Campo progressista também contribuiu para a "bolsonarização" da política ao relegar o debate da segurança pública. (Foto: Gilmar Félix/ Câmara dos Deputados). |
O
crescimento da extrema-direita antissistema e anti-globalização é um movimento
global que já se materializou na vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos,
na campanha do Brexit, que culminou com a saída do Reino Unido da União
Europeia, ou ainda no crescimento de partidos que impunham a bandeira de
combate à imigração em países como França, Alemanha e Itália, além de triunfos
em outras partes do continente.
No
Brasil, parte da população que se identifica com tais anseios autoritários
acredita que a sociedade atual vive numa "bagunça generalizada" na qual imperam a insegurança e a
corrupção, e se alinham à candidatura de Jair Bolsonaro (PSL). Hoje, ele é o
segundo colocado na preferência do eleitor, atrás apenas da candidatura do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
É,
portanto, um fenômeno social que não pode mais ser ignorado, e merece ser
entendido e estudado. Essa é a constatação da professora de Relações
Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Esther Solano,
que tem realizado pesquisas de campo sobre os movimentos políticos de direita
que passaram a disputar as ruas e as redes sociais brasileiras nos últimos
anos.
Ela
diz que esses movimentos de extrema-direita, no Brasil e no mundo, são tratados
como "caricaturas", que
revelam a dificuldade que o campo progressista, e até mesmo intelectuais, têm
para se aproximar desse fenômeno. Trump e Brexit não eram considerados como
opções críveis, até de fato ocorrerem.
Para
entender o crescimento da "bolsonarização"
da política e do avanço dos extremismos no Brasil, ela organizou uma série de
"entrevistas em profundidade"
com simpatizantes do candidato, que já insinuou estupro a uma deputada e
ofendeu negros e homossexuais.
Ordem e antipolítica
Dentre
os entrevistados, de perfis socioeconômicos bastante heterogêneos, "a questão número um é que as pessoas dizem
votar no Bolsonaro porque querem ordem", aponta a professora, que
apresentou os resultados da pesquisa Crise da democracia e extremismos de
direita nesta terça-feira (3), em São Paulo.
Segundo
ela, a ideia de "ordem"
almejada por essa parcela do eleitorado não é apenas a da militarização e do
combate à violência, mas uma "ordem
existencial", de pessoas que não entendem plenamente as transformações
tecnológicas, econômicas e sociais ocorridas nos últimos anos, e se ressentem
de um lugar social anterior, e que foi perdido.
O
fortalecimento do discurso de inclusão social e maior organização de grupos que
lutam por direitos, como os movimentos negro, feminista e LGBT nas últimas
décadas, causaram uma "reorganização
no campo cultural e na esfera pública", que faz com que uma pessoa
conservadora de direita se sinta perdida. "A pessoa não consegue enxergar esse mundo novo, não sabe muito bem o
que fazer, e quer a volta de uma ordem existencial na qual ela se sentia muito
mais à vontade", ressalta a professora.
O
radicalismo de direita ganha, portanto, ares de "reação virulenta". Esther diz que esse discurso autoritário
também cresce na esteira de "vácuos"
deixados pelo campo progressista nos temas relativos ao combate à violência e à
corrupção. "Refiro-me
fundamentalmente a questões como segurança pública, tradicionalmente deixada de lado pela
esquerda brasileira, e a corrupção, que também se deixou monopolizar por uma
direita moralista, hiper punitiva e populista. A extrema-direita se fortalece
exatamente nesses vácuos políticos que a esquerda não soube ou não quis
administrar politicamente", anota Esther.
Além
da reação em favor da ordem, da autoridade e do reforço das hierarquias
sociais, outro componente importante é a crise de representação e o crescimento
da antipolítica. Nesse quesito, Esther diz que a Operação Lava Jato teve
fundamental contribuição, por se basear na "espetacularização midiática" e no "Direito Penal do Inimigo". "A ideia que o corrupto é inimigo, e contra o inimigo não tem Direito,
mas basicamente perseguição. A Lava Jato é uma operação absolutamente
teatralizada. Tudo isso tem como consequência o aumento do sentimento
antipolítico."
Ela
diz que os movimentos que saíram às ruas para defender o golpe do impeachment
também migraram, gradualmente, de uma posição antipetista para uma postura
antipolítica. Se no início os grupos se aglutinavam no slogan "Fora PT", aos poucos, a palavra de
ordem se tornou "prendam todos",
também por influência do punitivismo perseguidor exalado de Curitiba.
Memes de ódio
O
"mérito" dos grupos de
extrema-direita foi substituir as formas "duras" dos lemas e
discursos de outros tempos por formas mais assimiláveis com memes e vídeos
sintonizados com a linguagem de internet, mas que preservam o mesmo conteúdo
xenófobo, misógino e de combate ao diferente, contribuindo para a banalização
do discurso de ódio, principalmente entre os mais jovens. Outra questão,
segundo Esther, que garante a adesão de parcela da juventude é o fato de terem
crescido nos anos em que a esquerda estava no poder.
"Se nos anos 1970 ser rebelde era ser de
esquerda, agora, para muitos destes jovens, é votar nesta nova direita, que se
apresenta de uma forma cool, disfarçando seu discurso de ódio em formas de
memes e de vídeos divertidos", constata a pesquisadora. Quando
confrontados com o teor preconceituoso dos discursos de Bolsonaro, alegam que
se trata de um exagero, fruto de uma perseguição por parte da imprensa, que
estaria alinhada às velhas estruturas de poder.
A meritocracia
Outra
ideia comum entre os entrevistados, segundo a professora, é uma concepção
absolutamente individualista, de valorização do esforço individual como forma
de alcançar o sucesso. Por isso, repudiam políticas sociais como o Bolsa
Família e as cotas para negros em universidades, pois, segundo eles, esses
mecanismos de inclusão fariam com que outros "furassem a fila" da meritocracia.
Segundo
a professora, muitos apoiadores de Bolsonaro dizem ter votado em Lula nas
eleições passadas, pois este também era visto como o político "diferente", "carismático" que falava a língua do
povo. A ironia é que os que rejeitam Lula o fazem após terem ascendido
socialmente, não se identificam mais como pobres, mas como pertencentes à nova
classe média. (Com informações da RBA).
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