.”
Nem só de extrema-direita vive Junho de
2013
Tanto
Dantas como Chicarino reforçam, no entanto, que é impossível ligar Junho de
2013 somente à ascensão da extrema-direita. A partir das manifestações, foram
diversos os rumos.
“A
gente sempre gosta de lembrar que junho não é uma coisa única. Junho trouxe
para gente diversos movimentos, coletivos e organizações, novas ferramentas políticas.
A gente pode ver reflexos disso nas ocupações de escolas por secundaristas em
2015 e 2016, por exemplo. A gente pode ver reflexo disso na greve dos garis que
aconteceu no Rio de Janeiro. No aumento das ocupações de moradia. Uma série de
outras lutas que já existiam há muito tempo, mas que foram impulsionadas por
esse momento de explosão social”, afirma a militante do MPL Gabriela Dantas.
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Por Caroline Oliveira, no Brasil de Fato
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