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A imprensa e a luta contra o racismo, por Silvia Elaine Santos de Castro



Esquizofrenia. Essa foi a doença utilizada para justificar a agressão física e verbal a um senegalês no centro da cidade de Londrina, norte do estado do Paraná, no começo de setembro. Ngale Ndiaye é vendedor ambulante e mantém seu ponto de venda em frente ao prédio em que reside a agressora. Aos gritos de “preto fedido”, “macaco” e “ladrão”, a moradora jogou bananas no imigrante e exigia que ele mudasse seu ponto de venda. A humanidade, a dignidade e os direitos de Ngale foram negados neste ato.

Esse é apenas mais um caso de discriminação entre tantos outros vividos e presenciados no cotidiano brasileiro. Ação explícita que causou a revolta de muitos que passavam pelo local. Mais do que depressa, pessoas que assistiram a cena e a imprensa, que cobria, tentaram amenizar a situação. Uma senhora, emocionada, pediu desculpas à vítima em nome da pessoa agressora e do país, afirmando que aquela não era uma atitude típica dos brasileiros, que somos corteses etc. Essa foi a principal perspectiva na cobertura jornalística do fato.

Como desmembramento da cobertura, um jornal da cidade aproveitou a ocasião para abordar o tema da crise de imigração europeia e os diversos refugiados na cidade. Por que não podemos dizer que o caso de Ngale foi xenofobia? Ele foi atacado por causa da cor da sua pele, e não por seu país de origem.

Os principais sintomas da esquizofrenia são delírios e alucinações. O doente desenvolve crenças em fatos irreais que não possuem base na realidade. Na simplicidade dessa descrição, penso que vivemos uma esquizofrenia social, que insiste em negar o óbvio. Para compreender o racismo no Brasil é preciso se libertar da zona de conforto e ir além. Como já denunciou o antropólogo Kabenguele Munanga, o racismo brasileiro é um crime perfeito, um racismo sem racistas, um crime sem ator.

O regime de castas deixou legados

Pensar o racismo como caso isolado, como exceção, é um dos principais erros que cometemos ao refletirmos sobre como acontece este fenômeno no país do futebol. Numa metodologia foucaultiana, sugiro pensarmos sobre as capilaridades do racismo. Do micro para o macro. Interpretar cada ato de discriminação racial como casos isolados e desconexos reforça a ideia do “mito da democracia racial”, que o racismo está no ar, que ninguém o pratica.

É imprescindível refletir como o racismo se estrutura e é estruturado por ações cotidianas, seus efeitos e consequências. Para, quem sabe assim, podermos construir uma sociedade efetivamente menos preconceituosa. Reforçar a ideia de uma igualdade desejável, porém utópica, como já apontou Florestan Fernandes (2008), apenas cumpre a função de preservar as distancias sociais, econômicas e culturais em nosso país.

O racismo é operante em nossas relações como mecanismo de hierarquia social, quando um ser humano se identifica como sendo mais digno e detentor de mais direitos do que o outro. É preciso admitir que o regime de castas operante no período escravocrata deixou legados nas nossas relações raciais que ainda não conseguimos nos desvencilhar. A negação da humanidade de africanos foi a justificativa usada para o regime de trabalho escravo. Isso soa familiar?

A esquizofrenia social na/da mídia

Diversas estratégias foram utilizadas para a manutenção dos privilégios sociais herdados do período escravista. A principal delas são as nossas relações raciais. O entendimento de que as vivemos harmonicamente por sermos um país miscigenado é a máxima operante, e este fato é utilizado para minimizar possíveis enfrentamentos sociais diretos. A orientação moral do brasileiro foi historicamente de tolerar [utilizo o verbo tolerar no sentido de suportar com indulgência, ou seja, sempre com um mal estar aparente] a diversidade, desde que esta não interfira ou transgrida o seu padrão de normalidade. Talvez, essa pode ser esta uma das causas da nossa dificuldade de enxergarmos o abismo que separa brancos e negros em nosso país.

Qual o lugar dos veículos de comunicação na manutenção deste padrão?

Como já apontou Muniz Sodré (1999), a mídia é o intelectual coletivo deste poderio. Os discursos midiáticos tecem uma rede de produção e reprodução do preconceito e do racismo. “Funcionam também como uma espécie de ‘grupo técnico de imaginação’, responsável pela absorção, reelaboração e retransmissão de um imaginário coletivo atuante nas representações sociais” (pág.244).

Sodré aponta quatro fatores operantes do racismo mediáticos: 1) a negação, ou seja, “a mídia tende a negar a existência do racismo, a não ser quando este aparece como objeto noticioso”; 2) o recalcamento, a repressão de aspectos positivos das manifestações simbólicas de origem negra; 3) a estigmatização, segundo Goffman, estigma é a marca de desqualificação da diferença que sucinta juízo de inferioridade sobre o outro. Ou seja, num país de dominação branca, a pele escura tende a tornar-se um estigma; 4) a indiferença profissional, por se organizar empresarialmente, quando a obtenção do lucro é o objetivo principal, os profissionais da mídia pouco se interessam por questões referentes a discriminação do negro e das minorias.

O caso de Ngale teve repercussão nos noticiários locais devido à não conformidade do comportamento da agressora com o padrão moral da sociedade brasileira. Em âmbito nacional, o racismo é discutido, apenas, como tema esporádico, dissociado da realidade e do seu contexto.

Por uma outra comunicação

O discurso da atriz Viola Davis na premiação do Emmy Awards no último domingo (20/09) foi emblemático. Ganhadora do premio de melhor atriz dramática, Viola resgata a humanidade de todos os descendentes de africanos escravizados na Diáspora quando afirma que o que separam brancos e negros em nossa sociedade são as oportunidades.

Para combater o nosso imaginário preconceituoso é fundamental que sejam pensadas políticas públicas que promovam a diversidade étnica e racial dos agentes dos veículos de comunicação. Se quisermos ter um país realmente igualitário é preciso que ações práticas sejam feitas.

O geógrafo Milton Santos, ao pensar o processo de globalização, propunha o entendimento de que ela era composta por três perspectivas: a primeira seria o mundo como nos fazem ver (a globalização como fábula), a segunda o mundo tal como ele é (a globalização como perversidade) e uma outra globalização, ou o mundo como ele pode ser.

Conduzindo este olhar para a comunicação, penso que nossa produção na mídia flutua entre os veículos como fábula e tal qual eles são, perversos, que segrega e discrimina.

Chegamos ao tempo em que, pensar uma outra comunicação se faz necessário para se (re)pensar a identidade nacional e a verdadeira democratização da mídia.

Compreendendo a importância de seu papel neste cenário, a Federação Nacional do Jornalista, tem desenvolvido ações neste sentido como a criação de Comissões de Jornalista pela Igualdade Racial (Cojiras) em diversos estados. Recentemente esta iniciativa foi implementada no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Norte do Paraná. Este é um primeiro passo para se efetivar a discussão sobre qual o papel dos profissionais e sua qualificação para a cobertura em casos que envolvem as questões de raça, gênero e etnia.

Pensar o racismo na/da mídia e os meios de se enfrentar preconceito racial nos meios de comunicação é o caminho que temos para combater a esquizofrenia social que nos assola e caminhar em direção de uma sociedade efetivamente democrática.

Segundo filósofa, cobertura da imprensa no Brasil é “Pobre e simplista”



Em entrevista ao programa Observatório da Imprensa, na TV Brasil, a doutora em Filosofia Viviane Mosé comentou sobre o discurso hegemônico adotado pela mídia brasileira em relação à atual situação política e econômica do país. Para ela, a falta de uma abordagem mais aprofundada em relação a esses assuntos cria um debate “pobre e simplista”.

Nós não temos uma notícia sobre o perigo da instabilidade econômica mundial, da situação da Europa, da situação dos Estados Unidos, da China e o que significa o Brasil ali. Então, a crise brasileira é vista isoladamente. Ela não tem contexto. Mas, espera aí, o papel da imprensa não é dar contexto a esse debate?”, questionou.

Mosé criticou ainda a forma com que a imprensa tradicional seleciona as reportagens que serão publicadas. Ela afirma que os avanços do país deixam de ser noticiados para evitar passar uma boa imagem do governo. “Além de um problema cognitivo e intelectual grave, é partidário, é gueto, é sectário”, alertou sobre o posicionamento dos veículos de comunicação. “O que representa esse governo pode ser discutido eternamente, mas existe um fato: nós temos alguém no governo e o país precisa caminhar”, completou.



Meio Século da Ditadura Civil-Militar: Imprensa – “mais do que aceitou, foi uma arma essencial do regime..”*


Notícia sobre a morte de Msrighella.
Desde fins da década de 1990, parte da historiografia brasileira sublinha que o (equivocado) processo de Anistia cunhou a (errônea) visão de que vivemos envoltos em uma tradição de valores democráticos. A partir das lutas pela Anistia, como sublinha Daniel Aarão Reis, “libera-se” a sociedade brasileira de “repudiar a ditadura, reincorporando sua margem esquerda e reconfortando-se na ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”. Nesse momento, plasmou-se a imagem de que a sociedade brasileira viveu a ditadura como um hiato, um instante a ser expurgado. Confrontando-nos à tal memória inventada, há no período republicano longos momentos de exceção – como nos referimos aos regimes ditatoriais.

Se tais premissas correspondessem aos fatos, restaria explicar: por que houve apenas restritos episódios de resistência vinculados igualmente a pequenos grupos? Por que se permitiu aprovar uma Anistia recíproca, que mesmo nestes 50 anos após o golpe civil-militar, ainda é tema espinhoso de revisão?
A luta contra o arbítrio, de forma armada ou não, definitivamente não caiu nas graças do povo deste berço esplêndido. E, certamente, os meios de comunicação de massa – a grande imprensa e posteriormente, a TV – têm um papel preponderante nas escolhas sociais implantadas.

São clássicos os editoriais do Correio da Manhã nas vésperas do 1º de Abril de 1964, clamando por “Basta” e “Fora” a Jango. Igualmente, é emblemática a noção de que este jornal, ao realizar um “mea-culpa” e se colocar em oposição ao novo regime, foi punido com perseguições que levaram a sua falência. Esquecem-se, contudo, os amplos problemas de gerenciamento vividos por Niomar Moniz Sodré.

Ícones de resistência são lembrados, afirmados, expostos e sublinhados maciçamente para ratificar a tradição democrática brasileira, como: a meteorologia para o 14/12/1968, no Jornal do Brasil; as receitas de bolo do Jornal da Tarde; os poemas de Camões no Estadão; os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos; etc., que definiriam a grande imprensa brasileira como resistente ao golpe e, posteriormente, ao arbítrio. Mesmo com todo este esforço, o processo ditatorial perdurou por mais de duas décadas.

Meio século depois e com inúmeros textos publicados sobre a mais recente ditadura brasileira, poder-se-ia ressaltar que nunca a grande imprensa brasileira estampou na primeira página dos periódicos um aviso claro afirmando: “Este jornal está sob censura”. As estratégias acima apontadas e outras, que frequentemente voltam à tona para reforçar a ação resistente, contavam com a capacidade do público leitor em decifrar pistas.

O jornalista Oliveiros Ferreira, que por décadas trabalhou no Estadão, narrou as ligações recebidas pela redação indagando que a receita de bolo na primeira página do Jornal da Tarde estava errada. O bolo solava. Ou, como definiu Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, os poemas de Camões foram ali uma concessão. Certamente a censura federal apostava que o leitor não entenderia o seu porquê, ou se tranquilizaria na (efêmera) ilusão que mesmo no arbítrio lhe eram permitidos lampejos de resistência, os quais, efetivamente nada alteravam. Algo semelhante, contudo, não foi autorizado à (antiga) Veja, que, durante a “distensão” do governo Geisel, substitui as matérias censuradas por imagens de diabinhos, já que não se podiam publicar espaços em branco. Advertida, teve que parar, pois certamente o leitor de Veja à época entenderia o recado. Certamente como compreendeu a mensagem da revista quando da morte de Vlado, numa nota pequena de desculpas por não poder nada mais expressar.

Os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes, como demonstram os processos que arrolam os seus nomes. Da mesma forma, existiram imposições governamentais de expurgos nas redações. Tais limpezas ocorreram logo depois do golpe e perduraram até e inclusive no governo Geisel, que impunha a bandeira do fim da censura. Muitos jornalistas/militantes poderiam ser citados como vítimas destas ações, já que, como pontuava lúcida e ferinamente Cláudio Abramo, “nas redações não há lugar para lideranças. Os donos dos jornais não sabem lidar com jornalistas influentes que, muitas vezes, se chocam com as diretrizes do comando. O jornalista tem ali uma função, mas ‘ficou forte, eles eliminam’.”

Os meios de comunicação são empresas que buscam o lucro, vendendo a visão particular sobre um fato e, como Abramo por vezes demarcou, um “equívoco que a esquerda geralmente comete é o de que, no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior das informações. Mas não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado não é capaz de exercer o controle, e sim a classe dominante, os donos. O Estado influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos e não do Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do jornal. Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos jornalistas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo interesse em combater a censura”.

Existiram pouco mais de 220 censores federais, muitos deles com o diploma de jornalista – sendo que o primeiro concurso público para o cargo ocorreu em 1974, quando Geisel prometia o fim da censura. Estas duas centenas de pessoas atuavam reprimindo: cinema, TV, rádio, teatro, jornais, revistas, etc., entre 1964 e 1988, em todo o território nacional. Para que as expectativas governamentais dessem certo, os donos das empresas de comunicação tinham de colaborar – e não resistir.

Inúmeros arquétipos podem corroborar tal ideia, até porque a autocensura não é desconhecida das redações, e não se iniciou no pós-1964 no Brasil. No Jornal do Brasil, por exemplo, editou-se, em 29/12/1969, como me cedeu o seu exemplar o secretário de Redação, José Silveira, uma circular interna de cinco páginas, elaborada pelo diretor do jornal, José Sette Câmara, para o editor chefe, Alberto Dines, denominada “Instruções para o controle de qualidade e problemas políticos (Grifo da Redação do Informações em Foco)”, criada com o objetivo de “instituir na equipe um (...) Controle de Qualidade (...) sob o ponto de vista político”.

Estabelecida dias antes do Decreto-Lei 1.077, de 26/01/1970, que legalizou a censura prévia, e um ano após o AI-5, a diretriz de Sette Câmara pontuava que “não se trata de autocensura, de vez que não há normas governamentais que limitem o exercício da liberdade de expressão, ou que tornem proibitiva a publicação de determinados assuntos. Em teoria há plena liberdade de expressão. Mas na prática o exercício dessa liberdade tem que ser pautado pelo bom senso e pela prudência”, já que “a posição do JB ao proferir que este não é a favor nem contra, (...) não é jornal de situação, nem de oposição. O JB luta pela restauração da plenitude do regime democrático no Brasil, pelo retorno do estado de direito. (...) Enquanto estiver em vigor o regime de exceção, temos que usar todos os nossos recursos de inteligência para defender a linha democrática sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco ao Governo. (…) O JB teve uma parte importante na Revolução de 1964 e continua fiel ao ideário que então pregou. Se alguém mudou foram os líderes da Revolução. [Nesse sentido, o JB deverá] sempre optar pela suspensão de qualquer notícia que possa representar um risco para o jornal. Para bem cumprirmos o nosso maior dever, que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver”. Sette Câmara termina decretando que, “na dúvida, a decisão deve ser pelo lápis vermelho”.

Em meados da década de 1970, foi a vez da Rede Globo – uma concessão pública – formalmente instituir o “Padrão Globo de Qualidade” (Grifo da Redação do Informações em Foco), ao contratar José Leite Ottati – ex-funcionário do Departamento de Polícia Federal – para realizar a censura interna e evitar prejuízos advindos da proibição de telenovelas. Segundo Walter Clark, a primeira interdição da censura na Globo ocorreu em 1976, na novela Despedida de casado. Para blindar a emissora, o “Padrão Globo de Qualidade” receberia o auxílio de pesquisas de opinião feitas por Homero Icaza Sanchez – o “Bruxo” –, encarregado de identificar as motivações da audiência.

Definindo toda essa tática, Clark explicou que, “(...) enquanto a Censura agia para subjugar e controlar a arte e a cultura do país, perseguindo a inteligência, nós continuávamos trabalhando na Globo para fazer uma televisão com a melhor qualidade possível.” Organizada a autocensura, o “Padrão Globo de Qualidade” teve acrescidos outros ingredientes para o seu sucesso. Em sintonia com a imagem, divulgada pelo governo autoritário, de um “Brasil Grande”, formulou-se também uma “assessoria militar” ou uma “assessoria especial” composta por Edgardo Manoel Ericsen e pelo coronel Paiva Chaves. Segundo Clark, “ambos foram contratados com a função de fazer a ponte entre a emissora e o regime. Tinham boas relações e podiam quebrar os galhos, quando surgissem problemas na área de segurança”.

Esquema semelhante a este foi adotado pela Editora Abril, exposto em uma correspondência de Waldemar de Souza – funcionário da Abril e conhecido como “professor” –, a Edgardo de Silvio Faria – advogado do grupo e genro do sócio minoritário Gordino Rossi –, na qual comunicava o contato tanto com o chefe do Serviço de Censura em São Paulo – o censor de carreira e jornalista José Vieira Madeira –, como com o diretor do Departamento de Censura de Diversões Públicas – Rogério Nunes – para facilitar a aprovação das revistas e a chegada às bancas sem cortes.

Estes vínculos do “professor” com membros do governo são anteriores a esse período e justificam seu potencial de negociação. Desde novembro de 1971 o relações-públicas do DPF, João Madeira – irmão de José Vieira Madeira –, expediu uma carta ao diretor-geral da Editora Abril na qual ratificava o convite do general Nilo Caneppa, na época diretor do DPF, a Waldemar de Souza para que fosse a Brasília ministrar um curso especial aos censores. Em maio de 1972, o próprio general Caneppa enviou a Vitor Civita, diretor-geral da Abril, uma correspondência de agradecimento pelas palestras sobre censura de filmes, que Waldemar de Souza proferiu na Academia Nacional de Polícia. Para continuar colaborando, no ano seguinte, Souza formulou uma brochura intitulada “Segurança Nacional: o que os cineastas franceses esquerdistas já realizaram em países da América do Sul e pretendem repetir aqui no Brasil”. E, em 1974, com o general Antonio Bandeira no comando do DPF, Waldemar de Souza, em caráter confidencial, expôs o porquê de censurar Kung Fu e sua mensagem que “infiltra a revolta na juventude”.

Por fim, mas não menos importante, há a atuação do Grupo Folha da Manhã, proprietário da Folha de S. Paulo e da Folha da Tarde, entre outros, no período. Em dezessete anos, entre 19/10/1967 e 7/5/1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das Diretas Já, e a Folha da Tarde vivenciou uma redação tanto de esquerda engajada – até o assassinato de Marighella –, como, a partir daí, de partidários e colaboradores do autoritarismo.

Durante uma década e meia sob o comando de policiais, o jornal adquiriu um apelido: o de “maior tiragem”, já que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir deste perfil de funcionários, a Folha da Tarde carrega a acusação de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como o Diário Oficial da Oban.

Isto explica o porquê de os carros do Grupo Folha da Manhã serem incendiados por militantes de esquerda, nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971. A ação era uma represália, já que o grupo era acusado de ceder automóveis ao Doi-Codi que, com esse disfarce, montava emboscadas, prendendo ativistas.
Nesse momento de ponderações sobre os 50 anos do golpe, recordo-me que, quando dos 30 anos do AI-5, o jornalista Jânio de Freitas publicou na Folha de S. Paulo uma advertência não cumprida por seus pares, inclusive agora, nas reflexões dos periódicos aos 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Corroborando com tudo o que foi exposto aqui, Freitas lembrava em 1998 que “a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. Naqueles tempos, e desde 64, o Jornal do Brasil [...] foi o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime. (...) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói antiditadura tem dependido só de se passar por tal”.

O jornalista ao finalizar, adverte, e peço-lhe licença para me utilizar aqui, de suas conclusões. Trocarei 30 por 50 anos, AI-5 por golpe civil-militar de 1964, e o que estiver entre colchetes é de minha autoria. Assim: precisamos aproveitar os 50 anos do golpe civil-militar de 1964 para mostrar mais como foi o regime que [se instaurou a partir dali], eis uma boa iniciativa. Mas não precisava [como fizeram muitas narrativas recentes] reproduzir também os hábitos de deformação costumeiros naqueles tempos.

A análise é de Beatriz Kushnir, historiadora, doutora em História pela Unicamp, autora, entre outros de, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2012) e foi publicado originalmente no Carta Capital