26 de agosto de 2025

Arroz com ração’ e queimaduras no corpo: vítima de trabalho infantil no Crato era considerada ‘da família’ por empresária condenada

 

Luciana* tem o corpo marcado pelo trabalho realizado sem os equipamentos necessários. (FOTO  |Arquivo | Processo | Court Records).

No último dia 18 de agosto, a 2ª Vara do Trabalho de Cariri condenou a empresa R&R Coisas do Forno, do Crato (CE), bem como sua proprietária, a empresária Rita Eliane Santiago Pinheiro, a pagar indenização por danos morais, além de todos os direitos trabalhistas devidos, por manter uma menina em situação de trabalho infantil análogo à escravidão. Em nota, a empresa nega as acusações e afirma que “desde o início, a relação com a reclamante foi marcada por acolhimento e afeto”.

Luciana* tinha dez anos quando começou a trabalhar. Ela saiu da casa da avó e foi morar com os empregadores — a empresária e o marido. Durante o dia, a menina cuidava do bebê do casal e, à noite, fazia biscoitos na fábrica dos patrões, uma pequena empresa familiar. Outras tarefas domésticas, como cozinhar, faxinar e lavar roupas, faziam parte da rotina.

Pelos serviços, a criança recebia R$ 30 por mês, valor entregue à avó que, segundo informações do processo, acreditava que a menina teria uma vida melhor morando com aquela família. Ainda criança, Luciana dormia numa rede, num quarto sem janelas, dividido com outra jovem, na residência dos exploradores.

“Eu trabalhava de seis da manhã até dez horas da noite”, conta, sobre os serviços realizado na casa da família. A conversa com o Brasil de Fato foi realizada por telefone. A reportagem chegou até ela após acessar o processo judicial. “Quando ele [o bebê] ia dormir, eu ia para a fábrica ajudar as meninas”, lembra. Junto das funcionárias da fábrica de biscoitos, Luciana trabalhava até o início da madrugada.

Os abusos começaram em 1997, mas o caso só chegou à Justiça em 2024, quando a vítima, com 37 anos, procurou auxílio jurídico para receber o salário de um mês. Ela não morava mais na casa dos patrões, mas ainda trabalhava para eles, agora por um valor abaixo do salário mínimo.

Os empregadores se recusaram a realizar pagamento porque, naquele mês, Luciana havia faltado por três dias para cuidar do filho doente, que tinha apenas um ano. Descontadas as faltas, ela recebeu apenas R$ 101 como pagamento. Por sugestão do marido, ela procurou a advogada Livia Nascimento, mestre em direitos humanos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

“Ela desabafou chorando muito, relembrando tudo que tinha passado e nós explicamos que o caso dela não era uma simples demanda trabalhista, mas, sim, um caso de exploração infantil em condição análoga à escravidão”, conta a advogada.

Na sentença, a juíza Giselle Bringel de Oliveira Lima David estabeleceu o valor de R$ 70 mil em indenização pelos danos morais do trabalho infantil análogo a escravidão e R$ 5 mil de danos pela falta de proteção à maternidade, já que a vítima não teve nenhuma garantia quando se afastou do trabalho após o nascimento dos filhos.

No processo, Nascimento pede o valor total de R$ 336.955,08, incluindo a correção dos salários defasados. A empresária ainda pode recorrer.

Nunca um salário completo”

Luciana chegou na casa onde foi explorada para cuidar do primeiro filho da família. Quando a patroa teve o segundo bebê, a jovem continuou fazendo o serviço de babá, somado às outras tarefas, tudo em troca de um valor irrisório. As três refeições que ela fazia na casa da família eram descontadas do pagamento.

“Na época, começou a me pagar R$ 30, aí depois R$ 600, aí depois subiu para 1.000, mas nunca um salário completo”, diz. Aos 18 anos, a jovem casou-se e foi viver com o marido, mas continuou trabalhando na empresa de biscoitos e recebendo um salário abaixo do valor de mercado. As provas juntadas ao processo indicam que, em 2023, Luciana recebia R$ 1,1 mil e, em 2024, 1,2 mil.

“Não obstante, o salário mínimo nacional em 2023 era de R$ 1.302,00 (até 30/04/2023) e R$ 1.320,00 (a partir de 01/05/2023), e em 2024 era de R$ 1.412,00. Desse modo, o salário recebido pela Reclamante foi, de fato, inferior ao salário mínimo legal”, alerta a juíza, no texto da sentença.

A jornada de trabalho se estendia de segunda a sexta-feira, das 6 às 18h, com pausa de cinco minutos para almoço, segundo o processo. Aos sábados, Luciana trabalhava por meio período, sem intervalo. Durante todos os anos de prestação de serviço, a vítima não teve nenhum direito trabalhista assegurado, como férias, 13° salário, contribuições previdenciárias e recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

Como se fosse da família”

A história de Luciana reúne todos os elementos da escravidão contemporânea: jornadas exaustivas, quartinho “da empregada”, negligência e a alegação, por parte dos patrões, de que a vítima era “como se fosse da família”.

Para a Justiça, essa justificativa está muito distante da realidade à qual Luciana foi submetida nos anos em que viveu naquela residência. Na sentença, a juíza destaca que, enquanto os filhos da família tinham acesso aos estudos, Luciana só foi matriculada em uma escola aos 15 anos.

“A discrepância de tratamento em relação às crianças ‘de sangue’ da família é um forte indicativo de que a reclamante era vista e tratada como mão de obra barata e disponível, e não como um membro da família em igualdade de condições”, ressalta a magistrada.

A humilhação também fazia parte da rotina. Ela diz não esquecer de certa noite, quando encontrou a família reunida no quintal e o patrão lhe ofereceu um prato de comida. “Quando eu coloquei na boca, começa todo mundo a rir. Aí eu disse: ‘oxe, por que é que vocês estão rindo?’. Ele tinha cozinhado arroz com ração de cachorro para mim comer”.

As lembranças da vítima se somaram às outras provas no processo contra a família. “Tinha muita prova, tinha foto, eu com eles”, diz. “E tinha meu corpo queimado lá dos fornos”, completa. Por falta de equipamentos adequados para a tarefa na fábrica, ela sofreu queimaduras nos braços. Outras mulheres que prestaram serviços para a família confirmaram, em depoimento à justiça, que Luciana, quando vivia na casa, “não tinha hora determinada de trabalho, estando sempre à disposição”.

“Trata-se, portanto, de vínculo de emprego doméstico e comercial que extrapola as condições mais basilares e aceitáveis de tratamento humano, atrelado a um cenário de degradação de vida e dependência de toda uma existência em prol de uma família, que afronta a dignidade da trabalhadora e seus direitos fundamentais desde a mais tenra idade”, declara a juíza, no texto da sentença.

A advogada Livia Nascimento, que tem mais de 10 anos de militância na área do Direito Antidiscriminatório, remonta às raízes das relações trabalhistas no Brasil e celebra a relevância histórica desta decisão. “As consequências de um país ter fincado suas bases em relações de poder entre pessoas brancas e negras e indígenas repercute na precarização da vida dessa população ainda hoje”, diz.

Uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), divulgada em 2022, revela que as mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico no Brasil. Dessas, 65% são mulheres negras, como Luciana. Muitas saíram de casa cedo para cuidar dos filhos de outras pessoas.

“Por isso, justifica-se a relevância de uma sentença condenatória que reconhece essas relações de exploração e violação sistemática de direitos e pune os responsáveis”, afirma a advogada.

Para o advogado Carlos Augusto Matos, que também atuou no processo, “embora nenhuma indenização consiga reparar todos os danos mentais e físicos, para além de seus direitos trabalhistas, é uma grande conquista a ser celebrada”.

Empresa nega acusações e vai recorrer na justiça

Em resposta ao Brasil de Fato, a empresa R&R Coisas do Forno nega as acusações. Abaixo, a resposta:

Em resposta às recentes notícias sobre o processo trabalhista em face da empresa R&R COISAS DO FORNO e sua proprietária, ambas vêm a público esclarecer os fatos e refutar, com veemência, as acusações de trabalho infantil análogo à escravidão.

Desde o início, a relação com a Reclamante foi marcada por acolhimento e afeto. De fato, a Reclamante residiu por um período na casa da família, entre o período de 1997 e 1999, há quase 30 anos atrás, onde foi tratada com dignidade, carinho e auxílio mútuo. A relação nunca foi de escravidão ou violência, mas de amizade e cumplicidade, que se estendeu ao longo dos anos, com a Reclamante retornando à convivência e ao trabalho em diferentes momentos, já na vida adulta.

É fundamental reiterar que:

A Reclamante sempre teve liberdade de ir e vir.

Seu acesso aos estudos jamais foi impedido.

Todo o serviço prestado foi devidamente remunerado.

A história da nossa família é construída com trabalho, honestidade e superação. Começamos do zero, de forma humilde, e hoje somos uma pequena empresa familiar que luta para crescer de maneira justa e transparente, prezando pela ética em todas as relações.

No processo, infelizmente, não foi possível apresentar toda a documentação necessária para o esclarecimento integral dos fatos, em decorrência do transcurso de quase 30 anos. Por fim, destaca-se que a sentença não é definitiva e ainda será submetida à recurso, oportunidade à qual seguiremos confiantes em sua reforma.

-----Por Maria Teresa Cruz, no Brasil de Fato.

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