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O direito à voz de Carolina. (Imagem: Reprodução/ Diário do Nordeste). |
A
notícia da candidatura da escritora Conceição Evaristo à cadeira nº 7 da
Academia Brasileira de Letras (ABL), antes ocupada pelo cineasta Nelson Pereira
dos Santos, criou um clima de expectativas sem precedentes para o cenário literário
brasileiro. Se aceita, será a primeira vez que uma escritora negra adentrará a
instituição, vista por muitos como um reduto majoritariamente de homens brancos
e nem sempre atenta aos valores literários das biografias dos seus imortais.
Para além do trabalho literário individual, a candidatura de Conceição Evaristo
carrega consigo uma série de questões históricas, além de muita simbologia em
torno do passo para se tornar imortal. Basta citarmos a mais óbvia das razões
para isso: a dificuldade de escritoras negras serem reconhecidas como autoras,
publicadas e consequentemente lidas. A recente publicação de "Meu sonho é
escrever...", de Carolina Maria de Jesus, organizada pela doutora em
Teoria e História da Literatura pela Universidade de Campinas (Unicamp)
Raffaella Fernandez, endossa a necessidade de reparação crítica em relação às
escritoras negras, ao recuperar a potência poética dos textos de Carolina.
Durante muitos anos, ela foi vista como mera testemunha ocular de um mundo de
exclusões, a favela em que vivia. "Quarto de Despejo", um campeão de
vendas no Brasil e no exterior nos anos 60, caiu no esquecimento e hoje ensaia
um retorno (é leitura obrigatória para vestibulares da Unicamp e da UFRGS). Em
entrevista ao Diário do Nordeste, a organizadora do volume fala sobre a
importância de recuperação desses textos, racismo institucional e mudança de
rota da crítica em relação à Carolina Maria de Jesus e outras escritoras
afrodescendentes e a dificuldade de organização dos seus escritos, cuja matéria-prima
era resíduo, agora também rumo à imortalidade.
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Raffaella Fernandez: duas décadas dedicadas ao estudo da escritora mineira Carolina Maria de Jesus. Esperança de ver inéditos da autora publicados. |
Diário do Nordeste:
"Meu sonho é escrever..." reúne textos inéditos e outros já
publicados. Como foi feita a composição do livro?
Raffaella Fernandez:
Ele reúne textos inéditos de Carolina e alguns que foram publicados em
"Onde estaes felicidade?", como o conto homônimo ao livro e a crônica
"Na favela". Também alguns textos já apareceram bastante solapados em
lugares esporádicos, por exemplo, em "Diário de Bitita" (1986), intitulado
por Carolina "Um Brasil para brasileiros" e que originalmente é um
romance de formação no estilo de "Ponciá Vicêncio", de Conceição
Evaristo. Há ainda o texto publicado em "Cinderela Negra" (1994) como
"Minha vida", mas em uma das versões por mim selecionada como
"Prólogo".
Um dos aspectos que chama atenção
desta edição é o trabalho de revisão, elogiado por outros pesquisadores que se
dedicam à obra de Carolina. A escolha por revisar os textos, inclusive fazendo
correções ortográficas, seria para atender a uma vontade da autora?
Diferente
do primeiro projeto, "Onde estaes felicidade?", onde optou-se por não
modificar a escrita de Carolina, nesse segundo repensamos esta postura, uma que
podemos nos questionar: Será que Carolina gostaria que seus textos fossem
revisados? Em uma longa conversa com a filha e herdeira do espólio literário,
Vera Eunice, ela disse para mim e para o editor Marciano Ventura que
provavelmente sim, porque revisava os textos da mãe a pedido de Carolina. Então
nesta edição realizada pela Ciclo Contínuo Editorial, resolvemos fazer a
revisão. Eu solicitei a ajuda de uma revisora, tendo em vista que, na minha
condição de leitora assídua dos manuscritos de Carolina, não me senti realmente
capaz e a vontade de intervir no processo criativo da escritora a quem considero
criativíssima em suas formas inusitadas, e digamos assim, adaptativas de criar
sua escrita em meios a tantas adversidades. Assim Fernanda de Souza, que vem
fazendo um trabalho belíssimo, de comparação de Carolina e Lima Barreto, na
Universidade de São Paulo (USP), foi escolhida pelo editor para fazer o
trabalho de revisão.
Alguns autores tentam reproduzir uma
fala local para dar autenticidade ao real. Geovani Martins faz isso em "O
sol na cabeça" (Companhia das Letras, 2018), reproduz a oralidade, o que
interfere em questões de acentuação, concordância verbal e nominal, e grafia.
Em que medida as correções tocam a dicção da autora? A correção é também um
gesto político em defesa da legitimidade da obra de Carolina?
Essa
concepção de que a correção do texto seja um gesto político parte
principalmente do editor, enquanto um editor negro, que opta por essa escolha,
acredita e defende a legitimação e consolidação da obra de Carolina Maria de
Jesus para além do aspecto testemunhal explorado comumente. No meu caso, como
leitora dos manuscritos, acredito que (a correção) interfira nas questões de
dicção e estilo próprios do processo da escritora, mas concordo com as questões
que envolvem a necessidade da adaptação gramatical ao mercado consumidor. A
esse respeito tivemos um grande debate, porque no meu entendimento não mudaria
ou se mudasse colocaria imagens de alguns manuscritos para mostrar ao leitor a
dicção original. No final acabamos optando pela correção, porque consideramos
que a escritora também abrange um público de leitores em formação.
Sabe-se que muitos textos de Carolina
já eram publicados e estudados no exterior. Como aconteceu esse trânsito de
escritos para fora? Isso explica parcialmente o "atraso" da academia
brasileira em relação à obra dela?
O
que explica o certo "atraso" e o atual interesse em Carolina é muito
mais um racismo institucional e social, resultante de um projeto colonizador,
bem como a imposição de um tipo de leitura de mundo, de escrita, de verdades e
de formas de beleza, do que uma questão de desvendamento ou de descoberta.
Afinal, nos anos de 1960, ela fez um grande sucesso e depois sucumbiu não
apenas com a chegada da Ditadura Militar, mas também porque não foi devidamente
reconhecida como a grande escritora que é, para além de uma autora de diários,
de testemunhos de quem vivia na favela. A deslegitimação de sua condição de
escritora está totalmente atrelada ao tipo de descaso que vem sendo combatido
cada vez mais com o advento de novas Carolinas na cena literária hoje.
E como justificar o crescente
interesse neste momento então?
Uma
série de contextos, acumulações e demandas se impuseram para que a obra de
Carolina ganhasse visibilidade e espero que toda sua obra seja publicada e
lida. As pesquisas, os trabalhos como o meu e de outras pesquisadoras sérias
como de Elzira Perpétua, Fernanda Miranda, ou pesquisadores como Mário Augusto
Medeiros, trazem visibilidade a uma Carolina fundamental para se compreender as
venalidades que acompanharam sua exclusão no universo da literatura brasileira.
E, não podemos perder de vista que ainda em nossos dias, as escritoras negras
precisam lutar por esses espaços. Tomemos como exemplo a Flip (Feira Literária
de Paraty) de 2018, onde, para mim, a maior escritora brasileira, Conceição
Evaristo, não esteve diante do telão principal da feira. Tanto a escritora que
está concorrendo à cadeira da ABL, quanto as demais escritoras negras que
falaram na pequena sala da "Casa de insubmissas mulheres negras",
coordenada por Dayse Sacramento, tiveram tanta audiência que dezenas de pessoas
assíduas por escutá-las e conhecê-las pessoalmente se espremeram para caber no
local. Como nos mostra Djamila Ribeiro, "o lugar de fala", a fala da
mulher negra está sendo colocado o tempo todo em questão e se faz nas possibilidades
de subversão de espaços que excluem por meio de supostas inclusões travestidas
de diversidade. Assim, podemos ver que todo esse movimento favorece a releitura
de uma outra Carolina saindo do aspecto biográfico que pode ser estigmatizador
e mais um vez supra valorizar a figura literária de Carolina como um
excêntrico.
*A autora é jornalista e doutora em
Literatura pela Universidade de Brasília (UnB)
Restauro de uma bibliografia
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A pesquisadora Raffaella Fernandez alerta para a necessidade de criação de um fundo, para preservar originais (muito inéditos) de Carolina Maria de Jesus. |
Heloísa Buarque de Holanda
(professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do projeto
Universidade das Quebradas) se refere ao seu trabalho como de
"restauração" da obra de Carolina. O que é mais difícil nesse
trabalho?
A
pesquisa já tem cerca de 20 anos, por isso eu digo que Carolina é minha
companheira de longa data, sendo sempre uma surpresa a cada vez que tenho o
privilégio e a honra de me aproximar do espólio literário dela. Sempre penso,
com aperto no coração, como seria ver todos seus romances publicados porque
parece um sonho muito distante, seja pela forma como estão alocados os
manuscritos, seja pelas realidades editoriais vividas pelos escritores negros
muitas vezes mais aclamados como figura do que pela obra lida de fato. Eu
percebo dificuldade, primeiramente, por não haver um arquivo onde toda a obra
possa ser consultada. Quer dizer, um Fundo Carolina Maria de Jesus. Outra
questão se refere à condição dos manuscritos, sobretudo, aqueles que estão
localizados na cidade de Sacramento. A materialidade, principalmente dos seus
primeiros cadernos, é bem complicada, porque são cadernos que já foram
retirados das lixeiras onde Carolina aproveitava os espaços em branco para
escrever, reutilizando, inclusive, cadernos de notas de fábricas, restos de
lápis e canetas descartados. O manuseio em si é bastante dificultoso, além da
fragmentação dos escritos dispersos. Às vezes a gente tem o começo de um
romance em um caderno e a continuação em outros. Consegui montar algumas peças
desse quebra-cabeça aos poucos, porque tive oportunidade de estudar a obra de Carolina
há muito tempo. Quando cheguei mais ou menos aos 15 anos de pesquisa, foi que
percebi o que era de fato o projeto literário, o processo criativo de Carolina,
e que depois terminei denominando de "poética de resíduos", porque
ele foi construído de forma dispersa, de restos de discursos literários e não
literários, no lugar da emergência, da fome de escrita, da sabedoria, das
ruínas de sua ancestralidade, como o material físico, mental, e emocional da
hora. Tudo captado por uma artista ávida por criação e consciente da
importância da palavra enquanto memória, mas principalmente, enquanto forma de
modelar o mundo a seu modo.
O filósofo francês Jacques Rancierè
("A partilha do sensível") defende que não deve haver oposição entre
estética e ética no ajuizamento de uma obra de arte, uma vez que essas duas
dimensões se entrelaçam internamente. Como você avalia a mudança de postura da
crítica brasileira em relação à obra de Carolina quanto à forma e ao conteúdo
dos seus textos?
O
modo como os primeiros textos foram recortados mostraram mais o aspecto
político do que literário, embora num primeiro momento eu já tenha percebido
que uma coisa não está dissociada da outra. Afinal, no lugar da escrita dessa
mulher negra, o que fala é todo um resultado da experiência de um corpo negro
que acumula toda uma condição de conteúdo de expressão e vida, que
necessariamente passa por questões éticas, estéticas e políticas que envolvem
uma coletividade. O ser negro no Brasil, ou talvez o ser negro em condição
diaspórica, se faz sempre nesse invólucro de um com o outro porque é no espaço
da solidariedade que os negros tentam re-existir ao racismo que os exclui de
tudo. Todos já sabem que as passagens mais literárias que poderiam legitimar o
discurso de Carolina de Jesus, enquanto escritora de literatura, foram
solapadas no processo de edição preocupada em formatar uma persona excepcional
com lenço na cabeça (o que não desqualifica a obra de Carolina exceto quando
ela foi obrigada a pousar como tal para fotografias) pobre, negra que escrevia
diários revelando os bastidores da vida favelada. Se há alguma mudança,
acontece pelo fato de que agora começam a emergir os textos de caráter mais
literário, a exemplo dos últimos livros que felizmente tive a oportunidade de
organizar, "Onde estaes felicidade?" (2014) e "Meu sonho é
escrever..." (2018), ambos resultantes de um esforço coletivo em busca da
Carolina escritora. O esforço desses últimos cinco anos, de visibilidade dessa
outra Carolina, tem modificado a avaliação crítica e mudará mais quando seus
romances e peças teatrais vierem a público. Sem falar das mudanças estruturais
nas universidades brasileiras hoje, com a entrada de alunos negros que
reivindicam autores com os quais eles possam se reconhecer.
O que o leitor brasileiro ainda pode
esperar de Carolina Maria de Jesus? Ainda há muito material inédito esperando
para ser publicado?
Espero
que os leitores tenham acesso aos sete romances inéditos, às cinco peças
teatrais, aos poemas que tratam da negritude e que não apareceram na
"Antologia poética" publicada em 1996, além de outras narrativas, que
são caracterizadas pelo hibridismo e reinvenções de si em sua escrita. Neles,
os leitores e as leitoras poderão encontrar uma escritora que conseguiu fazer
da escassez criação de enfrentamento aos modelos estabelecidos pela sociedade
acadêmica e letrada, confeccionou a potência enraizada nela e certamente contribui
para construção de novos afetos e maneiras de lidar com as mais variadas
esferas de manifestação humana. Carolina Maria de Jesus é sem dúvida um
clássico para a vida. (Com informações do
Diário do Nordeste).
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