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O nome de Carolina Maria de Jesus batizará a EMEF Infante Dom Henrique, próxima de onde a autora viveu. Foto: Reinaldo Canato/ Uol. |
"Os visinhos de alvenaria olha os favelados
com repugnancia. Percebo seus olhares de odio porque êles não quer a favela
aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobrêza. Esquecem êles
que na morte todos ficam pobres."
Mantidas
em sua grafia original, exatamente como foram publicadas em 1960, estas linhas
foram redigidas por uma das mais importantes escritoras brasileiras do século
passado, Carolina Maria de Jesus (1914-1977).
No
livro "Quarto de Despejo: Diário de
uma Favelada", ela narra, a partir de sua própria experiência de vida,
as agruras de uma comunidade miserável às margens do rio Tietê. O bairro ao
qual se refere no trecho é o Canindé, na região central de São Paulo, onde
ficava o barraco de madeira que dividia com os filhos. Quase 60 anos depois, a
vizinhança já não lança olhares de ódio para a favela, demolida às pressas após
a enorme repercussão da obra. Agora, ao contrário, a área prepara-se para,
enfim, homenagear a sua ilustre ex-moradora.
O
nome de Carolina batizará a EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental)
Infante Dom Henrique, próxima de onde a autora viveu. A alteração, decidida num
referendo entre alunos, professores, funcionários e pais de estudantes, traz
também a carga simbólica de resgatar a memória de uma mulher negra migrante num
colégio público frequentado por muitos estrangeiros --em especial, bolivianos e
angolanos.
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Escola tem mural com discussões sobre o racismo. Foto: Reinaldo Canato/ Uol. |
A
novidade se insere num quadro de atividades promovidas pelos gestores da escola
para combater práticas racistas e xenofóbicas entre os alunos. O diretor da
unidade, Cláudio Marques da Silva Neto, conta que, quando assumiu o cargo, em
2011, eram frequentes as ofensas dessa natureza, e as crianças bolivianas
chegavam ao ponto de andar separadas das demais, para evitar assédios.
Desde
então, com projetos voltados à valorização da diversidade cultural, étnica e
racial, a situação melhorou substancialmente. Recentemente, a Unesco, braço da
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, convidou a
unidade para integrar o seu programa mundial de escolas associadas.
"Foi a partir da discussão do
tema das identidades que se pensou em levar essa questão às últimas
consequências, inclusive com o nome da escola, já que, para nós e para os pais,
como expresso na votação, o nome Infante Dom Henrique [nobre português do
século 15] não diz muito sobre nós", explica Silva.
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A escritora Carolina Maria de Jesus, autora de 'Quarto de Despejo'. Acervo UH/Folhapress. |
Entre
fevereiro e novembro, diversas reuniões foram realizadas e a comunidade escolar
pôde indicar nomes para a substituição. As sugestões foram, além de Carolina
Maria de Jesus, o escritor Ariano Suassuna, a pintora mexicana Frida Kahlo e a
escritora Patrícia Galvão. Com 432 eleitores contabilizados, uma votação final
resultou na escolha de Carolina, preferida por 42% dos votantes.
Inaugurada
em 1960, a escola tem cerca de 530 alunos -- cerca de um quinto é de
estrangeiros. O processo agora resultará num projeto de lei que será
encaminhado por um vereador na Câmara Municipal, onde deve ser aprovado, para
depois seguir para a sanção do prefeito.
Não
é a primeira vez que uma escola pública paulistana decide trocar de nome para
enfatizar sua luta por uma sociedade mais igualitária. Em junho passado, a
Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Guia Lopes, no Limão, na zona
norte, conseguiu modificar sua denominação para homenagear o ex-presidente
sul-africano Nelson Mandela (1918-2013), expoente da luta contra o apartheid
que vigorou em seu país até a década de 1990. Há alguns anos, os muros e
portões da unidade, que desenvolve trabalhos para estimular a diversidade,
foram pichados com inscrições racistas.
Voz da Comunidade
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Cláudio Marques da Silva Neto, diretor da escola municipal. Foto: Reinaldo Canato/ Uol. |
A
vida e a obra da homenageada Carolina Maria de Jesus entrarão no dia a dia dos
estudantes, pais e professores. "Assim
que o projeto de lei for votado na Câmara de Vereadores, nós faremos a
reinauguração da escola com uma mesa de debate que possivelmente contará com a
filha da escritora [Vera Eunice, que também é professora pública]",
afirma Silva, acrescentando que os livros de Carolina farão parte do currículo
da unidade em 2017.
Para
Cesar Luís Sampaio, professor de informática educativa da escola, a troca
reforçará os laços de identidade entre estudantes, funcionários e vizinhança.
"Simbolicamente vai dar um novo
impulso às discussões raciais e sociais em nossa escola. É dar protagonismo
para nossa gente, nossa comunidade, nossa realidade social. É dar luz para a
população que sempre foi ofuscada. É dar voz àqueles que nunca tiveram
oportunidade de falar. Desejamos o empoderamento popular."
Pai
de um aluno do 9º ano, o administrador de empresas Sidnei Palmieri, 48, fez
questão de matricular seu filho no colégio, apesar de a família morar longe
dali, no bairro de Lauzane Paulista, na zona norte. "Resolvi colocá-lo nessa escola devido à qualidade de ensino, ao
respeito e principalmente às oportunidades oferecidas."
Antes
dos debates sobre a alteração de nome, ele ainda não havia tido contato com a
trajetória de Carolina. "Soube que
sua obra é reconhecida em muitos países, mas que, infelizmente, é muito pouco
aqui no Brasil."
Nascida
em Sacramento, no interior de Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus desembarcou
na Estação da Luz, em São Paulo, em 1937. Mãe solteira, trabalhou como catadora
de papéis para sustentar os três filhos, até ser alçada à fama repentina, com a
publicação de seu primeiro livro, a partir dos muitos escritos que produzia
cotidianamente.
Suas
obras, que incluem "Casa de
Alvenaria", "Pedaços de
Fome", "Provérbios"
e o póstumo "Diário de Bitita",
foram traduzidos para muitos idiomas, entre os quais o inglês, o espanhol e o
francês. Nos Estados Unidos, seus livros são constantemente reeditados e
estudados.
O
nome de Carolina já é utilizado por uma EMEI na Vila Dalva, na zona oeste.
Segundo a Secretaria Municipal de Educação, não haverá conflito quando a EMEF
Infante Dom Henrique ganhar a sua nova denominação, pois as unidades oferecem
etapas de ensino diferentes.