Por que ler Clóvis Moura?

 

Clóvis Moura. (FOTO | Reprodução).


Fábio José de Queiroz, Colunista


Quando vivos ocupamos um espaço físico. Quando mortos, ocupamos um espaço nas mentes” (José Saramago).


No próximo ano, será comemorado o centenário de nascimento de Clóvis Moura – historiador, sociólogo, jornalista, escritor e comunista. Embora tenha morrido no começo deste século (véspera de Natal de 2003), sua memória permanece muito viva. Por isso, no ano que antecede aos 100 anos desse piauiense de Amaranto, é importante responder a uma pergunta simples: Por que ler Clóvis Moura?

REFERÊNCIAS PARA UMA LEITURA DE CLÓVIS MOURA

Uma das consequências da passagem do tempo é a tendência ao esquecimento. Clóvis Moura morreu há mais de 20 anos. A ampliação dessa perspectiva, no sentido há pouco assinalado, é sempre um perigo. São nessas condições, no entanto, que a obra de um autor, não raro, é testada em sua efetividade.

Houve, nos últimos anos, certo direcionamento, e, em alguns casos, até um entusiasmo com relação ao legado histórico-sociológico contido nas obras de Moura. Em geral, talvez o contexto da época atual torne seus trabalhos ainda mais vestidos de contemporaneidade, em paralelo ao último quarto do século passado, período em que ele escreveu parte substancial de seus livros: O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Quilombos: resistência ao escravismo (1987), As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990) e Dialética radical do Brasil negro (1994).

Essa ascendência dos trabalhos de Clóvis Moura talvez também decorra de seu inequívoco empenho para confrontar o que ele chamou de uma história fraturada, contrapondo-se, desse modo, ao ponto de vista de intelectuais conservadores, como Gilberto Freyre, que apagavam da história a luta de classes. Assim, em Moura, sobressai-se o papel ativo dos escravizados no processo histórico, atuando como força dinâmica em meio a contradições agudas (conflitos), e não como parte constituinte de uma suposta harmonia entre exploradores e explorados (senhor afetuoso e escravo dócil), tal como na visão professada pelo sociólogo pernambucano. Nesse processo, o negro assoma como um ser socialmente situado em uma determinada estrutura, conforme ele afirma em Rebeliões na Senzala (Moura, 2014).

Em uma atitude alheia à maré, Clóvis se nega a inutilizar a luta de classes e, por essa via, ele efetua a “articulação do problema étnico com o social e o político”, conforme enfatiza em Sociologia do negro brasileiro (Moura, 1988). No livro, o escritor critica a sociologia acadêmica, ressalta os negros como um grupo específico, repõe a luta de classes em oposição às táticas e às técnicas de aculturação, recupera a República de Palmares, a imprensa negra e o lugar da insurgência negra no contexto do escravismo (pleno e tardio), por fim, examina, no escravismo tardio, as lutas paralelas de operários e escravos.

Mas, nessa altura da história, é essencial destacar que, embora ele enxergue uma “ponte entre o problema do negro e os estruturais” (Moura, 1988, p. 10), toda sua análise está a serviço da denúncia dos “mecanismos de barragem social”, uma vez que a massa negra constitui um grupo “barrado socialmente” (Moura, 1988, p. 8-9). Por isso, para o autor, “O problema do negro tem especificidades, particularidades e um nível de problemática muito mais profundo que o do trabalhador branco” (Moura, 1988, p. 10).

Para mais, atribuo toda uma importância a Clóvis Moura no que concerne não apenas ao uso de uma farta documentação, como ilustra bem o livro Rebeliões na senzala, mas também a uma análise e reconstrução da história, em que ele desmonta o que classifica como “ideologia racista racionalizada” e seus mecanismos discriminadores. O intelectual piauiense faz isso mediante um enfoque em que a figura do negro é retirada da condição de mero objeto e convertida imediatamente em sujeito, isto é, alguém capaz de representar uma força dinâmica em um sistema de opressão e exploração.

Rebeliões na senzala é composto de 10 capítulos mais as conclusões. Nessa obra, o autor articula habilmente diversas questões que são, ao mesmo tempo, conexas (equivalentes históricos) e separadas no tempo-espaço do Brasil escravista: insurreições baianas, o quilombo dos palmares, revoltas em São Paulo e até um capítulo em que ele analisa “O escravo negro e o sertão”.

Em seu estudo magistral, Moura oferece uma fortuna crítica e um coeficiente social e cultural da emancipação do povo negro. O que me parece mais relevante, contudo, é que seu horizonte se estende “para além” dos confortos de uma brilhante teoria. Não por acaso, a primeira parte do livro Sociologia do negro brasileiro, intitulada “Teorias à procura de uma prática”, é precedida por uma epígrafe das Teses sobre Feuerbach, em que a categoria da práxis é a ideia-chave da alusão a Marx. Para Clóvis Moura (1988), não bastam estudos, livros e pesquisas sobre a temática negra. De pronto, ele considera a necessidade de uma práxis política, pois é por meio dela que se instalará “uma prática social capaz de romper a segregação invisível mas operante em que vive a população negra no Brasil” (Moura, 1988, p. 13).

A epígrafe de Joaquim Nabuco também não aparece por acidente de percurso: “O negro constrói um país para outros; o negro construiu um país para os brancos”. A passagem de Nabuco não se refere a um passado morto, mas a uma construção que, saindo dele, se espraia nos arranjos estruturais de nossa época.

Essa mescla de reconstrução histórica, que é parte de um movimento geral de resistência do povo negro, e de práxis política, por si só, de fato, já reclama uma leitura dos textos de Clóvis, que, embora reconheça a renovação que ocorreu no campo da pesquisa acadêmica, insiste que o estudo da questão negra se desenvolve – e bem – fora da universidade por cientistas sociais não acadêmicos e por entidades negras.

Uma outra vantagem importante: ao se debruçar na obra desse genial marxista, o leitor precisa compreender que é preciso lutar para superar a realidade social que esmaga o negro, e isso se faz por interferência de uma vigorosa prática social. Mas junto disso, ele entenderá que é impossível uma transformação social no Brasil sem a intervenção da imensa massa de trabalhadoras e trabalhadores negros que, de fato, constitui o maior número de indivíduos pertencentes à classe trabalhadora.

Finalmente, Clóvis Moura notou, no escravismo tardio, na segunda metade do longo século XIX, no Brasil, a convergência entre escravizados, negros livres proletarizados e proletários não negros, abrindo um novo nível de contradição “na área das relações de trabalho” (Moura, 1998, p. 247). Atualmente, esse nível de contradição está firmado, pondo em lados opostos capital e trabalho, em que o primeiro é majoritariamente branco e o segundo preponderantemente negro. Voltar a Moura é atualizar esse nível de contradição, é entender a dependência brasileira ao imperialismo, bem como a particularidade de nossa estrutura social, situando a mudança basilar na esteira do desmantelamento de um sistema, como já assinalado, de opressão e de exploração.

ÚLTIMAS PALAVRAS

Clóvis desnaturaliza a escravidão, o escravismo e o escravo. Não é fortuita a menção a uma célebre locução de Marx: “Um negro é um negro. Apenas dentro de determinadas condições ele se torna um escravo”. Em vista disso, Clóvis Moura dessacraliza essas condições e, sobretudo, distingue e evidencia o lugar do negro como personagem ativo da superação dessas condições.

Por conseguinte, ao se avançar do passado para o tempo em curso, e, particularmente, ao se abordar a história do povo negro, à luz das reflexões do intelectual comunista, é inviável omitir o fato de que “assim como os seres humanos fazem sua própria história, eles também fazem suas culturas e identidades étnicas” (Said, 2011, p. 510).

Hoje, ao folhear um livro de Moura, é plausível enxergar como os afro-brasileiros fizeram a sua história, refizeram e enriqueceram o trajeto de suas culturas e, em meio à dor e à luta, souberam reforçar as suas identidades étnicas. Desse modo, ao se pensar na revolução brasileira, há de se considerar cada um desses fatores.

Assim, é importante ler Clóvis Moura, não apenas para interpretar o conteúdo mais profundo de suas obras (a atuação negra nos processos históricos, o anticolonialismo, o anti-imperialismo etc.), mas porque delas aflora uma perspectiva pujante de mudança social.

REFERÊNCIAS

MOURA, Clóvis. Rebeliões na senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas; 5. ed. São Paulo: Anita Garibaldo/Fundação Maurício Grabois, 2014.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988.

SAID, Eduardo. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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