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(Foto: Reprodução/ Terra de Direitos). |
Morosidade
nos processos e falta de recursos revelam racismo institucional do Estado
Brasileiro. Para 2018, estão previstos menos de R$1 milhão para a titulação dos
mais de 1,7 mil processos abertos no Incra.
Passados
30 anos da promulgação da Constituição Federal e 130 anos desde a assinatura da
Lei Áurea – que no dia 13 de maio de 1888 determinou a abolição formal da
escravidão –, políticas públicas voltadas para comunidades quilombolas revelam
que o racismo institucional ainda é presente no país.
Exemplo
disso é a destinação de recursos públicos para a titulação de territórios
quilombolas, que sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos. Se em
2013 foram usados mais de R$ 42 milhões para a desapropriação das terras onde
estão os territórios quilombolas, em 2018 menos de R$ 1 milhão estão previstos.
O
valor é insuficiente para titular os mais de 1,7 mil processos sob
responsabilidade do Incra. Desse total, 32 áreas de 12 comunidades quilombolas
já foram reconhecidas, tiveram o decreto de desapropriação assinado, e aguardam
apenas a titulação. De acordo com informações obtidas através da Lei de Acesso
à Informação, 15 delas aguardam desde 2016 a aquisição dos imóveis para a
receberem o título.
É
o caso da Comunidade Invernada Paiol de Telha, no Paraná, que teve o Decreto de
Desapropriação assinado pela Presidenta Dilma Rousseff em 2015. Comunidade com
o processo de titulação mais avançado no estado, o Paiol de Telha teve 2,9 mil
hectares reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra). Desse total, quase 1,5 mil hectares foram previstos no Decreto de
Desapropriação. No entanto, a titulação da área deve se dar em partes, e 228
estão em processo de desapropriação. Os quilombolas aguardam o título dessa
área desde que foram certificados pela Fundação Cultural Palmares, em 2005.
Enquanto
a terra não é titulada, as famílias vivem com a insegurança e são impedidas de
acessar políticas públicas. Muitas casas ainda não contam com energia elétrica
e saneamento básico, como conta a quilombola Ana Maria Santos da Cruz, que
também é integrante da coordenação executiva da Coordenação Nacional das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Nós não podemos ter um projeto
de ter água, de ter energia, ter moradia, porque não temos o título. O pessoal
está em situação de miséria”.
Titulação
Apesar
de a Constituição determinar que as comunidades quilombolas fazem parte do
patrimônio cultural brasileiro e que devem ter suas terras reconhecidas, apenas
6% dos territórios quilombolas possuem o título da área – na maior parte dos casos, apenas parte dos
territórios foram titulados. No Brasil, das 2.847 comunidades quilombolas
certificadas – número que é ainda maior se forem consideradas as comunidades
que ainda não foram reconhecidas –, apenas 174 foram tituladas.
A
certificação é apenas o um dos passos iniciais na luta pela titulação do
território. Até obterem o título da terra, as comunidades ainda precisam passar
pela elaboração e publicação do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID), pela publicação da Portaria de Reconhecimento assinada pelo
Incra e pelo Decreto de Desapropriação assinado pela presidência da república.
Segundo
dados disponibilizados pelo Incra, estão sob responsabilidade do Instituto
1.715 processos – alguns desses tramitam desde 2004. Além das 12 comunidades
que aguardam apenas a titulação da terra, já tendo passado pelas outras fases
do processo, cinco comunidades aguardam a assinatura da portaria de reconhecimento.
Outras 34 também já tiveram publicado os Relatórios Técnicos de Identificação e
Delimitação (RTID) e aguardam o encerramento de fases contestatórias para que
possam seguir para o próximo passo e ter a portaria assinada. Mais 31
comunidades estão à espera da assinatura do Decreto de Desapropriação – desses
processos, 17 foram encaminhados em 2015 e 2016. Todos estão parados na Casa
Civil.
Para
Givânia Maria da Silva, membro fundadora da Conaq e ex-coordenadora geral de
regularização dos territórios quilombolas do INCRA, o baixo orçamento destinado
à titulação e a morosidade em finalizar os processos revela uma atitude racista
por parte do Estado. “É o racismo
institucional operando pela burocracia”, destaca. “Isso acontece quando o
Estado tenta impedir ou colocar obstáculos para aquele que tem direito a uma
ação por recorte de raça”.
Uma vitória, outra batalha
Desde
2016, apenas sete territórios foram titulados pelo Instituto em todo o país –
três em 2017, e grande parte recebeu o título de apenas parte da área. Até o
momento, nenhuma comunidade quilombola foi titulada pelo Incra em 2018.
Esse
dado coloca em cheque o argumento utilizado pela Casa Civil em 2017 para a
não-titulação de terras. No ano passado, um ofício enviado pela Casa Civil ao Ministério
Público Federal indicou a paralisação dos processos de titulação até que fosse
finalizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239 movida pelo antigo
Partido da Frente Liberal (PFL) – atual Partido Democrata (DEM). A ação
questionava o Decreto Federal 4.887/03 que regulamentava os procedimentos de
titulação das áreas. Segundo o documento enviado pela Casa Civil, a orientação
para a paralisação dos processos era uma forma de garantir a “segurança jurídica”.
A
ação foi julgada no dia 8 de fevereiro deste ano, quando os ministros do
Supremo Tribunal Federal consideraram que o decreto é Constitucional e que a
tese do Marco Temporal não deveria ser aplicada. Essa tese estabelece que só
teriam direito às terras as comunidades que tinham sua posse em 5 de outubro de
1988, algo que desconsidera os processos de expulsão dos quilombolas de seus
territórios.
Mesmo
com o reconhecimento da constitucionalidade do Decreto, nenhuma comunidade
quilombola foi titulada pelo Incra em 2018. Advogado popular da Terra de
Direitos que acompanhou a tramitação da ADI 3.329, Fernando Prioste questiona o
papel cumprido pelo Poder Judiciário nesse caso. “O judiciário reconhece um direito, mas não tem força – e talvez nem
interesse – de fazer com que esses direitos sejam efetivados”, pontua.
Membro
fundadora da Conaq e ex-coordenadora geral de regularização dos territórios
quilombolas do INCRA, Givânia Maria da Silva reforça que o baixo orçamento
destinado à titulação de áreas e o sucateamento de instituições como o INCRA é
uma das estratégias para garantir o enfraquecimento da política. “Se por
um lado tivemos uma vitória no Supremo em relação ao que desejava o DEM, por
outro lado a gente tá assistindo o desmonte absoluto em toda a estrutura do
Estado que atua na questão quilombola”, avalia. “Não conseguiram destruir os conceitos e as conquistas que estavam no
decreto 4887 e estão agindo de uma forma muito mais rasteira e violenta”.
O menor peso na balança
A
diminuição orçamentária do Incra para a titulação de terras quilombolas
acontece em um meio ao cenário de ajustes fiscais por parte do Governo Federal,
que toma medidas que alega serem necessárias para evitar o suposto rombo e
equilibrar as contas públicas. Se observado de perto a destinação dos recursos
públicos, percebe-se que as contas, de equilibradas não têm nada.
"Não conseguiram destruir os conceitos e as
conquistas que estavam no decreto 4887 e estão agindo de uma forma muito mais
rasteira e violenta"
Caso
emblemático disso é o valor gasto com auxílio-moradia para magistrados
brasileiros. De acordo com a Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle
do Senado, apenas para o ano de 2017 foram gastos R$ 817 milhões com
auxílio-moradia para 17 mil juízes. Esse valor é resultado de um benefício de
R$ 4.377, 73 pago mensalmente a todos os magistrados no país, como forma de
custear os gastos com habitação, mesmo que o beneficiário tenha casa própria no
local onde atua.
O
valor gasto com auxílio-moradia para juízes em 2017 é quatro vezes maior do que
todo o valor gasto pelo Incra para a titulação de territórios quilombolas desde
2010 – ou seja, em um ano, foram usados quatro vezes mais recursos para a
magistratura do que foram gastos para a aquisição de terras quilombolas em oito
anos.
Em
termos comparativos, os R$ 817 milhões de reais gastos com auxílio-moradia
seriam suficientes para titular ao menos 18 vezes as terras de todos os
territórios quilombolas que estão na fase final para titulação.
Para
Givânia, isso reforça a falta de vontade política para a efetivação de
políticas públicas de promoção da igualdade. “A elite brasileira – a mesma que
compõe o Senado, o atual Executivo e a Câmara – não aceita que os quilombolas
possam ter direito à terra. Tanto é verdade que a ADI 3239 ficou 14 anos
tentando desconstruir o que era a definição da política quilombola”.
A
garantia e efetivação de direitos previstos na Constituição Federal não parece
ser mesmo a prioridade do Governo Federal. Uma portaria publicada em Diário
Oficial no dia 10 de abril (Portaria nº75) remanejou mais de R$ 208 milhões de
reais de áreas da saúde, transportes, de políticas para mulheres e reforma
agrária para a atividades da comunicação governamental. Deste montante, cerca
de R$ 203 milhões serão destinados para a comunicação institucional e R$ 5,9
milhões para a publicidade.
Essa
transferência de recursos acontece em um cenário de congelamento dos gastos
públicos, através da implementação da Emenda Constitucional 95. Denunciada por
entidades e movimentos sociais, a EC 95 congela por vinte anos as despesas
primárias, onde estão inseridos os investimentos em políticas públicas sociais.
Precarização
A
falta de recursos destinados para a titulação de territórios quilombolas é um dos
inúmeros desafios enfrentados pelo Incra. Servidores do Instituto tem
denunciado a precarização dos trabalhos com o corte de funcionários e com a
diminuição de recursos para políticas também de desenvolvimento e da reforma
agrária.
Desde
que o Decreto Federal que regulamentou a titulação de terras quilombolas foi
aprovado, em 2003, o Incra sofreu, até 2016, um corte no quadro de funcionários
de 15%: foram reduzidas 864 vagas, apesar do aumento de responsabilidades do
Instituto. De acordo com dados da Associação dos Servidores do Incra
(Assincra), desde 2003, quando o Incra passou a ser a autarquia responsável
pelos processos de titulação na esfera federal, o número de funcionário
efetivos passou de 5.164 para 4.300, em 2016.
Resistência
O
cenário pouco favorável não amedronta os quilombolas. O advogado popular de
Terra de Direitos lembra que as poucas titulações dos territórios feitas pelo
Incra são resultado dos esforços do movimento social. Segundo ele, Conaq e
comunidades quilombolas têm avançado muito nas mobilizações sociais, com
vitórias nas ruas e nos tribunais.
E reflete: "Não haverá efetiva
democracia e justiça social no Brasil enquanto as comunidades negras
quilombolas não tiveram suas terras plenamente tituladas".
(Com informações do Terra de Direitos).