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Fato mesmo é que o "povo brasileiro", o povão mesmo, ainda não foi as ruas tomar partido nos conflitos que desde 2013 desestabilizam a cena política nacional. (Foto: Mídia Ninja). |
Temos
aí aquele tipo de palavrinha bonita, que não tem como ter conotação negativa. A
resistência é sempre bem-vinda, cercada de certo romantismo. É na resistência
que nascem os heróis. “Estar na
resistência” é sempre visto como algo positivo, seja a “resistência” comandada pela princesa
Leia, a resistência francesa de De Gaulle ou a resistência de Mandela e Malcon
X.
É
sobre a tal resistência que escrevo, com interesse específico na resistência à
brasileira em tempos de golpe. Temos aqui aquele tipo de assunto meio casca de
banana, que faz muita gente boa escorregar.
Os
intelectuais progressistas costumam cometer dois erros graves sempre que falam
sobre “resistência”. Os erros apontam
para duas interpretações opostas do fenômeno que possuem a mesma origem: a
colonização intelectual, o que na prática nada mais é do que a tentativa de
interpretar a realidade brasileira com ideias que foram produzidas em função de
outras realidades.
Em
síntese os erros são:
1)
Diante da ausência de resistência direta, alguns endossam a velha tese da
apatia popular. O povo brasileiro seria passivo, indolente, preguiçoso e pouco
dado ao ativismo político. Temos aqui um caso patológico de colonização
intelectual, pois o modelo de “resistência” é dado pela história das sociedades
europeias, pela organização da sociedade civil em partidos políticos,
sindicatos, pela ação direta do “povo” nas ruas, pressionando o poder público.
Como
o povo não atende ao chamado, a tese da apatia popular surge quase como a
consequência lógica de uma expectativa frustrada. Ah, as expectativas, sempre
inimigas da análise.
2)
Do outro lado, estão aqueles que negando a tese da apatia popular acabam
idealizando as ruas, estando sempre à espera da acontecença da revolução.
Qualquer movimentação popular nas ruas se torna a antecipação do futuro
revolucionário, ainda que seja carnaval ou jogo do Flamengo. Também aqui há
colonização intelectual, mas pelo caminho inverso: como o modelo de resistência
popular ainda é o europeu, a tentativa, por vezes desesperada, é aplicá-lo ao
Brasil, forçando a realidade a se enquadrar na categoria que já está dada.
Pra
escapar dos dois escorregões, meu objetivo aqui é pensar a resistência nos
termos que me parecem adequados à experiência brasileira e pra isso lanço mão
de uma categoria fundamental: “imaginário”.
Vários
estudiosos da sociedade já utilizaram o conceito imaginário nas suas reflexões.
Entre todos esses usos, a definição proposta pelo filósofo grego Cornelius
Castoriadis (1922-1997) é que mais me inspira no esforço de interpretar o
Brasil contemporâneo. É claro que Castoriadis não estava estudando a realidade
brasileira e por isso a reflexão que ele propõe serve como inspiração e não
como um modelo rígido a ser aplicado no Brasil.
Em
resumo, Castoriadis define o imaginário como uma forma de pensar distribuída
socialmente e formada por ideias que “já estão aí há muito tempo”. Essas
ideias, por diversos motivos, “funcionaram e funcionam na sociedade”, ganharam
adesão popular e passaram a configurar o pensamento das pessoas.
Ao
menos na minha avaliação, a resistência à brasileira nestes tempos de golpe
está no plano do imaginário e vem se mostrando a única força capaz de retardar
o desmonte do Estado brasileiro. Não é porque o povo não está nas ruas,
participando dos atos que organizamos com todo amor e carinho, que ele está
apático.
E
não, não adianta dizer que MTST, MST, CUT, UNE que estavam nas ruas defendendo
Dilma e que estão nas ruas defendendo Lula, dão conta daquilo que é o “povo
brasileiro”. São movimentos sociais organizados importantes, fundamentais para
o nosso experimento democrático, mas possuem capacidade de mobilização bastante
reduzida. Isso não é culpa dos dirigentes desses movimentos.
Vivemos
hoje, no Brasil e no mundo, tempos de desmobilização. As agendas coletivas não
mobilizam mais. As pessoas olham umas para as outras e enxergam mais diferenças
que semelhanças. Mas isso é assunto para outra reflexão.
Retomando
o fio…
Fato,
fato mesmo é que o “o povo brasileiro”, o povão mesmo, ainda não foi às ruas
tomar partido nos conflitos que desde 2013 desestabilizam a cena política
nacional. Nem os movimentos “coxinhas”, impulsionados pela mídia hegemônica e
por movimentos sociais como o MBL, e nem os atos convocados pelos movimentos
sociais tradicionais de esquerda foram capazes de mobilizar o “povão”, aquela
camada da sociedade que vive com salário mínimo. Até aqui, nas ruas, o conflito
foi travado entre frações da classe média.
O
povão, povão mesmo, até fez-se presente na cena dos conflitos, nas ruas,
vendendo cerveja, bandeiras vermelhas e bandeiras do Brasil, dependendo da
ocasião. De bobo, o povão não tem nada. E vejam que não se trata aqui de
apatia. Essas pessoas estão ocupadas sobrevivendo, plantando no almoço pra
colher na janta. Elas já apanham da polícia todos os dias. A galera não tá afim
de levar bala de borracha no lombo e gás de pimenta na cara.
Mas
isso não significa que o povão não esteja participando do jogo, pois o jogo não
é jogado apenas nas ruas, na ação política direta. O jogo é jogado também no
imaginário, e aqui o campo progressista está vencendo, vencendo de lavada, e
não é uma vitória pouco importante. Dois fatores apontam para essa vitória.
Fator
01) A sobrevivência política de Lula.
Lula
é alvo da maior perseguição midiática da história do Brasil. Os ataques da
mídia hegemônica às lideranças populares não são nenhuma novidade. Se nos
debruçarmos sobre o Brasil moderno, de 1930 pra cá, veremos a artilharia da
mídia hegemônica mirando em Getúlio, Jango, Arraes, Brizola, Dilma e no jovem
Lula. Quem não lembra daquele fatídico debate manipulado pela Globo em 1989?
Mas
o que está acontecendo com Lula desde 2013 é de uma intensidade singular. Os
operadores da grande mídia foram para o tudo ou nada e tomaram a destruição da
figura pública de Lula como grande objetivo. Mas Lula não morreu e todas as
pesquisas mostram que sua popularidade cresce a cada dia. Hoje, Lula partiria
pra corrida eleitoral com 30% das intenções de voto, assim, sem campanha. É
muita coisa.
É
que a manipulação midiática tem limites, meus amigos. Ao se tornar o alvo
predileto do golpe de Estado levado a cabo pela aliança entre a mídia
hegemônica e o judiciário, Lula tornou-se também o principal antagonista do
golpe. E como o golpe é neoliberal, tendo como objetivo o desmonte do Estado,
Lula encarnou a imagem do Estado provedor de direitos, que é o valor mais
importante no imaginário político brasileiro.
Desde
os anos 1930 que o Estado brasileiro tem essa função: prover direitos sociais
aos mais pobres, ainda que de forma autoritária, ainda que às custas dos
direitos civis e dos direitos políticos. Intuitivamente, a população mais
vulnerável entendeu que Michel Temer representa a desregulamentação, o ataque
ao Estado e que Lula personifica a função social do Estado.
Juntemos
isto à memória recente de que na “Era Lula” a vida estava melhor e entenderemos
a sobrevivência política de Lula, mesmo que muitos de seus potenciais eleitores
não estejam plenamente convencidos de sua inocência. Tem muita gente que vota
em Lula mesmo achando que ele seja corrupto.
Fator
02) A derrota do projeto da Reforma da Previdência.
A
Reforma da Previdência é projeto natimorto pela mesma razão que explica a sobrevivência
de Lula. Os parlamentares estão com medo de colocar sua assinatura em um
projeto que violenta aquele que é o princípio basilar do imaginário político
brasileiro: a definição do Estado como agente provedor de direitos sociais.
O
povão pode até não tá montando as charmosas barricada nas ruas que tanto
embalam os devaneios revolucionários da esquerda brasileira, mas ainda tem
título de eleitor, ainda vota e, ao que parece, o golpe não ousou (ou não foi
capaz) de alterar o calendário eleitoral.
O
que tentei fazer neste texto foi dizer algo simples, talvez até mesmo óbvio: a
resistência popular já está acontecendo, mas não na receita das sociedades
europeias. A resistência está acontecendo no plano do imaginário, nesse “já
está aí há muito tempo”. A resistência é conservadora, no sentido mais básico
do termo.
É
claro que o imaginário se transforma historicamente, não é fácil e não é
rápido, mas se transforma. É isso que a mídia hegemônica, representando os
interesses do neoliberalismo nacional e internacional, está tentando fazer.
Cada
vez que Gerson Camarotti tenta convencer os garçons brasileiros que a reforma
trabalhista irá lhes permitir fazer “trabalho intermitente” em mais de um
restaurante, é o imaginário quem está sendo atacado.
Sempre
que Fátima Bernardes traz no seu programa uma empreendedora negra que se
“libertou da opressão do patrão” abrindo seu próprio negócio, é a imagem da
cidadania se definindo pelo trabalho formal que está sendo atacada.
Cada
vez que no Fantástico, Lima Duarte e Fernanda Montenegro são representados como
símbolos da saúde laboral na terceira idade é a imagem da previdência social
pública que está sendo atacada.
Sim,
meus amigos, o imaginário também se transforma e as forças motoras do golpe
estão apostando todas as suas fichas nisso. Porém, as pesquisas sobre opinião
pública sugerem que esse esforço não está sendo eficaz. É que tá tendo
resistência. O povo brasileiro já está resistindo ao golpe, do seu jeito, nas
suas possibilidades. Se a resistência está aquém da expectativa é porque
problema está nas expectativas. (Por Rodrigo
Perez Oliveira, na Revista Fórum).
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