Clóvis Moura e sua revolução brasileira

 

Clóvis Moura. (FOTO | Reprodução).

Clóvis Steiger de Assis Moura foi um intelectual negro sui generis. Ao longo da vida, dedicou-se a diversas atividades, como jornalista, poeta, historiador, sociólogo e pensador marxista.

Clóvis Moura nasceu em Amarante, no estado do Piauí, em 1925. Quando criança, toda a família se transferiu para a cidade de Natal. Em 1940, nova mudança familiar; desta vez, para Salvador, cidade onde se integrou a círculos de jovens intelectuais soteropolitanos. Durante a década de 1940, residiu um período em Juazeiro, sertão baiano, quando ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se intensificaram seus interesses literários, políticos e intelectuais. Dali, ele se transferiu para São Paulo, fazendo carreira como jornalista em variadas funções e em distintos veículos de comunicação, na capital e no interior, entre 1952 e 1972.

Paralelamente ao jornalismo, dedicou-se às atividades políticas e intelectuais. Em 1959, publicou o seu primeiro livro, Rebeliões da senzala, que apresentava uma abordagem inovadora: apreender a experiência negra no Brasil à luz do materialismo histórico. O livro procurou se contrapor à concepção de que, no Brasil, engendraram-se relações escravistas harmoniosas, uma antiga ideia sistematizada por Gilberto Freyre no início da década de 1930.

Tomando a dinâmica da sociedade escravista pela chave da violência e, sobretudo, da resistência ao regime de cativeiro, Moura centrou o seu olhar nas revoltas e nos quilombos em várias regiões do Brasil, suas formas de organização, seus projetos de liberdade, suas estratégias de luta, suas relações com a sociedade envolvente e com outros movimentos sociais e políticos. Além de apontar a rebeldia quilombola como expressão da contradição fundamental do sistema escravista, destacava o papel ativo da população negra na formação civilizacional da nação, não só do ponto de vista cultural, mas também social, político e econômico.

Após isso, ele publicou outras obras, como Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha (1964), O preconceito de cor na literatura de cordel (1976), O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Sociologia posta em questão (1978), e Diário da guerrilha do Araguaia (1979). Em fins da década de 1970 e início da de 1980, Moura se aproximou de setores do Movimento Negro, que o reconhecia como um dos grandes mentores intelectuais. Esse processo de diálogo entre Moura e os ativistas negros se estreitou nas décadas de 1980 e 1990, quando novas publicações vieram a lume: Quilombos e a rebelião negra (1981), Brasil: as raízes do protesto negro (1983), Quilombos: resistência ao escravismo (1987), Sociologia do negro brasileiro (1988), História do negro no Brasil (1989), e As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990).

A obra de Moura é um registro original da agência negra na história do Brasil, questionando os postulados da historiografia e sociologia tradicionais, que tenderam a escamotear ou secundarizar o papel desse segmento populacional na formação e no desenvolvimento da nação. Além de demonstrar a participação proativa das pessoas de origem africana na construção da sociedade brasileira, Moura procurou inventariar a tradição radical negra em sua batalha incansável, ora pela conquista da liberdade, no período da escravidão; ora pela conquista da igualdade no campo dos direitos e da cidadania, no período do pós-Abolição.

Intelectual erudito, Moura não teve o devido espaço no mundo acadêmico, nem o justo reconhecimento na história da intelectualidade negra brasileira. Talvez, porque ele se constitua um ponto fora da curva. Marxista, propugnou pela construção de uma sociedade igualitária e jamais descolou a luta antirracista da luta classista, o que o fez crítico dos paradigmas que acentuavam o reconhecimento da questão racial brasileira desvinculada da formação capitalista ou, antes, articulavam o antirracismo dissociado de um projeto emancipatório, de transformação estrutural da sociedade.

Moura faleceu na cidade de São Paulo, em dezembro de 2003. Nessa quadra de seu passamento, vale destacar a solidez de sua vasta obra. Esse intelectual negro foi um intérprete relevante do Brasil e nos legou uma profícua contribuição para se pensar os dilemas, impasses e desafios da nação. Sua postura crítica sinalizou que, para além de compreendermos melhor o passado, podemos vislumbrar um outro Brasil, uma outra história, descolonizadora e disruptiva, para o futuro desta nação.

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Texto de Petrônio Domingues e Marcio Farias, originalmente no Correio Brasiliense.

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