Com recursos próprios, organizadores mandaram rodar uma pequena tiragem de 200 exemplares. (Foto: Wanezza Soares). |
Trata-se
de um manifesto político, talvez o mais extenso documento produzido por
escritores num período de exceção democrática. Não há notícia de um precedente
com tamanha capacidade de arregimentação (mesmo os grandes manifestos
literários tinham embocadura mais modesta).
Em
184 páginas, 86 escritores e cartunistas brasileiros de todas as regiões se
apresentaram para a empreitada de reivindicar o restabelecimento da democracia
no Brasil e a liberdade do único preso político do País, Lula. Suas armas:
textos inéditos ou não (poemas, crônicas, cartas, manifestos), cartuns, fotos,
discursos e haicais, entre outros estandartes.
Segundo
os organizadores do livro Lula Livre/Lula Livro, Ademir Assunção (Prêmio Jabuti
de 2013 com A Voz do Ventríloquo) e Marcelino Freire (Prêmio Jabuti de 2006,
com Contos Negreiros, e Prêmio Machado de Assis de 2014, com Nossos Ossos), a
publicação manifesta o inconformismo dos autores com o processo que aprisionou
Lula, virtual novo presidente da República, um processo “travestido com togas
cheias de furos e remendos, simulação grosseira dos ritos legais que deveriam
nortear a Justiça” e que “obedece a princípios e a um calendário com objetivo
calculado: eliminar da disputa presidencial de 2018 o candidato com mais
chances de vitória”.
Em
face da urgência da situação, o livro foi produzido em poucas semanas, uma ação
de guerrilha intelectual que foi buscando (e encontrando com relativa
facilidade) seus voluntários. O espraiamento também será feito em uma ação de
guerrilha.
Com
recursos próprios, os organizadores mandaram rodar uma pequena tiragem (200
exemplares) para fazer um pré-lançamento em 28 de julho na Casa Paratodos, no
circuito Off Flip, para divulgar seu ato político à imprensa nacional e
internacional que estará em Paraty para a feira literária global.
Há
propostas de edições e distribuição em todo o País, como a da Fundação Perseu
Abramo, em São Paulo, e o acampamento Marisa Letícia, em Curitiba. E o volume,
que não tem fins lucrativos, será enviado para todos os cantos que abriguem seu
ato de desagravo político. O preço nunca poderá exceder 10 reais.
Com
87 anos, o poeta, tradutor, ensaísta e crítico de literatura Augusto de Campos,
epígono do concretismo (Prêmio Pablo Neruda em 2015) enviou poemas gráficos
para reforçar a coletânea, em seu estilo inconfundível: “A poesia mallarmaica/ a câmara anecoica/ a
grande mídia farisaica/ a classe média mesozoica/ a justiça paranaica/ a
resistência heroica”.
Os
poetas, por sinal, foram os que demonstraram maior disposição para o combate.
Bernardo Vilhena fala dos “juízes sem juízo”. Chacal anseia que o Brasil “se
redilma”. Em textos vigorosos, autores buscam conexões históricas e as
fundações da democracia para restabelecer seu foco criativo.
Afonso
Henriques Neto exuma os despojos dos revoltosos mineiros no Museu da
Inconfidência de Ouro Preto. “Na outra sala, defronte à forca, Maria Doroteia
de Seixas recita sem lábios/ pesadelos de Marília para Bárbara Heliodora.”
Há
desde a verve desbocada de Aldir Blanc (“Enquanto Temereca, Elizeu Quadrilha,
Moreira Angorá, os bandidos todos, FHC pedindo ‘o de sempre’ ao Odebrecht, a
justi$a, que deixou escapar Aócio, o Mineirinho, não merece crédito” até o
exercício de rigor de Alice Ruiz (“Um Demônio ao Meio-Dia. Sem seu próprio Deus
dentro”).
Não
são todos textos monotemáticos, apesar da disposição política circunstancial.
Também não são todos criados pela convocação: o escritor Raduan Nassar pediu
que fosse reproduzido o discurso que proferiu ao receber o Prêmio Camões, em 17
de fevereiro de 2017, ocasião em que foi admoestado pelo ministro da Cultura do
golpe na ocasião, Roberto Freire. Nassar foi considerado pela revista The New
Yorker, no ano passado, como o “maior escritor brasileiro vivo”.
O
discurso de Raduan é pesado, um cruzado de esquerda, identificando a ação
política de elementos da repressão, como o ex-ministro da Justiça Alexandre de
Moraes (guindado a posto no Supremo Tribunal Federal por obra do golpe). “Mesmo de exceção, o governo que está aí foi
posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo
Tribunal Federal”, falou.
Chico
Buarque escreveu um texto (leia no fim da matéria) em que escancara a “normalidade” do preconceito e do pacto
das elites em torno de uma eternização da submissão dos mais pobres. Alberto
Lins Caldas relacionou escravidão e opressão: “Todos inda num navio negreiro • comandado por um capitão • q manda todo
dia q joguem ao mar • negros bichas mulheres pobres • pra alimentar tubarões”.
O peso e a velocidade do hip-hop comparecem com os versos do poeta do Capão,
Ferréz: “Escritor não faz diz/mete o
peito logo no artista bom moço limitado/bom artista morre de fome mas não lambe
bota do estado”.
Para
não ser cabotino, este repórter deve tornar claro ao leitor que também foi
convidado a integrar a coletânea com um texto publicado há um mês, no qual
agradeço a declarada leitura do ex-presidente Lula, durante seu período numa
cela, de livro que produzi.
Lula
Livre/Lula Livro, dizem seus organizadores, nasceu de uma necessidade de se
afirmar, em face do regime de sequestro jurídico da noção de Justiça que se
vive no Brasil da atualidade, a voz da dissonância. A liberdade de se dizer o
que pensa e lutar pelo que se acredita.
Apesar
das tentativas de intimidação da extrema-direita, esses esforços se
multiplicam: neste sábado 28, nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, a partir
das 14 horas, será realizado o Festival Lula Livre, que reúne os artistas
Gilberto Gil, MC Carol, Flavio Renegado, Maria Gadú, Francisco El Hombre,
Filipe Catto, Ana Cañas, Odair José, Jards Macalé, Beth Carvalho, Chico Buarque
e mais de 40 nomes de todo o Brasil em um uníssono pela libertação de Lula.
Realizados
como iniciativas espontâneas, de graça, esses esforços passam quase incólumes
pela grande imprensa, concentrada no esforço de construir a sua própria
realidade conveniente.
Lula
Livro é o volume de um livro sem fins lucrativos, mas com inequívocos fins
civilizatórios. Como disse o objeto central do livro, Lula, em artigo recente,
é uma espécie de “afasta de mim esse
cale-se”.
Lula, por Chico Buarque
— Eu nunca tive nada contra o Lula.
Eu inclusive estive com ele naquela casa lá de pobre em São Bernardo. Depois eu
e a Ruth convidamos o Lula para passar um fim de semana em Ubatuba com a
Marisa. Aí ele reclamou que não tinha água quente no chuveiro da casa. Imagina!
O Lula!
Era o Fernando Henrique, sempre
simpático, em reunião com artistas às vésperas das eleições de 1994. Naquele
tempo ainda se podia achar graça numa anedota assim. Era um deboche, era um
comentário preconceituoso, mas não havia um pingo de ódio naquelas palavras.
Lula ainda não era o chefe de
organização criminosa, o ladrão, o comunista, o cachaceiro, o nine, o boneco
vestido de presidiário enforcado ao lado de Dilma num viaduto de São Paulo.
Ainda não tinha sido condenado sem provas, por imprensa, televisão,
procuradores esquisitões e juízes deslumbrados, como proprietário de um
triplex, ou tríplex, no Guarujá.
O ódio ao Lula é o ódio aos pobres.
Tivesse ele imóveis na praia e dinheiro no exterior, talvez fosse mais bem
tratado pelas autoridades que o trancaram e o mantêm isolado numa cela da
Polícia Federal. Lá de dentro ele mandou dizer que já não confia na Justiça.
Nem eu. Só espero que ele tenha água quente em Curitiba.
(Com informações de CartaCapital).
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