21 de agosto de 2025

Educação emancipatória, antirracista, inclusiva e de qualidade social: um compromisso com a transformação

 

(FOTO | Reprodução).


Desde o final da década de 1990, é possível identificar mudanças nos referenciais das políticas educacionais implementadas nos municípios brasileiros. As pesquisas no campo educacional identificam duas grandes políticas públicas em disputa que se constituíram em referenciais para os sistemas de ensino: as políticas neoliberais e as democráticas participativas.

Nas políticas neoliberais, as mudanças são vistas como parte de ações gerenciais administrativas, propostas por um centro técnico, que fica encarregado de pensar a educação, enquanto a ponta do sistema, que é a escola, ou mais especificamente os profissionais que nela atuam, assume a responsabilidade pela execução das políticas formuladas. Os gestores adeptos a essa vertente buscam sempre criar condições para o estabelecimento de parcerias entre a administração pública e institutos, fundações e empresas que visam aos interesses privados. Com essas parcerias, as gestões municipais se apresentam como pretensos iluminados, os únicos capazes de tomar o poder das decisões em relação ao currículo, às avaliações, à organização da escola, à formação e até mesmo em relação às políticas salariais dos professores, excluindo, com isso, a participação dos profissionais que atuam nas escolas e que possuem contato direto com as comunidades escolares.

De forma distinta, nas políticas de tendências participativas é necessário promover-se o envolvimento da ponta do sistema, como forma de criar condições favoráveis à participação dos agentes que atuam no interior das escolas, não apenas na execução, mas também na formulação e avaliação das políticas desenvolvidas. Mas as propostas participativas não têm interessado aos gestores que, em geral, são avessos à democracia para além de seu elemento representativo.

Apesar das inúmeras críticas elaboradas por pesquisadores da educação, as políticas de tendência neoliberal, que excluem os professores da formulação e dos planejamentos, vêm predominando nos municípios brasileiros. Verifica-se, no cenário nacional, a emergência de forças favoráveis à interferência da iniciativa privada na educação, as quais são impulsionadas pelo discurso da ineficiência da escola, diante dos desafios do século XXI. Nesse discurso, a desqualificação do professor e a utilização dos baixos resultados do IDEB são as justificativas predominantes daqueles que defendem a introdução da lógica de iniciativa privada na educação pública.

Na qualidade de professores (as), não podemos cair nas armadilhas desse discurso falacioso, que busca naturalizar a lógica da meritocracia e da competência no interior da escola. Há uma vasta literatura, além de muitas pesquisas, as quais demostram haver, por trás desse discurso, produtos pífios de gestões que buscaram introduzir a política de resultados na educação. Apesar da linguagem sofisticada das reformas inspiradas no neoliberalismo aplicado à educação, as pesquisas vêm demonstrando o fracasso dessas políticas no sentido de garantir a efetiva aprendizagem dos estudantes.

Esses mesmos estudos destacam a importância da apropriação das políticas por parte dos docentes que devem atuar como protagonistas. Sem esse protagonismo as políticas não saem do campo da superficialidade. Além disso, na contramão da desvalorização dos professores, responsabilizados de forma indevida pelos resultados demonstrados nas avaliações externas, as pesquisas indicam que o financiamento adequado e contínuo deve ser acompanhado de políticas públicas que valorizem os profissionais da educação. Sem uma carreira atrativa, salário adequado e formação, as políticas tendem a fracassar.

A clareza acerca dessas distintas tendências nas políticas educacionais é fundamental para compreendermos o conceito de qualidade da educação, reproduzido por todos como se existisse apenas uma única maneira de abordá-lo. É difícil encontrar quem não o defenda entretanto, é necessário refletirmos sobre o que significa esse conceito. Assim, como muitos autores e pesquisadores que defendem uma educação crítica, democrática, participativa e emancipatória, defendemos o conceito de qualidade social da educação.

Nessa concepção, a qualidade envolve múltiplas dimensões (extra e intraescolares) e considera os diferentes sujeitos, a dinâmica, os processos pedagógicos, os currículos e as expectativas de aprendizagem, bem como os diversos fatores extraescolares que interferem direta ou indiretamente nos resultados educativos, incluindo o contexto social no qual os estudantes e as instituições escolares estão inseridos.

Nessa abordagem, a qualidade social da educação passa pelo compromisso do Estado e das instituições escolares na superação dos problemas que impedem a concretização da democracia, da justiça social, da solidariedade; e no combate a diversas formas de violência e exclusão, em especial no combate à pobreza, sob a qual vive a maior parte da população brasileira. Nessa perspectiva, investir financeiramente na educação é uma decisão política, estratégica e indispensável.

Na concepção de qualidade social, o Estado tem a responsabilidade de assegurar o direito público que tenha excelência para todos, o que implica necessidade de avaliação das escolas com critérios e procedimentos públicos. Todavia, nessa perspectiva, a avaliação deve assumir uma função formativa, contribuindo para aprimorar as instituições e melhorar o processo de ensino-aprendizagem. Portanto, a qualidade social advém da totalidade conjugada de elementos variáveis e de dimensões intrínsecas ao processo educacional que ocorre nas escolas.

Entretanto, outra concepção de qualidade de mercado vem se tornando hegemônica nas duas últimas décadas e, infelizmente, esvaziando os debates e o sentido público e político da educação. A qualidade de mercado parte de uma concepção afinada com os principais documentos dos organismos internacionais (FMI, Banco Mundial, OCDE), que financiam programas e projetos educacionais nos países em desenvolvimento e buscam se basear em critérios de qualidade nos moldes administrativos empresariais (produto, custo benefício). No discurso neoliberal de qualidade, as questões políticas e sociais, intrínsecas ao fenômeno da educação, são transformadas em problemas de ordem técnica, ou seja, a distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos de poder é ocultada em prol do discurso técnico de eficácia e da eficiência na gestão de recursos humanos e materiais.

Com base nessa estratégia, os problemas graves que os estudantes e as instituições enfrentam (oriundos da pobreza, da desigualdade social, da concentração de renda, da precarização, de baixos investimentos etc.) são vistos como resultado de uma má gestão, de desperdícios de recursos por parte dos poderes públicos, de falta de esforço individual por parte de docentes e estudantes ou como consequência de métodos atrasados de ensino e currículos inadequados. O discurso da qualidade de mercado, transposto para a educação, exalta a livre iniciativa, a modernização, a flexibilidade, a autonomia, esvaziando o discurso da igualdade/desigualdade, da justiça/injustiça, da construção coletiva, da importância da esfera pública de discussão e de decisão, tornando quase impossível pensar numa sociedade e numa comunidade que transcendam os imperativos do mercado e do capital.

Como educadores comprometidos com a educação pública, laica e de qualidade social, devemos estar atentos às ações de gestores municipais que reproduzem discursos democráticos, mas que, na prática, promovem reformas e ações concatenadas com a concepção de qualidade de mercado. É necessário firmar nossos compromissos com a qualidade social da educação e lembrar, aos que propositalmente teimam em esquecer, que a democracia exige participação, diálogo e debates de ideias. E isso inclui a participação dos trabalhadores da educação na formulação das políticas educacionais.


Nós, do coletivo Travessia, queremos, acreditamos e defendemos que uma outra sociedade é possível, quando passa por um projeto de educação. A educação em que acreditamos e defendemos é aquela que forma sujeitos capazes de compreender criticamente a realidade e de atuar para transformá-la. Uma educação que não se limita à transmissão de conteúdo, mas que promova a autonomia, o pensamento crítico e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Trata-se de uma educação emancipatória, que reconhece cada estudante como protagonista do seu processo de aprendizagem e da sua história de vida. Inspirada por valores democráticos, rompe com práticas autoritárias e valorizadoras apenas do saber hegemônico, criando espaços de escuta, de diálogo e de participação ativa.

Essa educação precisa ser também antirracista. Em um país marcado por profundas desigualdades raciais e estruturais, não basta ser “não racista” — é preciso combater o racismo de forma intencional e contínua. Isso significa revisar conteúdos, práticas, símbolos e atitudes que silenciam, excluem ou inferiorizam culturas, corpos e saberes historicamente marginalizados. Uma escola antirracista valoriza as identidades negras, indígenas e de todos os povos, promovendo representatividade, reconhecimento e reparação.

Aliada a esse compromisso, está a concepção de uma educação inclusiva, que acolhe a diversidade em todas as suas formas — seja ela de gênero, de raça, de deficiência, de classe, de orientação sexual, de religião ou de origem. Incluir não é apenas permitir a presença, mas garantir a participação, a aprendizagem e o pertencimento de todos. É assegurar que as diferenças sejam respeitadas como potências, e não vistas como obstáculos.

Por fim, reafirmamos a defesa dessa educação de qualidade social, que ultrapassa os resultados e os números e se compromete com o direito à aprendizagem com dignidade. Qualidade social envolve escuta, cuidado, infraestrutura adequada, valorização dos profissionais da educação e uma proposta pedagógica que dialogue com os contextos de vida dos estudantes.

Educar com base nesses princípios é um ato de coragem e de esperança. É acreditar que a escola pode ser um território de resistência, de afeto e de transformação. É formar pessoas livres, críticas, solidárias e conscientes do seu papel no mundo.

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Por Coletivo Travessia na Educação de Contagem, no Esquerda Online.

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