O
Corregedor-Geral de Justiça, Ministro João Otávio de Noronha, do Superior
Tribunal de Justiça, acaba de declarar, em tom jocoso, em evento acadêmico do
STJ sobre ativismo judicial, que “heterossexual
agora está virando minoria. Não tem mais direito nenhum” (sic!) e que, por
isso, heterossexuais precisariam “reivindicar
direitos” (sic!)[1].
É
desolador ver essa infeliz “brincadeira”,
pautada no mais profundo e genuíno simplismo acrítico, partir de alguém que
ocupa o cargo de Corregedor-Geral de Justiça… E choca ainda mais uma tal fala
vir de alguém que já votou a favor da união estável homoafetiva, como o
Ministro João Otávio de Noronha (cf. STJ, REsp 827.962/RS, DJe de 08.08.2011).
Ora, Excelência, desde quando reconhecer direitos a uma minoria historicamente estigmatizada “significa” perda de direitos à maioria?
Que
direitos heterossexuais (e cisgêneros) “perderam” com o gradativo
reconhecimento jurisprudencial de direitos de lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (mulheres transexuais e homens trans)[2]? Ficam, aqui,
opostos embargos de declaração[3], por omissão sobre tema relevante, à fala de
Vossa Excelência, Ministro João Otávio de Noronha, para que cite quais direitos
seriam estes que heterossexuais (e cisgêneros) supostamente “perderam” com o
reconhecimento de direitos às minorias sexuais e de gênero…
Como
bem disse o Ministro Ayres Brito no julgamento da ADPF 132/ADI 4277, que
reconheceu a união homoafetiva como família conjugal e merecedora do regime
jurídico da união estável heteroafetiva, os heteroafetivos nada perdem quando
os homoafetivos ganham[4]. “O casamento civil é um direito humano, não um
privilégio heterossexual”, diz tradicional lema da luta mundial de homossexuais
e bissexuais pelo direito ao casamento civil igualitário (homoafetivo).
Direitos iguais: nem menos, nem mais, consoante um dos slogans da Parada do
Orgulho LGBT(I) de São Paulo, de 2005.
Algo
equivalente pode ser dito na questão da identidade de gênero: os cisgêneros
nada perdem quando ganham as pessoas transgênero, relativamente a seu direito
de mudança de prenome e sexo jurídico (independente de cirurgia de
transgenitalização e de laudos de profissionais da saúde). Aqui aplica-se a
célebre máxima de Boaventura de Souza Santos: temos o direito à igualdade
quando a diferença nos inferioriza e temos o direito à diferença, quando a
igualdade nos descaracteriza. Pois descaracteriza a identidade de gênero das
pessoas transgênero trata-las como se cisgêneras fossem. E, de qualquer forma,
o lema dos direitos iguais: nem menos, nem mais se aplica também aqui (pelo
menos) quanto ao direito ao nome, já que pessoas cisgênero podem mudar seu
prenome desde que provem possuir um “apelido
público notório” (art. 58 da Lei de Registros Públicos), independente de “laudos” quaisquer, o qual (apelido
público notório) é absolutamente equivalente ao “nome social” de travestis, mulheres transexuais e homens trans (as
pessoas transgênero).
Então, a menos que se tenha a ousada capacidade de se dizer que haveria um suposto “direito” a discriminar, a garantir somente para si e a mais ninguém determinado direito, o que seria transcender o cúmulo do absurdo, não se pode seriamente dizer que heterossexuais perdem quando homo e bissexuais ganham, nem que cisgêneros perdem quando as pessoas transgênero ganham.
Em
suma, vivemos a era da reclamação de maiorias pelo simples fato de minorias
estarem obtendo direitos. No que tange aos direitos das minorias sexuais e de
gênero, vivemos a era da heterocisgeneridade mimizenta, formada por pessoas que
“reclamam” de estarem perdendo o
privilégio de ter só a sua orientação sexual (heteroafetiva) e identidade de
gênero (cisgênera) reconhecida e protegida pelo Direito. Será que essas pessoas
estão com “saudades” da época em que,
após o falecimento do companheiro gay ou da companheira lésbica, a pessoa
homossexual (ou bissexual) era expulsa da casa em que morou por muitos anos,
quando esta estava apenas em nome do(a) falecido(a), pela “família de sangue”?
Da época em que, internado(a) o(a) companheiro(a) homoafetivo(a), o(a) outro(a)
era expulso(a) do hospital pela “família
de sangue”? Família esta que, muitas vezes, desprezou o(a) falecido(a) por
sua homofobia/bifobia, mas que aparecia, como abutre, na hora de amealhar o
patrimônio arduamente construído pelo(a) “parente
de sangue” homo/bissexual? Será que as pessoas heterossexuais e cisgêneras
mimizentas estão com “saudade” desse
tempo, no Brasil existente até 05 de maio de 2011[5]??? Bem como da época em
que pessoas transgênero não tinham sua identidade de gênero reconhecida? (sem
falar que, hoje, ainda têm muita dificuldade judicial em isto conseguir, a
depender de qual juiz/juíza e promotor/a que atuarem no processo, tema para outro
momento).
Trata-se
de postura simplesmente inacreditável dessa parcela (quero crer, minoritária)
da população heterossexual cisgênera…
Cabe
a nós, ativistas, continuarmos exigindo a implementação da universalidade dos
direitos humanos (sua garantia a todas e todos) e continuarmos, de alguma
forma, desenvolvendo paciência para enfrentar esse tipo de simplismo acrítico e
esclarecer a obviedade segundo a qual estender direitos a minorias e grupos
vulneráveis não prejudica, em nada, a maioria, que não pode querer garantir
direitos somente a si. Pois isso tem um nome: privilégio. Aquilo que tanto
(descabidamente) nos acusam de querer é aquilo que consta em seu espelho e,
pelo visto, efetivamente querem: manter (neste caso) sua identidade
heterossexual e cisgênera como as únicas reconhecidas e protegidas pelo Estado.
A luta é árdua e exige renovação infinita de paciência. Mas é a luta em que
temos que continuar engajadas e engajados. (Por
Paulo Iotti, no Justificando).
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(Foto: Gláucio Dettmar/ Agência CNJ). |
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