(Foto: Reprodução do kit A Cor da Cultura). |
A
professora de Geografia da rede municipal de Macaé, município do Rio de
Janeiro, Sabrina Luz, foi denunciada pelo pai de um estudante por exibir um
filme sobre a cultura negra em sala de aula.
No
vídeo que a docente veiculou em suas redes sociais, ela explica o porquê da
escolha do filme Besouro, que conta a história do capoeirista baiano Manuel
Henrique Pereira, conhecido como ‘Besouro Mangangá’, na década de 20. “O filme mostra a resistência negra [embora a
abolição da escravatura tivesse ocorrido décadas antes, os negros continuavam a
ser tratados como escravos], a capoeira, a umbanda e o candomblé como parte
dessa resistência”, coloca.
Ainda
que o teor da denúncia não tenha sido divulgado, a professora acredita que ela
tenha sido motivada por intolerância religiosa, ao que complementa. “A escola pública é laica, todos os alunos de
todas as religiões cabem dentro dela”. A professora também comenta que 70%
dos alunos que seguem as religiões de matriz africana evadem das escolas por
preconceito. “O racismo é crime e nós
professores temos que ensinar no cotidiano como foi a escravidão, mostrar a
resistência do povo negro e a sua história”.
Em
nota, a Prefeitura de Macaé informou que não abrirá processo contra a
professora. A decisão é pautada pela lei. A prática de Sabrina Luz se ancora na
legislação 10.639/2003 que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira nos currículos das redes de ensino e na lei 10.645 que trata da
obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Sabrina,
no entanto, não é a única a esbarrar em dificuldades para cumprir o a lei. Em
março deste ano veio à tona um caso envolvendo o Sesi Volta Redonda (RJ), que
chegou a abolir da grade de livros didáticos a obra Omo-Oba: Histórias de
Princesas, da autora Kiusam de Oliveira, devido ao questionamento de alguns
pais quanto ao conteúdo.
A
instituição voltou atrás assumindo o “equívoco”
e informando que a obra não seria mais substituída depois que alguns familiares
protestaram contra a decisão nas redes sociais. A mãe de um aluno, Juliana
Pereira de Carvalho, viralizou seu post com mais de 6 mil compartilhamentos: “acredito ser de fundamental importância que
a equipe pedagógica esclareça esses pais. Não falo apenas pelos meus filhos
negros, mas para além da necessidade imediata da visibilidade afro-descendente,
precisamos formar pessoas que se sensibilizem e busquem uma sociedade mais
justa”, defendeu.
Raio-X da intolerância
No
Rio de Janeiro, os casos de intolerância religiosa trilham uma curva
ascendente, como mostram os registros da Secretaria de Estado de Direitos
Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI). Os dados apontam um
aumento de 56% nos casos em comparação com o primeiro trimestre de 2017 e com o
mesmo período deste ano: entre janeiro e abril do ano passado foram 16
denúncias; este ano, no mesmo intervalo de tempo, 25. Somando as denúncias de
2017 até abril deste ano há 112 casos registrados.
O
Rio de Janeiro concentra os maiores índices deste tipo de crime, 55%, seguido
por Nova Iguaçu, 12,5% e Duque de Caxias, 5,3%. O tipo de violência mais
praticada é a discriminação com 32%, depredação de lugares ou imagens 20% e
difamação 10,8%. As religiões como Candomblé, Umbanda e outras de matrizes
africanas lideram o índice de denúncias: candomblé, 30%, umbanda, 22% e as
demais, 15%.
Sensibilização e formação
Embora
reconheçam avanços desde o início da Lei 10.639, inclusive no sentido de pautar
outros dispositivos sobre a cultura afro-brasileira, especialistas na temática
reconhecem barreiras que ainda precisam ser superadas para sua total
efetivação.
O
sociólogo e professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Leonardo Borges
da Cruz, fala em falta de sistematização. “Nas
escolas municipais, estaduais e particulares, o cumprimento da Lei ainda fica
muito a cargo de um sujeito ou outro que resolve comprar a causa. Muitas vezes
o professor se sensibiliza pelo tema ou por ser negro ou por ter tido contato
com o tema em algum momento”, avalia o profissional que também é
colaborador do projeto educacional ENEMEX.
Ainda
assim, nem sempre as práticas em sala de aula são corroboradas pela gestão
escolar, como observa a pesquisadora Paola Prandini, co-fundadora da
Afroeducação, instituição que pensa estratégias para a equidade racial
brasileira. “Ainda são vários os casos de
gestores, diretores e coordenadores não
preparados que, dentro de uma lógica de racismo institucional, invalidam
ou bloqueiam as possibilidades dos docentes”, conta.
Prandini
também cita como ponto nevrálgico da questão as famílias. “Temos um número muito grande de evangélicos neopentecostais que
infelizmente entendem que trabalhar a cultura negra é trabalhar somente as
religiões de matriz africana, não entendem a religião enquanto componente
cultural”, acrescenta.
Por
essa razão, os especialistas entendem ser fundamentais estratégias de
sensibilização e formação efetivas. Em São Paulo, a rede municipal de ensino
aposta na educomunicação. “A ideia é
superar a visão tradicional sobre a lei, de uma educação formal ultrapassada. O
nosso trabalho é a partir das mídias, com possibilidades de trabalhar o cinema,
o rádio, o jornal. Isso tem colaborado para que os professores se sintam mais
seguros para a aplicação da lei”, comenta Paola Prandini, que atua como
consultora da rede.
No
Estado do Rio de Janeiro, a SEDHMI firmou um termo de cooperação técnica com
secretaria de educação para inclusão do tema no currículo estadual, com apoio
de uma cartilha e um curso a distância para os profissionais das escolas. “É importante para que professores,
coordenadores, diretores e familiares entendam o propósito da Lei”, afirma
o membro da SEDHMI e presidente do Conselho Estadual de Defesa e Promoção da
Liberdade Religiosa, Marcio D’Jagun.
Outras narrativas
O
trabalho com a cultura e história afro-brasileira traz para as escolas a
possibilidade de construir narrativas contra-hegemônicas. “É uma possibilidade para que a população negra, maioria em nosso País,
tenha sua autoestima valorizada, sua representatividade legitimada e para que
possamos trazer outros lugares de fala que não seja o do homem, branco,
heterossexual, rico, cisgênero, que é quem está no poder”, pondera Paola.
Cruz
também fala da necessidade de descolonizar o pensamento. “Do ponto de vista da nossa epistemologia, da nossa formação de
conhecimento, do auto entendimento, somos muito colonizados. Eu estudei um
sociólogo, Alberto Guerreiro Ramos, que tem um texto chamado “A Patologia Social do Branco Brasileiro” que
diz que o branco brasileiro acha que é o branco europeu, mas só aqui ele é
entendido assim, ao sair do País ele é visto como latino. É um problema de auto
estimação e é a partir dele que se mantem as hierarquias raciais”, analisa
o sociólogo.
“É nesse sentido que leis como a 10.639
11.645 contribuem. No sentido de abrir um espaço legítimo no ambiente escolar
para que possamos estudar aquilo que não foi até hoje. Nós ainda não sabemos
quem somos“. (Com informações de Carta Educação).
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