"Por
mais que você corra, irmão /Pra sua guerra vão nem se lixar/ Esse é o xis da
questão/ Já viu eles chorar pela cor do orixá? /E os camburão o que são?/
Negreiros a retraficar/ Favela ainda é senzala, Jão! /Bomba relógio prestes a
estourar” (Boa Esperança, Emicida)
Nesta
quinta 18 estará em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) a continuidade do
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/03.
Conhecida
como a ADI do partido DEM e do agronegócio contra as comunidades quilombolas, a
ação busca a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03, que trata
dos instrumentos administrativos-jurídicos de reconhecimento, identificação,
delimitação e demarcação dos territórios quilombolas.
O
decreto tem sua base normativa na Constituição Federal de 1988 e na Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante às comunidades
quilombolas uma série de diretrizes e direitos, entre eles, o de serem
previamente consultadas quanto à medidas legislativas que as afetem
diretamente.
Juridiquês,
siglas, datas e números a parte, o que está em julgamento não é apenas o
decreto presidencial.
Esta
é uma ADI contra as comunidades quilombolas, não é meramente um julgamento
contra um ato do poder Executivo, porque não se trata de uma discussão
governamental.
O
que está em pauta, atravessando diversas cortinas de fumaça, é o reconhecimento
ou não, do Estado e da sociedade das conquistas históricas, sociais,
econômicas, políticas e culturais das mobilizações dos quilombolas para
garantia de direitos.
No
“papo reto”, o que está em análise na
ADI, nos últimos 14 anos, é o racismo estrutural (inclusive o judicial) no
Brasil.
O
racismo estrutural é a constatação de que a sociedade brasileira foi erigida
sob a égide do patriarcado, colonialismo, capitalismo e racismo, sendo este
último presente nas relações interpessoais, nas invisibilidades institucionais
e na baixa representatividade nas arenas políticas, econômicas, culturais e
jurídicas.
Todas
as análises em torno do julgamento são oportunas, ajudam a atravessar as
camadas das cortinas e servem enquanto chaves interpretativas, pois trazem
elementos jurídicos, políticos, antropológicos e outros. Entretanto, a
principal questão em jogo neste embate é racial.
O
julgamento do decreto 4.887/03 pode se tornar um acontecimento de consequências
catastróficas incalculáveis, caso julgada procedente a ADI.
Por
outro lado, a improcedência da ADI não resolve tudo, mas garante o “direito de ter direitos”, ou seja, a
continuidade das lutas em passos curtos e longas esperas com um caminho firme
para pisar no território jurídico.
Partindo
da premissa do texto, de que estamos diante de um caso que julgará o racismo no
Brasil, é óbvio que existe similitude com o julgamento das ações afirmativas
nas Universidades no Brasil em 2012 pelo STF, na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n°.186, ajuizada na pelo DEM (sim, o mesmo partido, antigo
PFL e Arena), onde STF decidiu por unanimidade reconhecer a necessidade da
superação do racismo no Brasil.
Cada
caso tem suas particularidades e potencialidades políticas e simbólicas.
Na
ADI contra as comunidades quilombolas, os ministros e ministras poderão
ratificar (ou não) as seguintes questões:
1)
O Brasil permanecerá sendo a nação do racismo estrutural, institucional e
interpessoal ou não?
2)
O Brasil continuará a fábula de democracia racial, fundada na exploração do
outro e de tantas outras ou não?
3)
O Brasil é um projeto de nação/sociedade ou ainda há boas esperanças de
enfrentamento ao racismo ou não?
4)
A proteção dos direitos humanos e dos grupos vulnerabilizados previstos em
nosso ordenamento jurídico é apenas para “inglês ver” ou não?
Não
é possível saber, antecipadamente, qual será o resultado do julgamento e
quantas armadilhas discursivas podem aparecer nos votos.
Os
elementos-chaves (desapropriação, marco temporal, autodefinição, etc) em
disputa contêm múltiplas variações hermenêuticas e podem escamotear retrocessos
petrificando uma política que está congelada, mas nem por isso pode ser
deturpada ou aniquilada.
No
Brasil de todos os tempos, poucas pessoas que detêm poder dizem o que precisa
ser dito. É assim com o racismo – nunca é “bem assim”, mas sempre é vivido
pelas comunidades quilombolas. Estas, permanecem atentas e prontas para
resistir pela insistência em ser o que são.
Ao
STF caberá declarar se ainda é o que dele se espera, consolidando na Corte e na
história mais uma tentativa de superação dos racismos, das violências e dos não
ditos. (Com informações de CartaCapital).
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O julgamento pode ter consequências catastróficas incalculáveis caso julgada procedente a ADI. (Foto: CONAQ/Divulgação). |