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Milagres em 1965. (FOTO | Arquivo do autor). |
Por
César Pereira, Colunista
Até
a década de 1970, a economia de Milagres estava alicerçada na
agricultura e na criação de gado. Uma boa parte das terras
cultivadas do município eram ocupadas pela cotonicultura, pois o
mercado do algodão estava aquecido no Ceará, além disso, havia
também uma importante produção de grãos, milho, feijão, arroz,
que eram destinados ao consumo local e regional.
Havia
outros cultivos com destaque na economia do município como a
cana-de-açúcar que abastecia os engenhos de rapadura do Sertão do
Cariri (microrregião onde se localiza Milagres e outros municípios
da banda oriental da Chapada do Araripe), e a mandioca tubérculo
utilizado na produção de farinha que compunha uma das bases da
alimentação das famílias pobres da região.
A
produção de rapadura é muito expressiva. Os engenhos locais
obtiveram a apreciável quantia de 1 383 200 quilogramas dêsse
produto que valeram mais de quatro milhões de cruzeiros, conforme
apurou o Departamento Estadual de Estatística, entre 1955 e 1965.
(Disponível
em:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)
A
mamona também era cultivada, e destinada a indústria de óleos
tanto no Cariri como em outras regiões do estado. Existia também a
produção de frutas que eram destinadas ao consumo da população
local ou ao comércio nas feiras livres e mercados do Cariri, da
Paraíba, Rio Grande do Norte ou Pernambuco.
De
acordo com a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros publicadas
pelo IBGE em 1966 Milagres era um:
Município
essencialmente agrícola, a maior parte da renda municipal provém da
agricultura, principalmente da cultura do algodão. Em 1955, a
produção atingiu 16 milhões de cruzeiros, obtidos pelos produtos a
seguir indicados: 68250 arrôbas de algodão (Cr$ 8190000,00); 16800
sacas - 60 kg - de feijão (:r$ 3 024 000,00); 18 200 toneladas de
cana-de-açúcar (Cr$ 2 275 000,00); 5 120 sacas - 60 kg - de arroz
(Cr$ 768 000,00); 5 280 sacas 60 kg- de milho (Cr$ 475 000,00); 1100
toneladas de mandioca-brava (Cr$ 330 000,00); 97 750 kg de mamona
(Cr$ 293 250,00); 3 450 centos de manga ... (Cr$ 172 500,00); 3 450
centos de laranja ...(Cr$ 172 500,00); 656 sacas- 60 kg- de fava
...(Cr$ 118 080,00); 7 800 cachos de banana (78 000,00); 308 centos
de côco-da-baía (Cr$ 36 960,00); 40 800 kg de Amendoim (Cr$ 48
800,00) (Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)
Ainda
segundo esta mesma publicação, 42% da população economicamente
ativa do município de 10 anos ou mais estava ocupada nas atividades
da agricultura, isto é, eram trabalhadores rurais dependentes da
terra e de seus produtos para garantir sua sobrevivência e de suas
famílias.
O
município possuía ainda alguns estabelecimentos industriais de
pequeno porte, geralmente fábricas de tijolos, casas de farinha e
engenhos de rapadura. Mas havia também uma indústria de
beneficiamento de algodão, a COLINS, companhia algodoeira
pertencente ao empresário Antenor Ferreira Lins, que fora prefeito
de Milagres em duas ocasiões. Este empresário comprava a produção
dos cotonicultores locais e de cidades vizinhas:
Os
principais ramos industriais são o beneficiamento de algodão,
fabricação de rapadura e farinha de mandioca. O estabelecimento
mais importante é a Usina Kolins, de beneficiamento de algodão. A
produção de tijolos, telhas e vasos de barro em geral, atinge
anualmente, Cr$ 250 000,00. (Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)
A
criação de gado concentrava-se principalmente nas propriedades dos
mais ricos, pois estes detinham as melhores pastagens e nas terras
ocupadas por suas propriedades estavam situadas as fontes de água
perenes do município, como o Riacho dos Porcos o principal rio do
Sertão do Cariri, rio este que irrigava as várzeas e é um dos mais
importantes afluentes do Rio Salgado. Assim as melhores áreas de
cultivo e pastagens estava nas mãos dos latifundiários, herdeiros
das famílias tradicionais do município e que concentravam em suas
mãos o poder político e econômico desde o século XIX.
A
riqueza descrita acima era apenas aparente, estava concentrada nas
mãos de uma minoria, a grande maioria do povo vivia na pobreza, era
refém das relações trabalhistas semi servis que eram comuns em
todo o Cariri cearense e na região Nordeste em geral. O lucro
produção agrícola e as riquezas auferidas pela pecuária estavam
nas mãos de um pequeno grupo de privilegiados que conseguiam acesso
aos créditos rurais pagos pelo governo federal ou recebiam subsídios
do governo estadual por meio de empréstimos no BEC (Banco do Estado
do Ceará).
Nessa
época a população de Milagres era de 18.669 pessoas segundo o
censo do IBGE realizado em 1970, desses habitantes 79,5% residiam na
zona rural, no entanto apesar de ter mais pessoas residindo no campo
a distribuição das terras era enormemente desigual, pois de acordo
com o censo agropecuário do mesmo ano havia em Milagres somente
1.521 proprietários rurais em posse de 220 km² das terras da área
total do município que era de 678 km², o que significa que
praticamente um terço dessas terras estava nas mãos de apenas 8,3%
da população.
Eram
esses proprietários que detinham as melhores terras, as várzeas, as
serras, os vales, as fontes de água, as fazendas de gado, as
plantações de algodão e cana-de açúcar que mandavam na política
local, eram eles que se elegiam prefeitos e vereadores, eram eles que
escolhiam quem deveria ocupar os cargos públicos dentro da
administração municipal, eram esses homens que compunham a pequena
elite local e assim controlavam os repasses do governo estadual e
federal para o município.
Sem
terras e residindo numa cidade com altíssima concentração de
poderes e renda aos trabalhadores de Milagres restava apenas
empregar-se nas propriedades dessa elite local para garantir sua
sobrevivência. Formavam assim a grande massa de moradores de favor,
trabalhadores alugados, meeiros, vaqueiros.
Nos
recenseamentos demográficos das décadas de 1950 e 1970, a
composição da população de Milagres é composta majoritariamente
por pessoas negras. Segundo esses dados 63,7% dos habitantes do
município se autodeclaram negros. No censo de 1980 a porcentagem de
negros na população se elevou para 64,75%, esses homens e mulheres
negros compunham as famílias de trabalhadores pobres, sem-terra,
analfabetos, indivíduos vivendo na linha da miséria ou abaixo
desta.
As
condições econômicas desses camponeses pobres e desses
trabalhadores negros de Milagres era precária. Formavam famílias
que viviam com baixíssima renda, pois os salários pagos estavam bem
abaixo daquilo que lhe seria necessário para uma vida econômica
estável. Os trabalhadores rurais ganhavam diárias ou semanadas,
apesar da Lei n° 5.889 de 08 de junho de 1973 determinar ao
empregador rural a obrigações trabalhistas para com seus empregados
rurais, os proprietários continuaram praticando as relações
trabalhistas servis que vinha do início do século XX.
Isso
acarretava graves problemas para os trabalhadores rurais e suas
famílias. A fome era um desses problemas, pois como os salários
eram baixos e a inflação alta esses trabalhadores não conseguiam
suprir nem as necessidades básicas de suas casas, assim a
desnutrição e a mortalidade infantil eram elevadas e o
analfabetismo atingia 81% da população.
Quando
a década de 1980 começou a ditadura civil-militar imposta ao país
no dia 31 de março de 1964 agonizava, o presidente-ditador era João
Batista de Figueiredo eleito pelo colégio eleitoral em 1979 ele
assumira governo do Brasil prometendo redemocratizá-lo nem que fosse
‘prendendo e arrebentando’.
Naquele
momento o país estava mergulhado numa crise econômica que começara
em 1974 e que iria se agravar ao longo dos seis anos de mandato do
último general presidente, essa crise atravessaria todo os anos de
1980 e adentraria o decênio seguinte.
Era
uma crise hiperinflacionária que corroía os salários dos
trabalhadores, provocava o aumento da pobreza, desemprego em massa e
condenava milhões de famílias a miséria, principalmente nos
municípios mais pobres do país onde seus efeitos eram agravados
pela concentração de terras nas mãos dos latifundiários e pelas
práticas políticas clientelistas.
A
crise tinha raízes no modelo econômico adotado pela ditadura,
modelo este que se sustentava no progressivo endividamento através
da contratação de empréstimos aos bancos internacionais e a
atração de investimentos estrangeiros por meio das multinacionais
que se instalavam nos grandes centros urbanos atraídas pelo baixo
custo da produção e a mão-de-obra barata garantidas pelo aparato
repressor do regime militar.
O
modelo mostrou-se extremamente concentrador de renda e milhões de
trabalhadores foram jogados na miséria, tanto no campo quanto nas
cidades. À medida que o governo investia vultosas somas de dinheiro
nas grandes obras estruturantes e as capitais das regiões Sul e
Sudeste recebiam a maior parte desses investimentos, as condições
de vida das famílias dos trabalhadores pobres de todo o país se
deteriorava, a miséria avançava no campo na periferia das áreas
metropolitanas.
Nas
duas décadas de vigência do regime militar no Brasil, Milagres era
um dos municípios mais pobres do Ceará e nessa cidade a crise
econômica se agravava ainda mais devido a concentração de terras
nas mãos de uma minoria, onde o clientelismo transformava a
administração pública municipal em propriedade do grupo mandante e
de seus apadrinhados.
Segundo
o sr. Francisco Ivan Rodrigues, 75 anos, funcionário público e
trabalhador rural em Milagres nas décadas de 1960 e 1980, o
clientelismo era uma prática comum nas sucessivas administrações
municipais. Na entrevista n° 3, realizada em 11 de julho de 2023,
ele afirma que ainda não mudou quase nada. Pois nos dias de hoje o
prefeito que entra “bota pra fora” (demite) “empregados”
(nomeados) do anterior.
O
Sr. Francisco Ivan Rodrigues diz na entrevista que os prefeitos de
Milagres nas décadas de 1970 e 1980 só empregavam no serviço
público pessoas ligadas ao seu grupo político:
Só
botava gente deles...fizeram um concurso uma vez e só passou quem o
prefeito quis. Pode olhar que ainda tem gente deles aí, na limpeza
em tudo. Já tão perto de se aposentar e nem trabalhar direito
trabalharam... Naquele tempo era nomeação. No tempo do prefeito
Gilvan Morais ele nomeava, mas quando entrava outro prefeito o
empregado saía. Prefeitura não paga bem. Naquele tempo nem pagava
direito. Outro prefeito que nomeou muito foi Edimilson Coelho, mas aí
quando deixou a prefeitura quem ele colocou lá saiu. Era assim. Todo
mundo já sabia. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de
2023).
Como
podemos perceber o meio utilizado para se conservar no poder era
empregar seus amigos, parentes, eleitores enquanto se estava no
comando da prefeitura, quem estava por baixo perdia as oportunidades,
mas aqueles que se mantivessem fiéis seriam recompensados e teriam
acesso aos serviços públicos disponíveis no município.
Ter
acesso aos bens e serviços municipais era difícil, pois eles se
encontravam nas mãos dos grupos mandantes, aqueles que se
apropriavam do poder no município e para nele se manter impediam que
adversários ou pessoas que não se rendessem ao seu sistema
clientelistas de apadrinhamentos tivessem acesso aos equipamentos
públicos de saúde, educação e até mesmo infraestrutura de
Milagres.
Esse
modelo de administração pública clientelista, fisiológica,
corrupta e autoritária era na prática uma representação local do
modelo adotado pelo governo do estado do Ceará e garantido pelos
generais de Brasília.
Durante
os anos do regime militar o Ceará ficou sob o mando de três grupos
oligárquicos liderados pelos coronéis do exército: Virgílio
Távora, Adauto Bezerra e César Cals. O Acordo
dos coronéis, firmado com o
aval dos generais-presidentes favoreceu a manutenção do projeto de
“modernização” conservadora iniciado na década de 1960.
A
concentração de poderes nas mãos desses chefes políticos
autoritários e defensores da tradição do mando oligárquico no
Ceará vai favorecer principalmente a burguesia que via nesses
coronéis os representantes e porta vozes de seus interesses
econômicos e políticos. Ao investir na construção de grandes
obras estruturantes nas cidades mais expressivas do estado e ao
incentivar através de concessão de empréstimos a industrialização
cearense, os coronéis mantiveram o apoio da classe média e dos
setores conservadores.
A
forte centralização política e o autoritarismo desses coronéis
garantiam a aparência de hegemonia de uma única força política no
estado. As divisões internas entre esses grupos de poder eram
harmonizadas através das trocas de favores, assim, eles impediam
grandes cisões internas que levassem a possibilidade de outros
grupos emergentes ameaçarem seu mando.
Assim,
para harmonizar seus interesses econômicos com a manutenção do
poder esses grupos transformaram a máquina pública cearense num
gabinete privado de negociações, pactos, acordos e reforço da sua
liderança local, regional e estadual.
Nos
municípios do interior do estado a preservação da ordem
oligárquica era condição fundamental para a manutenção do poder
desses coronéis e daqueles que queriam a conservação da estrutura
econômica e política liberal conservadora em suas mãos. Para
garantir que lideranças políticas não alinhadas com o projeto da
ditadura nem tampouco com os grupos que lhe davam apoio nos estados e
municípios os militares e sua base de sustentação lançaram mão
de vários instrumentos repressivos e centralizadores de poder.
Um
desses instrumentos foi a constituição de 1967, ela determinava que
a existência de apenas dois partidos políticos, a ARENA, (Aliança
Nacional Renovadora), o partido do governo, aquele que compunha sua
base de sustentação e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro),
que congregava a oposição consentida ao regime.
Na
ARENA se alinhavam os mais diversos interesses, mas o principal
interesse daqueles que se abrigavam no partido da ditadura era ficar
o mais próximo possível daqueles que controlavam o poder tanto no
estado quanto na federação. Desse modo, devido a interesses
particulares conflitantes ou de interesses de grupos oligárquicos
que ambicionavam o poder municipal para si, observa-se muitas vezes o
fracionamento da ARENA em ARENA I e ARENA II.
Dentro
do MDB, que era o partido da oposição consentida pela ditadura
também não diferente. Esta agremiação política reunia dentro de
si os mais diversos interesses políticos e econômicos. Nas cidades
do interior cearense se abrigavam dentro desta legenda dissidentes
das oligarquias no poder, grupos ou indivíduos que se sentiam
traídos ou não devidamente assistidos em seus interesses
particulares.
Isso
acontecia principalmente quando no mesmo município o partido não
conseguia equilibrar os interesses particulares dos diversos grupos
de poder reunidos dentro da legenda. Na impossibilidade de se lançar
como candidato da oposição consentida, ou não havendo nenhum
interesse do político local de se afirmar ideologicamente contra as
orientações políticas dos coronéis
em Fortaleza e dos generais em
Brasília ele se lançava como candidato adversário ao político
local, mas jamais contrário ao coronel-governador ou ao
general-presidente.
Também
o MDB a exemplo da ARENA dividia-se em vários blocos, dependendo
qual o interesse de poder estava por trás das filiações
partidárias poderia subdividir-se em MDB I, MDB II, e assim por
diante. Nas eleições de 1976 em Milagres por exemplo o Movimento
Democrático Brasileiro apresentou três candidatos a sucessão do
então prefeito Francisco Gilvan Morais, eleito em 1972 pela ARENA
com 1452 votos.
A
oposição fragmentada fortalecia a manutenção do poder nas mãos
das elites tradicionais cearenses, mas estar dentro do MDB ou
lançar-se candidato por este partido não era garantia de que o
político seria contrário ao projeto político dos “coronéis”
do Ceará.
Foi
por meio desse sistema eleitoral pulverizado em diversos interesses
particulares e oligárquicos que as eleições municipais realizadas
em Milagres no ano de 1970 deram vitória absoluta a ARENA. Nessas
eleições havia em Milagres 3.745 pessoas aptas a votar, (o voto
estava restrito aos alfabetizados maiores de 18 anos) o que significa
que 81% da população do município estava excluída do direito ao
voto. Desses eleitores aptos ao voto compareceram às urnas 2.494, e
abstiveram-se 1.251. Aqueles que foram votar deram vitória
esmagadora a ARENA, único partido a apresentar candidatos a prefeito
e vereador no município.
O
prefeito de Milagres eleito em 15 de novembro de 1970 foi o
farmacêutico Edmilson Coelho Pereira pelo partido ARENA, era membro
das importantes famílias da cidade, prático em medicina,
proprietário rural e de casa de comércio, representava os
interesses oligárquicos do coronel Adauto Bezerra chefe político
caririense e futuro governador do Ceará.
A
vitória de Edmilson Coelho Pereira foi seguida pela eleição de
outros seis vereadores, todos eles pertencentes a ARENA. Nas eleições
municipais de 1976, a Aliança Nacional Renovadora repetiria em
Milagres sua vitória, conseguindo eleger Elísio Leite Araújo
prefeito municipal com 3.122 votos. O MDB dividido em três blocos de
interesses lançou três candidatos e que foram derrotados pelas
lideranças arenistas de Milagres (Francisco Gilvan Morais, Edmilson
Coelho Pereira, candidato a vice-prefeito eleito e Elísio Leite
Araújo, prefeito eleito). Todas essas forças políticas do
município eram as legítimas representantes das continuidades
oligárquicas em Milagres e no Ceará.
Ao
longo da década de 1970 o comando político do município de
Milagres ficou nas mãos dos latifundiários e aliados dos “coronéis”
que governavam o Ceará. Tais lideranças políticas locais garantiam
a manutenção do poder oligárquico no estado através das relações
políticas clientelistas. Romper com o governo do estado seria um
suicídio político, pois os repassem de recursos para os municípios
estavam centralizados nas mãos do governo dos generais de Brasília
e dos “coronéis” que sustentavam a ordem oligárquica e
conservadora no estado do Ceará,
Na
prática as eleições municipais significavam apenas a alternância
de indivíduos com interesses políticos comuns a seu grupo
oligárquico e vinculados aos projetos conservadores das forças
hegemônicas no estado do Ceará ou na região do Cariri. Os
interesses da população em geral não eram levados em conta, o que
explica porque ainda nas últimas décadas do século XX os índices
de analfabetismo fossem tão altos em Milagres.
As
verbas repassadas para manter a máquina municipal funcionando
escoava-se no sumidouro dos apadrinhamentos políticos. Eram centenas
de afilhados dos prefeitos municipais, dos vereadores e de seus
aliados. Esses afilhados recebiam os empregos destinados ao município
pelo governo do estado, mas ao mesmo tempo dependendo do grau de
proximidade e parentesco com os chefes políticos do município
também levavam para dentro da administração municipal seus amigos
e parentes.
Toda
uma rede de clientelismos era construída para manter a ordem
oligárquica. O controle sobre as melhores terras e a água do
município garantia a hegemonia desses latifundiários e mantinha a
população pobre na miséria e sob o mando deles.
Em
1974, a cidade de Milagres contava apenas com um posto de saúde,
conhecido como posto de puericultura, este posto de atendimento e um
hospital maternidade eram os únicos equipamentos de saúde para
atender os trabalhadores pobres e suas famílias.
Essa
carência de serviços básico ocasionava os altos índices de
mortalidade infantil no município, pois segundo os dados do censo de
1980 era de 35,64% a quantidade de crianças que morriam antes de
completar cinco anos de idade em Milagres.
Outro
indicador da miséria e da completa falta de assistência por parte
do município aos filhos dos lavradores e trabalhadores pobres em
geral de Milagres aparece quando comparamos os números referentes a
quantidade de mulheres que tiveram filhos ao longo da década de 1970
com quantidade de crianças que nasceram mortas no mesmo período.
Apenas
dois oficiais práticos de farmácia e 1 dentista prestam assistência
aos milagrenses. Há duas farmácias na sede municipal. Está em
construção um prédio onde funcionará um posto médico.
(Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/bibliotecacatalogo?view=detalhes&id=26688)
Os
dados informados pelo IBGE demonstram que das 5.988 mulheres em idade
fértil de Milagres, 3.743 tiveram filhos entre 1971 e 1979, desses
partos 1.941 foram de natimortos o que resulta em 51,85% de crianças
nascidas mortas em uma década no município.
A
causa de tamanha mortalidade infantil pode ser explicada pela falta
total de acompanhamento da gestação da mulher, pois no município
não havia nenhuma política voltada para a população em geral. As
verbas destinadas para os cuidados da saúde do trabalhador e sua
família restringiam-se ao pagamento dos honorários de um único
médico que segundo o testemunho do sr. Francisco Ivan Rodrigues
atendia esporadicamente no hospital municipal Nossa Senhora dos
Milagres.
Somente
na década de 1980 haverá pelo menos dois médicos residindo na
cidade. Eram clínicos geral que realizavam consultas pagas, mas
poderiam também consultar os doentes caso recebessem uma ordem
(autorização) da prefeitura para atender ao paciente, outras vezes
atuavam como médicos “filantropos” que na época das eleições
cobravam dos seus pacientes os votos deles e de suas famílias.
Uma
prática bastante comum era realizar o transporte do doente ou pessoa
que quisesse uma consulta para as cidades próximas do Cariri, isto
é, Barbalha, Juazeiro do Norte, Crato, cidades onde havia hospitais
e onde os filhos e parentes médicos dos mandantes em Milagres
estabeleciam suas clínicas.
O
objetivo era fazer com que as pessoas ficassem reféns dos favores de
quem ocupava o poder municipal, desse modo lançar e manter os
trabalhadores e suas famílias na miséria funcionava como uma
importante estratégia política para angariar votos e se conservar
no poder em Milagres.
Essa
e outras práticas políticas oligárquicas garantiu que os chefetes
e chefes latifundiários se conservassem no poder ao longo de mais de
um século no município de Milagres. Os prefeitos eleitos ao longo
do século XX pertenciam aos grupos políticos oligárquicos
tradicionais do Sertão do Cariri. Homens ligados por laços de
parentesco entre si, por laços de interesses políticos e econômicos
comuns.
Os
números da pobreza em Milagres demonstram o quanto a elite local
oprimia os trabalhadores mantendo-os sujeitos aos mais baixos
estratos da sociedade. Tanto a população que vivia no campo quanto
aquela que se instalara na sede municipal vivia completamente
desassistida pelo governo.
O
Anuário Estatístico do Ceará publicado em 1972 descreve o
município de Milagres como possuindo 1 médico, 2 farmácias, 1
hospital maternidade, 1 unidade de saúde pertencente ao governo
estado, sem abastecimento de água, com uma arrecadação de Cr$
364.332,48, economia agrária, pois tinha bons solos para o plantio
de cultivos diversos.
Sem
dúvida um dos principais fatores que desencadeava a miséria do
trabalhador e suas famílias em Milagres era a concentração de
terras nas mãos de um pequeno grupo de latifundiários. Sendo um
município essencialmente agrário, com mais de 80% da sua população
vivendo na zona rural, a sobrevivência daqueles que não tinham a
terra se tornava difícil.
Enquanto
a elite latifundiária se revezava no poder, controlava a política
local por meio do clientelismo e usava a máquina pública do
município para concentrar mais ainda as riquezas em suas mãos, os
lavradores milagrenses viviam como podiam.
Se
empregavam nas terras desses latifundiários, aprendiam a negociar
com eles a sobrevivência e de suas famílias. Nessas negociações o
voto será um instrumento importante, principalmente a partir das
eleições de 1982 quando a volta do pluripartidarismo colocará os
interesses da elite local e estadual em blocos de disputas eleitorais
diversos.
REFERÊNCIAS
IBGE:
Enciclopédia dos municípios brasileiros, disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br
________Censo
demográfico de 1970 e 1980, disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br
IPECE:
Anuário estatístico do Ceará de 1972, disponível em:
http://memoria.org.br/pub/meb000000421/anuario1972ce/anuario1972ce.pdf
TRE-CE:
Ata do resultado das eleições de 1970, disponível em:
https://www.tre-ce.jus.br/eleicao/resultados
________Resultado
oficial das eleições anteriores a 1992, disponível em:
https://www.tre-ce.jus.br/eleicao/resultados